“Divino Amor” – Entre o dogma e o prazer

Em parábola em que expõe dogmas, crença e liberdade sexual, cineasta pernambucano Gabriel Mascaro discute religiosidade e relação amorosa.

No universo do panteísmo no qual só Deus é real, as emanações para suas criaturas se prestam a construir uma junção de crença e liberdade. O corpo cederá ao trabalho, o coração ao amor e a cabeça se prenderá a dogmas e rituais. Restará ao religioso edificar o templo para que os casais possam quebrar os tabus da fidelidade às vistas um do outro. O que exigirá deles se impor limites para preservar a relação e a confiança um no outro. Este é o tema central deste “Divino Amor” construído pelo cineasta pernambucano Gabriel Mascaro (24/09/1983) e seus co-roteiristas Rachel Daisy Ellis, Esdras Bezerra e Lucas Paraizo no Brasil de 2027. 

Desde as primeiras sequências, o espectador se prende à inovadora e ousada abordagem deste tema. Não de forma usual, lhe interessa quebrar tabus, sem fazer desnecessárias provocações para gerar polêmicas. A Igreja Evangélica não é tratada apenas como templo da fé, mas de socialização, evangelização e, sobretudo, de liberação do corpo e do desejo para desfrutar do prazer sem culpa. É a liberdade, não a repressão que torna o fiel consciente de seus sentidos, emoções e estímulos ao ver-se capaz de levar o outro ao êxtase e sentir-se um ser humano pleno de si.

Não se trata, é claro, de uma tese imagética e dramatúrgica sobre como superar os impasses impostos pelos dogmáticos e fundamentalistas. Estes estão em busca da junção das Religiões Protestante e Muçulmana com o Estado burguês ou Monarquia Ditatorial. Fato tão comum no Oriente Médio, na Ásia e nos governos europeus de extrema direita, casos da Polônia e da Hungria. E experiência em curso no próprio Brasil, já com visíveis e devastadoras consequências. O Estado Laico, solução para preservar os direitos dos fieis de todas as religiões, vem sendo contestado.

Fiéis frequentam a Igreja do Divino Amor

O modo como Mascaro estrutura sua narrativa em tema tão complexo e tabu no Brasil de hoje é de quem procura levar o espectador à reflexão. Daí centra os entrechos no casal entregue a seus impasses e a buscar soluções para eles. A morena Joana (Dira Paes), funcionária de um cartório oficial, companheira de Danilo (Júlio Machado), é quem mais se envolve. Já beirando a meia idade, eles frequentam a “Igreja do Divino Amor”, cuja pastora afrodescendente (Teca Pereira), além fazê-los ler os versículos da Bíblia, orienta-os para interagir com os demais fieis. O objetivo aqui não é revelar seus percalços ou porque se entregam a Jesus Cristo.

Há uma comunhão entre a crença e a liberação do corpo para o êxtase. É quase uma terapia a resultar numa conjunção de entrega ao outro para satisfazer seus desejos e expor seus próprios limites. Não de forma a afrontar ou chegar ao ponto de pôr em risco sua fé. Mascaro estabelece uma interação entre os fiéis como numa sessão grupal em busca do amor pleno. O outro não apenas compartilha da mesma crença como trata a/o parceira/o como o ser que libera seus instintos para o amor. Portanto não está longe dos rituais em louvor aos deuses como na antiguidade. E a liberação é orientada pela pastora para evitar os excessos quase naturais.

O que ela faz é tornar seu desejo livre da culpa, do medo e do temor que lhes foi incutido pelos dogmas cristãos milenares. Usar o corpo para o prazer e ainda variar de parceiro era e continua a ser uma falta para lá de grave. É pecado. Entretanto, nestas interações os fiéis quebram tabus, pois são liberados para duplas experiências extraconjugais. Busca-se livrá-los do que os reprimiu, tornando-os infelizes e incapazes de ver no/a outro/a sua fonte de paixão e prazer. E não só para a procriação. São casais que ao deixar o templo irão mais confiantes um no outro e em si mesmos. E se tornam seres liberados não para noitadas, mas para doar-se mais.

Filme de Mascaro lembra “Salò” do italiano Pasolini

Este tratamento dramatúrgico de Mascaro é tão ousado que faz lembrar os polêmicos filmes do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini (1922/1975). Principalmente de “Salò ou Os 120 dias de Sodoma(1975)”, baseado na obra homônima do francês Marquês de Sade (1740/1814), escrita em 1785. Nele bispos, fascistas e banqueiros participam de orgias sem fim. Atento aos detalhes e à matização de cenários, intepretação e a realidade histórica, Pasolini era visceral no tratamento dado aos personagens. E sempre de forma inovadora a romper barreiras, preconceitos e dogmas de forma original, sem temer qualquer censura.

Mas neste “Divino Amor”, Mascaro (Boi Neon, 2015) enverada por experiências igualmente ousadas, pois trata de revelar o quanto Joana é reprimida. Ainda está às voltas com a culpa, revelada em suas conversas noturnas e confidenciais com o pastor (Emílio de Mello), espécie de orientador para os ainda frágeis neste tipo de liberação. Há um divisor de entendimento ao descobrir seus limites, pois as experiências extras-conjugais lhes trouxeram o que, em si, já esperava por querer ser mãe. Só não contava o quanto Danilo seria afetado e que lhe imporia seus dilemas.

Em nada lembra a fiel a participar antes do ritual à beira do rio com crianças e adultos a lembrar os da idade média. A água simboliza a pureza e, no limite, a purificação do corpo e a liberação da alma. O que não é permitido aos impuros. Eis o seu dilema, ao responder às pressões de Danilo:” Eu não sei explicar”. Nem se sente culpada, tinha consciência do peso que representava ser uma mulher liberada. “Eu faria tudo outra vez”. É um ser diferente da que atende os casais no cartório em que trabalha.

Joana discute o seu problema com a afro

Ainda que o espectador se prenda aos seus impasses, Mascaro não a torna uma infiel vergada pelo peso da culpa. Faz um contraponto entre a Joana fiel da Igreja do Divino Amor e a experimentada funcionária do cartório oficial que atende os casais de baixa renda. Eles estão ali apenas em busca do reconhecimento da documentação de seu divórcio. Já passaram pelos gabinetes das varas de família onde confirmaram sua decisão de se separar da/o companheira/o e obtiveram o divórcio. Agora apenas reivindicam o devido registro de divórcio sem as altas tachas.

Mascaro a constrói como uma complexa personagem. Diferente da vista pelo espectador nas sequências do tema central. Ela ali é dotada de certa autoridade, emanada de sua condição de escrivã. Sente-se na posição de ainda tentar reconciliar os divorciados para que voltem a ser um casal. O espectador a vê agora sob um olhar diferente, ela é incisiva, dada a não contemporizar, como na sequência em pressiona a afro (Mariana Nunes) a ouvi-la, pois insiste na presença do ex-companheiro para juntos avaliarem a documentação do divórcio. É seu dilema que ela discute, não o da outra.

São nestes momentos que o tema central, estruturado como parábola cede espaço à realidade. É o cotidiano de Joana entrando em choque com sua função de mediadora tardia, num instante em que ela mesma estava entre a admissão de que algo falhara em sua vida e a urgência de aceitar o que estava sendo decidido pela afrodescendente à sua frente, louca para obter o reconhecimento dos termos de seu divórcio consignado nos documentos que lhe mostrava. É a realidade impondo o cruel dilema comum a ambas. Não só isto, também ela sentia o mesmo vazio da perda.

Mascaro trata personagens como seres humanos

Com sua câmera centrada nos personagens, a não perder um movimento deles, Mascaro não faz tese, tampouco não deixa de tratá-los como seres humanos. Flagra-os em instantes em que o vazio e a perda do outro os desnorteiam. Daí fechá-los em salas pouco iluminadas, em ruas tomadas pela escuridão ou os faz andar pelas ruas desertas de baça luz. É sua narrativa de pesada atmosfera, sem qualquer tendência a livrá-los de suas próprias escolhas. Mesmo Joana fez as suas e sequer recuou. Esta é a questão, os desenganos são duplos e a paixão pode se esvair dado o erro.

Há clara diferença no tratamento dos personagens criados por Mascaro. O pastor é evangélico experiente, zela pelo respeito aos ritos e dogmas da Igreja. As sequências reveladoras de sua radicalidade mostram o quanto ele ameaça Joana e não lhe dá sequer uma alternativa. Insiste em levá-la ao Conselho Administrativo que a julgará por ter infringido o que sabia ser proibido. É esta radicalidade que, enfim, leva Mascaro a criar em ficção a instituição Igreja que, ao invés de insistir na punição, caso da Divino Amor, cuida da libertação e da integração social do fiel ser humano.

Não apenas os espectadores que apreciam um bom filme saem do cinema com a certeza de que as escolhas do que os libera e os tornam felizes cabem apenas a eles. E também os casais cujo casamento desandou em desamor, ainda que sofram por eles e os filhos, têm o direito de optar por uma vida em que a felicidade é uma construção coletiva não uma imposição religiosa. A eles, como Mascaro trata neste “Divino Amor” cabe criar as condições para que voltem a ter uma vida harmônica e feliz. Neste caso a fé vem da crença pura, real, sem dogmas e ritos impositivos. Enfim um filme distante do realismo pueril e vazio da produção mundial de hoje.

Divino Amor. Drama. 100 minutos. Produção: Brasil, Dinamarca, México, Noruega. Trilha sonora: Juan Campodónico, Santiago Marrero, Otávio Santos, DJ Dolores; Montagem: Lívia Serpa, Eduardo Serrano, Fernando Spstein George Cragg; Fotografia: Diego Garcia; Roteiro: Gabriel Mascaro, Rachel Daisy Ellis, Esdras Bezerra e Lucas Paraizo; Direção: Gabriel Mascaro; Elenco:Dira Paes, Julio Machado, Teca Pereira, Emílio de Mello, Thalita Carauta.

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