Educar é plantar tâmaras

Pensemos no professor Hemetério, que plantava tâmaras com ciência, espírito generoso e coragem para vencer a pobreza e o racismo

Por Danilo Moreira, Subsecretário de Estado de Educação do Maranhão

O nome dele é Hemetério 
Educador que veio do Império
Professor que falou sério
A história do negro neste país
Hemetério sabe o que diz…
Ele veio de Codó
veio de Codó
Que fica no Maranhão
(Samba do Hemetério - Aderaldo Gil)

Um antigo ditado árabe ensina, quem planta tâmaras, não colhe tâmaras. O enigma da frase se desfaz, ao sabermos que demora de 80 a 100 anos para provarmos o doce fruto da tamareira. Quem a plantou? Gestão pública, de certo modo, é como plantar tâmaras. Apesar de todo dia fazermos o que há para hoje, e de as necessidades serem para ontem, é o amanhã que nos julgará. São muitos os desafios, não poucos os obstáculos no caminho que leva ao sonho de mudar para melhor a vida das pessoas. Há barreiras de todo o tipo, principalmente aos mais pobres, negros, indígenas e mulheres.

É perceptível o quanto o racismo, as desigualdades de gênero, raça e classe impedem nosso desenvolvimento e o exercício de uma cidadania plena. Lutar pela superação destes marcadores sociais é um desafio bastante atual, mas faz parte uma luta que não começou hoje. Muito desta contribuição e seus personagens encontra-se oculta ou invisibilizada. Lembrar às gerações atuais que os nossos passos vem de longe, é uma das nobres missões que os educadores podem cumprir.

Por isso, evoco a trajetória de um professor maranhense, nascido em 1858 na cidade de Codó. Ele viveu intensamente as três últimas décadas da escravidão e do Império, antes da Lei Áurea (1888) e da República (1889). Seu nome é Hemetério José dos Santos, e sua bela história de amarga luta chega a nós como doces tâmaras de exemplo

Maria era o nome da mãe de Hemetério e seu pai era um fazendeiro escravista. Ele teve a sorte do acesso à educação, apesar da lei da época vedar a escola formal à população negra, porque escrava. Ao contrário da América Espanhola, a Independência do Brasil manteve a escravidão, ignorando os alertas de José Bonifácio, ainda em 1823, à Assembleia Constituinte dissolvida por D. Pedro I. Ele perguntava: “como poderá haver uma constituição liberal e duradoura num país continuamente habitado por uma multidão de escravos brutais e inimigos?”. E além de denunciar o crime que era a escravidão, defendeu as primeiras políticas públicas para impedir que a injustiça se perpetuasse. A educação como uma política universal essencial para mudar essa realidade e o futuro.

Hemetério teve duas influências decisivas na sua trajetória: a oportunidade de estudar e o enfrentamento à dura realidade do racismo. Sua inteligência foi reconhecida desde muito jovem. Com apenas 17 anos, já estava na Capital do Império, o Rio de Janeiro, e conquistou o cargo de Professor de francês no Colégio Pedro II. Chamou a atenção do Imperador D. Pedro II, que o assistiu. Tornou-se o primeiro professor negro do Colégio Militar, aos 32 anos, a partir de 1890.

Mesmo essas vitórias não o pouparam do racismo, inclusive em sala de aula, e essa experiência permeia toda sua obra. Pais e filhos da elite tiveram de engolir o professor negro, elegante, armado de erudição e coragem. Hemetério tornou-se um cientista, escritor, filólogo e historiador. Sua gramática foi adotada no Colégio Militar. Depois, publicou o Livro dos Meninos, uma obra didática voltada para seu tempo e em defesa do Brasil como sociedade multirracial. Não se contentou em dar aulas no Colégio Militar e criou uma escola noturna para ensinar analfabetos e também deu aulas na Escola Normal Livre, frequentada por mulheres trabalhadoras.

Escrevendo em jornais, Hemetério era respeitado polemista, rara voz negra na defesa da História da África, combatendo preconceitos vivos até hoje. Enfrentou o racismo da imprensa várias vezes. Seus filhos também foram vítimas e ele foi aos jornais em sua defesa, mas não apenas deles. Chegou a apontar na obra de Machado de Assis estereótipos reservados aos personagens negros. Estudou a Balaiada e resgatou aspectos importantes daquela luta histórica protagonizada por negros. Hemetério faleceu em 1939 aos 81 anos e um dos legados que deixou foi transformar o próprio nome em sobrenome. Hemetério virou a herança e o exemplo também para os seus descendentes.

Paulo Freire nos alertou, que se “a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”. Em seu tempo, Hemetério jamais foi seduzido pelo status quo. Dedicou-se a abrir caminhos. Se rebelou por uma liberdade ainda longe no horizonte. Nas senzalas, nas ruas, no Direito, na literatura, na sala de aula, muitos precisaram ter gestos generosos, cujos frutos eram só a esperança de um futuro mais doce para todos. Hemetério fez na educação a sua luta.

Hoje, com esse mesmo compromisso na educação pública, lamentamos a falta que faz a escola na vida da comunidade. O impedimento de aulas presenciais que iniciou pela pandemia e se prolongou pelo negacionismo criminoso contra o povo brasileiro, trouxe também imenso prejuízo à infância e à juventude, que têm na escola um espaço importante nas suas vidas e de suas famílias.

Segundo o IBGE, o Maranhão tem 1,9 milhões de jovens. Destes, 76,8% são negros. Na história e no cotidiano, grande parte revive a luta do acesso e da permanência vivida por Hemetério, travada contra o racismo e a pobreza e agravada pela epidemia da COVID-19 e pelo descaso federal. Sabemos o quanto a escola faz falta na vida dos jovens, das suas mães, de quem a constrói, trabalhando, ensinando e aprendendo. Hoje, no Brasil, em vez de se plantar tâmaras, tenta-se aniquilar a próxima geração. Contra isso está o esforço do Governo Flávio Dino, que enfrenta a pandemia sem deixar de lado a valorização da educação pública em todas as suas dimensões.

Recentemente superamos a marca 170 mil profissionais da educação vacinados e já planejamos o retorno às aulas presenciais para o segundo semestre, após 18 meses de ensino 100% remoto. Nosso desafio é fazer outra vez florescer a vida nas escolas para realizar sonhos. Precisamos superar barreiras e recuperar um tempo precioso, para receber bem e com segurança as filhas e filhos da população trabalhadora e desempregada do Maranhão. E com os avanços tecnológicos implantados recentemente, vamos chegar mais longe ainda, aliando aulas presenciais seguras à tecnologia.

Nunca desistimos, mas sabemos que poderemos entregar resultados melhores assim que as condições sanitárias permitirem e as presenciais retornarem, mesmo que parcialmente. Resistimos e fizemos muito, mas precisamos ser rigorosos na defesa da educação. Semear, mesmo sabendo que grande parte dos frutos não serão colhidos por nós.

Como se faz um Pelé e um Milton Santos? De onde surge uma Conceição Evaristo, uma Djamila Ribeiro? De que é feito um Pixinguinha, um Emicida?

Nosso “delírio comunista”, aprendido de Paulo Freire, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Hemetério, é abrir largas avenidas para que surjam tais talentos, a partir de uma imensa base de cidadãos e cidadãs qualificados, numa escola pública bela, atrativa, funcional e democrática, para nossa juventude poder brilhar no desenvolvimento do Maranhão e do Brasil.

Pensemos no professor Hemetério, que plantava tâmaras com ciência, espírito generoso e coragem para vencer a pobreza e o racismo. É um bom exemplo para a nossa política educacional, semear um futuro de desenvolvimento e igualdade de oportunidades.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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