É necessário democratizar as conquistas científicas da humanidade

No capitalismo, o conhecimento técnico-científico, e suas mais variadas aplicações, é usurpado por uma minoria, que o utiliza como forma de controle e manutenção de seus privilégios, instrumento na luta de classes.

Cientistas (Reprodução/Internet)

Se você pudesse voltar no tempo e fizesse uma parada no início do Pleistoceno Médio (por volta de 300 mil anos atrás) veria que o Homo sapiens, da época, pouco diferia do atual, na aparência física. Se um deles vestisse roupas contemporâneas e recebesse um bom corte de cabelo, transitaria pelas ruas sem chamar a atenção. Entretanto, sua mente não teria muita relação com a dos humanos modernos – e não temos ideia de como, ele, vivenciaria tal experiência. É controversa a possibilidade de que produzisse cultura, no sentido que hoje é atribuído ao termo.

Avançando para meados do Pleistoceno Superior (40 mil anos atrás), além da aparência física, você perceberia que a estrutura da mente, de um humano médio da época, seria muito semelhante com a dos seres humanos do presente. Evidência disso está no fato de que legaram magníficas pinturas e esculturas, conheciam a música, produziam sofisticados instrumentos de caça e de pesca, se valiam dos ciclos da natureza e realizavam complexos rituais. Provavelmente, contavam histórias ao redor de fogueiras, relatando as experiências cotidianas, buscando explicações para os fenômenos circundantes, trocando técnicas de produção de ferramentas e de caça, se protegendo de animais selvagens e contemplando as estrelas.

Se a estrutura física e mental dos humanos permanece basicamente a mesma, há milhares de anos, por que, ao olhar para o passado, tem-se a impressão de que tudo mudou tão radicalmente? Essa constatação tem mais relação com as transformações operadas externamente do que com as eventuais mudanças no âmago da espécie – mudanças evolutivas, geralmente, levam milhares de anos para ocorrer. A capacidade de alterar o ambiente circundante, a partir da percepção das leis e fenômenos da natureza, e da transmissão desses conhecimentos, culturalmente, possibilitou uma mudança extraordinária nas paisagens planetárias e no estilo de vida dominante. Goste-se ou não do resultado, isso é fruto do trabalho e da inventividade humana.

Na maior parte da história, o mundo era muito menor e, paradoxalmente, muito maior. Menor porque, a maioria dos indivíduos passava sua vida atrelados a paisagens e acontecimentos restritos a poucos quilômetros e a poucas pessoas – com a exceção parcial de povos caçadores-coletores migratórios, que percorriam grandes distâncias, e de quem vivia no centro de grandes impérios, onde travava contato com grandes contingentes populacionais. Maior, porque as distâncias não podiam ser vencidas facilmente, a Terra, da qual o grego Erastóstenes de Cirene mediu a circunferência com surpreendente precisão, ainda no século III a.C., parecia não ter fim. 

Hoje, essa perspectiva foi invertida. O mundo se tornou pequeno, seja pela possibilidade de vencer as distâncias, fisicamente, através dos mais variados meios de transporte, seja pela presença incorpórea através dos meios eletrônicos de comunicação. Por outro lado, se tornou muito maior! O número de pessoas que perpassam a vida de um indivíduo, através das mais variadas formas de interação, chega à casa dos milhares e os locais onde pode ir, visitar, conhecer, aumentou enormemente, bem como as informações a que pode ter acesso, que lhe permite perscrutar todo o conhecimento humano, acerca do universo, da história e da vida.

Mas não se trata apenas disso. Nossos antepassados, e isso persistiu até o início do século XX,  tinham uma expectativa média de vida inferior a trinta anos, não podiam conservar alimentos por longos períodos, pouco sabiam sobre as origens das doenças e muito pouco podiam fazer para combatê-las, não se beneficiavam de vacinas, anestesias, analgésicos, anti-inflamatórios e antibióticos – uma fratura ou uma simples inflamação poderia ser fatal. 

Remédios, televisão, telefones celulares, cerveja gelada, água tratada, microprocessadores, aviões, estradas, satélites, microscópios, produtos de limpeza, ressonância magnética, queijo fresco, depiladores elétricos, Netflix, luz elétrica, máquina de lavar, vacinas, transplante de órgãos, impressoras 3-D, motor a combustão, batom, tênis, internet, assim como milhares de outras invenções e descobertas que se tornaram parte do cotidiano, são resultado de um esforço coletivo de toda a humanidade – uma cadeia de descobertas e transmissão de conhecimento que, direta ou indiretamente, envolve todos os humanos que já nasceram no planeta. A partir do conhecimento adquirido e acumulado por gerações, a ciência e a tecnologia fazem avançar as fronteiras das possibilidades humanas, melhorando significativamente a qualidade de vida das pessoas.

Entretanto, ainda persiste grande desconfiança em relação à ciência, inclusive no campo progressista e de esquerda. Critica-se o terraplanismo e os movimentos antivacina, mas defende-se a homeopatia e nega-se o evolucionismo biológico. Desconsidera-se os avanços científicos, propugnando um retorno a um passado idílico, que os sonhos criam mas que a realidade histórica não sustenta. A trajetória humana está eivada por fomes, guerras e epidemias! Ao contrário do que é propagado, começa-se a sair desse lodaçal existencial a partir da utilização sistemática do conhecimento técnico-científico.

No capitalismo, esse conhecimento, e suas mais variadas aplicações, é usurpado por uma minoria, que o utiliza como forma de controle e manutenção de seus privilégios, instrumento na luta de classes. Uma das principais tarefas, daqueles que defendem uma sociedade próspera, igualitária e soberana, é atuar no sentido da democratização e socialização plena das façanhas do empreendimento humano, bem como do instrumental e do método que subjaz a produção desse conhecimento. Neste momento de grave crise, potencializada pelo coronavírus, as contradições inerentes às atuais formas de organização econômica, social e política se desnudam. É uma excelente oportunidade para se discutir e agir para a edificação de um novo tipo de sociedade.

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