Dia de festa

Os gostos, os desejos, as crenças e os comportamentos humanos são   infinitamente diferentes. Por que deveria ser única a forma de enxerga a vida e a morte

Deu um alívio ver aquele corpo estendido no chão. Tinha certeza de que a partir daquele momento poderia andar livremente, a qualquer hora, sem olhar de lado, apressar os passos, ficar com a barriga remoendo e o coração acelerado. 

Dizem que é preciso ter compaixão e que a morte alheia não deve ser celebrada. Morte é morte como vida é vida. Alguns odeiam jogo de futebol, outros choram com pessoas correndo atrás da bola. Tem gente que prefere à música ao silêncio da casa vazia, já outras pessoas, a multidão das festas. Há quem odeie pimentões, mas tem quem goste.

Não tenho dúvidas: os gostos, os desejos, as crenças e os comportamentos humanos são   infinitamente diferentes. Por que deveria ser única a forma de enxerga a vida e a morte? 

Era segunda-feira, rua deserta. Pensei que seria a minha última segunda-feira. Um soco atingiu meus seios, mas as palavras eram mais fortes que qualquer porrada. Escutei quase sem respirar que iria morrer. Uma arma de fogo apontada para minha cabeça me fazia escutar melhor. Depois daquele dia nunca mais fui a mesma. 

Dormia com uma de fogo nos meus pensamentos e encontrava aquele rosto ameaçador em cada pessoa que cruzava meus caminhos. A perseguição estava instalada, suava e me derretia em fezes a cada pensamento que não conseguia controlar. O medo se entranhava dentro de mim. 

Passei anos recolhendo migalhas de coragem e assassinando a felicidade. Eu sou a fulana que viva estava morta. Não sou a única, conheço cicranas de dores similares, mas nunca iguais, nem maiores, nem menores, dores do tamanho de cada uma.  Muitas não tiveram como contar suas histórias e tiveram suas dores enterradas com seus corpos.  

Hoje estou viva, meus olhos brilham.  Choro aliviando a dor.  A opressão continua existindo, a minha está aqui estendida no chão. Morreu de morte morrida, mas antes se demorou me fazendo sofrer. Não peço desculpas, a felicidade me contagia, estou rindo à toa. A liberdade há anos não me visitava, é dia de festa. Festa. 

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor