Do Estado moderno ao racional 

Nesta nova etapa da série, o tema da democracia e participação (parte 9), se confronta com a sua face mais desumana, na concentração de meios de administração ocorridos nos primeiros Estados modernos e do encontro com o capitalismo, gerando a forte racionalização dos procedimentos administrativos em oposição à realidade social e ao espírito humano.

O avanço do Estado, perante as demais forças sociais – igreja, família, ambiente de trabalho –, proporcionou enormes transformações nas relações humanas, não apenas por conta das descobertas científicas, ou do ritmo da máquina, imposto pela revolução industrial, mas pela ampliação sistemática da burocratização da vida.

Esses efeitos, hoje são sentidos pela maioria apenas quando o Estado promove contra os indivíduos situações de constrangimento (razão da repulsa social contra as questões estatais), mas para o entendimento desses efeitos são necessárias análises de suas origens no avanço do poder acumulado pelas nações imperiais dos séculos de 16 a 18.

Os Estados modernos foram descritos pela primeira vez por Sun Tzu (arte da guerra), ainda que manuscritos deste tipo sejam mais lembrados após Maquiavel, ao relatar os tipos de reinos e repúblicas existentes, e como se consolidaram através da virtù ou força desde os tempos remotos, sendo feudos e principados descritos como se fossem empresas familiares. Portanto podem ser retratados como empreendimentos antigos e bem sucedidos que foram se consolidando ao redor de grupos de poder (antigas agremiações feudais, partidos, empresas e posteriormente nos parlamentos).

Com o avanço desses negócios, foram necessários a especialização e o controle administrativo. Surge disso a Burocracia, que tem origem na fusão de dois termos, o Bureau vindo do francês (escritório), e o Krátos vindo do Grego (poder ou regra), ou seja, o termo surgiu para designar negativamente um tipo de poder que vinha dos gabinetes, uma forma distinta de dominação, não sendo nem democrática, carismática, econômica ou política. Se apresenta como racional, pela dissimulação de regras aparentemente impessoais e neutras que acabam sendo usadas para os fins daqueles grupos que estejam no comando literal dos papéis e das mesas.

Refere-se a um poder que não vem da democracia pelo voto, nem da legitimidade dos governantes (por herança ou virtù), mas, literalmente, na origem da palavra, “um tecido escuro” que cobria as mesas de negociação de antigos comércios e escritórios existentes no ancien-régime, daí deriva o dito popular, negociado por baixo dos panos.

Os Estados modernos, avançam na burocracia, devido as necessidades crescentes de organização, vindas do tamanho e complexidade das organizações estatais, que passaram a exigir maior valorização dos procedimentos e normas, enquanto aqueles que detém o conhecimento das regras (e seu potencial de mediação e de barganha patrimonialista) negocia permanentemente seu poder dentro desses regimes, criando uma ditadura das regras, que se perpetua até a atualidade – aquilo que Benjamin chamou criticamente no começo do século 20 de sociedade eminentemente técnica e racionalizada.

Não apenas as transformações sociais decorrentes da perda do poder religioso, por um lado, e, por outro, o avanço das ciências e sociedades industriais foram responsáveis pelo avanço dos Estados atuais, mas um conflito, em especial, redefiniu o mapa geopolítico da Europa e influenciou a organização racional dos Estados modernos no mundo, as guerras napoleônicas. O enorme conflito atingiu a Europa e Ásia, redefinindo também o mapa das colônias nas Américas que se libertaram diante do caos ocorrido em seus respectivos impérios. Situações que forçaram os Estados, monarquias e repúblicas europeias a se reunirem em um congresso em Viena em 1815, para definir um conjunto de medidas que pudesse impedir que uma única nação pudesse ter poder sobre as demais.

Nesse congresso, foram definidas as condições mínimas em que territórios poderiam ser considerados Estados e nações, e que, sendo reconhecidas pelas demais, não poderiam ser invadidas com justificativas espúrias. Ao longo do século 19, tratados internacionais forçaram a uma corrida burocrática interna em territórios que buscavam soberania, através do reconhecimento de questões de identidade nacional – como história, cultura, língua, e definições de marcos geográficos, bem como demonstração de aparelhos burocráticos, econômicos e militares – que pudessem atestar a condição de membros do seleto conjunto de apenas 39 nações que foram reconhecidas naquele primeiro congresso.

Enquanto no campo militar, administrativo e geopolítico internacional, as nações eram forçadas a se organizar. No pensamento científico, Descartes, Spinoza, Kant, Locke, Hume, Comte, Hegel, Marx, William James, contribuíram para impor ao mundo a visão da razão absolutista da fé na ciência, seja racional, instrumental, crítica, positiva ou pragmatista, por sobre as demais formas sociais das experiências, expressões, crenças existentes. Acreditando, cada um deles, serem mais racional que seus antecessores, deram ferramentas argumentativas que foram usadas das mais diversas formas, pelas mais diferentes correntes ideológicas.

Se no tempo da “iluminação”, acreditava-se romper com o misticismo e com a metafísica, valorizando a experiência empírica, como método para a descoberta da verdade e emancipação dos seres humanos (KANT), com o positivismo de Comte, se atingiu o ápice da crença na pseudociência, ao sugerir que o método positivo (científico) seria o único capaz de explicar a sociedade. A Física Social (comparada com fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos) inaugurou a matéria que chamou de sociologia, não apenas para estudar a sociedade, mas tendo seus próprios fins evolutivos, positivistas, pretendia ajudar a humanidade em sua marcha natural, como espécie que considerava a mais evoluída, e que seguia rumo à perfeição. Fato que se comprovou como um retumbante delírio do autor, que acabou transformando o positivismo em uma religião.

Os pensamentos dos idealistas dos séculos 18 e 19, ainda que pouco científicos, e constrangedoramente eurocentristas, fechados em si mesmos, foram altamente influentes no desenvolvimento dos valores adotados pelos primeiros Estados racionais, e a consolidação da necessidade de organização do corpo social. O positivismo proporcionou a rigidez necessária para que ocorresse a forte concentração do aparelho burocrático moderno, sendo este um mal enraizado, com o qual, morbidamente, a humanidade ainda convive.

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