Efeitos do parasitismo no ciclo econômico do imperialismo

Analisando o balanço de pagamentos das nações, alguns economistas perceberam que superávits ou déficits em conta corrente correspondem às diferenças para mais ou para menos entre o que um país poupa e aquilo que investe. De uma forma geral, os países com

Como o fluxo de poupança entre nações capitalistas no interior do sistema imperialista é dado em grande medida pelo movimento (ou circulação) dos capitais, que afluem às diferentes regiões do planeta na forma de investimentos diretos e indiretos, podemos supor uma identidade relativa entre poupança e capital e daí deduzir que países exportadores ou importadores de poupança são também exportadores ou importadores de capitais. É precisamente neste sentido que os Estados Unidos se transformaram num país importador (líquido) de capitais, conforme notou o historiador marxista Eric Hobsbawm, enquanto Alemanha e Japão são, com toda certeza, exportadores (líquidos) de capitais (2). É bom assinalar que nem todo fluxo de poupança entre as nações deve ser considerado fluxo de capitais e não se pode caracterizar o grosso dos investimentos chineses no exterior de exportação de capitais, pelo menos no sentido que Lênin atribuía à expressão (3).


 


Aparentemente vai tudo muito bem


 


Como a existência de países deficitários, de um lado, requer a contrapartida de países superavitários, do outro, aparentemente não haveria nada de mal em acumular déficits ou de bom em colecionar superávits, pois no final das contas tudo se compensa. Por conseqüência, também não faria muito sentido falar em desequilíbrios comerciais e financeiros no relacionamento entre as nações ou se preocupar muito com isto no contexto da atual ordem econômica mundial.


 



Este raciocínio traduz o que podemos chamar com propriedade de meia verdade. Seus defensores focalizam presentemente o caso das relações entre os norte-americanos e os países asiáticos, com destaque para China e Japão. Sabe-se que os EUA mantêm com a Ásia, faz tempo, um grande déficit comercial, base principal do seu escandaloso rombo em conta corrente; os asiáticos, por seu turno, vêm acumulando ao longo dos anos crescentes e volumosos superávits (no comércio e em conta corrente), basicamente à custa da potência hegemônica.


 



Na prática, por obra dos bancos centrais, boa parte do superávit asiático tem sido convertido em títulos do Tesouro ou em outros ativos dos EUA, contribuindo decisivamente para o financiamento do déficit em conta corrente, bem como do déficit governamental gerado pelas aventuras do senhor Bush no Oriente Médio. Dizem que, assim procedendo, os asiáticos estariam devolvendo ao Tio Sam com uma mão o que dele obtiveram com a outra e que fazem isto de bom grado, zelando pelos próprios interesses, pois ao financiar o excesso de consumo e investimentos da sociedade estadunidense estariam realimentando o mercado para sua próspera indústria, contornando a superprodução relativa e a crise de realização do capital.


 



No frigir dos ovos, tudo funcionaria às mil maravilhas, como se o déficit fosse autofinanciável, na medida em que o superávit asiático se recicla no próprio financiamento do déficit americano, anulando-o. O déficit em conta corrente é recorrente no balanço de pagamentos dos EUA desde 1982 e, bem ou mal, vem sendo financiado ao longo de 25 anos, o que induz a maioria das pessoas a imaginá-lo como algo corriqueiro, normal, natural e perene. Não haveria motivo para preocupação ou “catastrofismo”.


 



Simbiose e parasitismo



 


Embora tudo isto possa parecer justo e verdadeiro, além de muito funcional, uma análise mais profunda e crítica dos fatos sugere que as coisas não são tão simples quanto parecem. Na atual arquitetura financeira internacional, poderosamente influenciada pela necessidade de financiamento externo da economia estadunidense, não se revela apenas uma simbiose de interesses entre as nações, fruto da crescente interdependência dos mercados, mas, antes, uma “relação tanto de simbiose quanto de parasitismo”, conforme salientou o professor David Harvey no excelente livro “O novo imperialismo” (Edições Loyola).


 


 


Com efeito, sob a aparência de normalidade, o desequilíbrio comercial e financeiro nas relações entre os EUA e o resto do mundo (especialmente nas orlas do Pacífico), que não começou no ano passado, confere ao ciclo de reprodução do capital a marca do parasitismo, cujos efeitos começam no centro do império, porém não param por ali. Dado o peso da maior economia do mundo na “globalização neoliberal”, repercutem fortemente sobre o processo de acumulação e expansão do capital no conjunto do sistema imperialista e em quase todos os países, determinando ao longo do tempo transformações silenciosas e perigosas na correlação de forças entre as nações.


 



 
A definição do déficit em conta corrente como a diferença ou o hiato entre poupança e investimentos internos é deduzida do fato de que, nas atuais condições, a cobertura do saldo externo negativo é feita através de investimentos estrangeiros, que naturalmente são acrescentados às inversões efetuadas com poupança doméstica. Isto significa, no caso dos EUA, que o volume de investimentos realizados no interior do país supera a poupança interna disponível para investimentos em quase 7% do PIB, sendo a diferença coberta pelos investimentos estrangeiros (diretos e indiretos), provenientes em boa medida dos países asiáticos.


 


 


Em outras palavras, o déficit em conta corrente gera a necessidade de financiamento externo ou de captação de poupança estrangeira para fechar as contas e impedir o colapso do padrão dólar. Por isto, os economistas dizem que os Estados Unidos demandam 2,4 bilhões de dólares diariamente do exterior para reproduzir seu controvertido padrão de vida, valor que corresponde ao saldo cotidiano (negativo) em transações correntes. O parasitismo aí implícito consiste no fato de que Tio Sam vive (cresce e consome) como um parasita, ou seja, à custa (da poupança) alheia (US$ 2,4 bilhões a cada 24 horas). O consumo parasitário, além dos próprios meios produzidos pela sociedade estadunidense (incluindo consumo produtivo, que em si constitui investimento), pode ser medido através do déficit comercial, ao passo que o rombo em conta corrente (6,5% do PIB em 2006) traduz com maior fidelidade o excesso de investimentos em relação ao que o país poupa para esta finalidade, refletindo o parasitismo na taxa de investimento (4).



 
Conseqüências dramáticas



 


De tudo que foi dito acima podemos inferir alguns efeitos do parasitismo no ciclo de reprodução do capital dentro e fora dos EUA, cabendo assinalar:


 



A dependência. Conforme notaram os economistas, o crescimento das economias nacionais, que na conceituação marxista corresponde à reprodução ampliada (expansão) do capital e do capitalismo, depende fundamentalmente da taxa de investimentos, que por sua vez devia estar associada à taxa de acumulação de capitais. No caso dos EUA, em função do déficit externo, parte substancial dos investimentos (cerca de 7% do PIB) é bancado por capitalistas e governos estrangeiros, o que significa que a taxa de investimentos é maior do que a taxa de acumulação de capitais (ou, em outras palavras, de poupança destinada a investimentos). Se a fonte de financiamento externo secar ou minguar (como chegou a ocorrer em 2001) a reprodução ampliada (ou o crescimento da economia) dos EUA fica inviabilizada, sobrevindo inevitavelmente um processo de estagnação, crise, recessão, redução do consumo e inflação (desvalorização) do dólar. É preciso compreender, assim, que a reprodução do capitalismo estadunidense tornou-se dependente do capital estrangeiro, muito embora esta dependência não seja da mesma natureza da que se verifica nos países mais pobres e atrasados.


 



Centro irradiador de crises. Alguns economistas, como Paul Volcker (ex-presidente do banco central americano), estimam que a cobertura da necessidade de financiamento do balanço de pagamentos dos EUA demanda a captação de aproximadamente 80% da poupança mundial. Números do FMI, que no caso não pode ser acusado de parcialidade antiimperialista, indicam que em 2006 Tio Sam consumiu, sozinho, 65% da poupança mundial disponível para investimentos externos, cuja magnitude não é infinita. É por si só evidente que isto constitui um fator de perturbação intermitente dos fluxos de capitais pelo mundo, cada vez mais voláteis, o que prejudica principalmente os países mais pobres.


 



Juros mais altos nos EUA. A necessidade de financiamento externo também tem papel determinante na definição da política monetária do império, induzindo o FED (Federal Reserve, o banco central estadunidense) a manter taxas básicas de juros mais elevadas que as praticadas na Europa e no Japão para atrair investimentos estrangeiros. O viés altista da política monetária norte-americana, daí decorrente, tem impactos notórios sobre as demais economias nacionais, especialmente na América Latina. Vale lembrar, a respeito, que quando o FED (então presidido por Paul Volcker) aumentou para 21% ao ano as taxas básicas de juros, em agosto de 1979, com o objetivo de evitar o colapso do padrão dólar e combater a inflação, a crise da dívida externa em nossa região tornou-se inevitável e no Brasil fez o crescimento do PIB despencar da média de 7% ao ano (entre 1930 a 1980) para pouco mais de 2%. A crise cambial mexicana, em 1994-95, também foi precedida (e não por coincidência) por uma expressiva alta dos juros nos EUA, que desde então têm sido um centro irradiador de crises.


 



O dólar na corda bamba. A acumulação de déficits comercial e em conta corrente, ao ampliar o passivo externo líquido dos EUA, é como uma bomba relógio instalada no coração da (des)ordem monetária mundial, pois vem corrompendo os fundamentos da hegemonia do padrão dólar no compasso da crescente necessidade de financiamento externo, disseminando instabilidade nos mercados cambiais. Qualquer redução no fluxo de capitais estrangeiros em direção ao centro do império provoca a depreciação da moeda líder, como vem ocorrendo ao longo deste ano. O parasitismo traduzido nesta relação de dependência frente ao capital estrangeiro promove “a lenta agonia do dólar norte-americano”, conforme notou o economista cubano Faustino Cobarrubia, colocando em jogo a própria “hegemonia dos EUA e o destino manifesto do sistema monetário e financeiro internacional nascido em Bretton Woods”. Nenhum observador sensato acredita que o déficit americano seja sustentável indefinidamente, de forma que mais cedo ou mais tarde sua correção se mostrará inevitável, implicando um ajuste do nível de consumo à renda efetivamente produzida, assim como da poupança ao investimento, com queda das importações, do padrão de vida e do poder de compra do dólar (6).


 



Alimentando rivais. Enquanto não chega a hora de ajustar as contas, como que por ironia da história o parasitismo do capitalismo estadunidense vai alimentando as potências rivais e impulsionando o desenvolvimento desigual das nações, contribuindo para transformações de vulto, embora silenciosas, na correlação de forças no interior da ordem econômica internacional. O déficit comercial dos EUA tem sido a principal via de realização do capital e dos lucros para as grandes empresas exportadora da Ásia e da Europa; é também a fonte mais confiável das ricas reservas que vêm sendo acumuladas pela China. Serve, assim, contraditoriamente, à reprodução ampliada de capitais rivais (do ponto de vista americano), originando um lucro que é a principal base da exportação de capitais do Japão e da Alemanha (para citar dois exemplos) e que também ajuda a difundir a influência econômica chinesa pelo globo. Este é um dos pontos em que o parasitismo se revela, ao longo do tempo, um fator de decomposição econômica do imperialismo hegemônico, como bem notou Lênin no livro “O imperialismo, fase superior do capitalismo”.   


     



Notas



 


(1) Déficits ou superávits eventuais em conta corrente, que ocorrem em um ou mesmo alguns poucos anos e depois são revertidos, não transformam necessariamente um país em importador ou exportador de capitais, mas a coisa muda de figura quando se trata de saldos negativos acumulados em médio ou mesmo longo prazo, como acontece com os países citados.



(2) O fato de que os Estados Unidos se transformaram em importadores líquidos de capitais não significa que as transnacionais americanas já não exportam capitais, o que elas de fato continuam fazendo e em volume apreciável; significa, porém, que o saldo entre exportação e importação de capitais é negativo ou que eles importam mais capitais do que exportam, deixando de ser o ator principal no rico mercado de fusões, aquisições ou abertura de novos negócios no exterior, conforme notou o historiador marxista Eric Hobsbawm.



(3) Penso que os investimentos realizados pelos bancos centrais não constituem fluxo de capitais, pois este pressupõe a empresa capitalista como sujeito da ação (ou do investimento). Será também preciso levar em conta que as razões que orientam os investimentos públicos não são necessariamente as mesmas que comandam a iniciativa privada, capitalista. Esta obedece em primeiro lugar ao impulso pela maximização dos lucros, que não é o critério exclusivo nem forçosamente o principal de um determinado Estado nacional. Embora os chineses sejam exportadores de poupança creio que não são, na atualidade, exportadores de capitais (predominantemente). A China não é uma potência capitalista. Sua poupança excedente, disponível para investimento externo, é traduzida sobretudo pelas reservas (em torno de US$ 1,2 trilhão), controladas pelo Estado, que vêm sendo aplicadas principalmente em títulos da dívida pública estadunidense.
Por outro lado, quando o país é excessivamente endividado ou tem muitos compromissos decorrentes do passivo externo a honrar o superávit em conta corrente pode estar servindo apenas à amortização de dívidas em vez de investimentos externos ou exportação voluntária de poupança ou capitais.



(4) Note-se que, contraditoriamente, o consumismo exacerbado e parasitário da sociedade norte-americana, concentrado nas famílias mais ricas, tem convivido com um persistente arrocho dos salários reais.



(5) A informação consta de um artigo dos economistas Rick Wolff e Max Fraad Wolff, da Universidade de Massachusetts. “Quando o endividamento ascende e os rendimentos estagnam”, explicam, “as poupanças tornam-se negativas. Os EUA têm uma taxa de poupança líquida negativa ano após ano”, por isto tomam emprestado dois terços da poupança mundial. “De onde vem todo este crédito? A desregulamentação financeira global e a fragilidade crescente dos intermediários financeiros enquadram a resposta. O dinheiro barato dos que poupam muito no sudeste asiático e os excedentes dos exportadores de petróleo encontram o seu destino no financiamento dos consumidores americanos. Assim, o FMI relata que em 2006 os EUA tomaram emprestadas 65% das poupanças disponíveis no mundo. Nós geramos cerca de 22% do PIB global e temos 5% da população da Terra. Parece que a nossa dívida e o nosso consumo privado moveram-se para fora de limites sustentáveis” (“Velhas distribuições, nova economia”, resistir.info).



(6) “La lenta agonia del dólar norte-americano” é o título de um artigo de Faustino Cobarrubia, coordenador do Grupo de Comércio e Integração do Centro de Investigação da Economia Mundial (CIEM), publicado na revista “Temas de Economia Mundial”, nº 10 (agosto 2006), que pode ser acessada no sítio www.ciem.cu 

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