“Depois do Casamento”: Subterfúgio esperto

A visão da dinamarquesa Susanne Bier sobre os problemas das crianças abandonadas  termina em melodrama, que se transforma, também, num acerto de contas com o passado

Logo na abertura de “Depois do Casamento”, da dinamarquesa Susanne Bier, mergulhamos numa Bombaim, Índia, hiper-povoada, com imagens que remetem a inúmeros filmes já vistos e revistos. Crianças, adultos, veículos dos mais diversos tamanhos, transam entre eles, com uma normalidade de quem já se acostumou ao caos. Há, no entanto, uma diferença entre estas imagens e as dos filmes colonialistas dos anos 50, por exemplo. Nestes a figura do colonizador se impunha e a do indiano subalterno a reforçava, com o tratamento que se tornou clichê: shaib. O “senhor”, em seu sentido literal, era o inglês, com seus chapéus em cuia, bermudas e casaco cáqui. Representava, sem dúvida, o crepúsculo de um império cujo sol se reduzia a cada revolta e não mais brilharia, após a “revolução pacífica” conduzida por Gandhi e Nerhu.Agora, eles desapareceram para os escritórios refrigerados e os deserdados indianos continuam lá, descalços e esfaimados.
                    


 


Algo, porém, mudou na forma de registrar as contradições sociais indianas. As imagens agora se debruçam sobre eles, não de forma folclórica, para registrar sua submissão, mas para mostrar que as mudanças continuam urgentes. Nada daquele mudou tomado pelo misticismo, como o que dominava “Passagem para a Índia”, do inglês David Lean. E mesmo que houvesse, nos instantes finais, uma revolta pela forma como o médico indiano era julgado pelos ingleses, ainda era o olhar derradeiro do colonizador. Em “Depois do Casamento”, eles estão largados à própria sorte. É chocante a seqüência em que dezenas de crianças disputam, literalmente, um prato de comida. E, em seguida, panelas vazias, elas se dispersam a procura da próxima “refeição”. Elas não são, entretanto, o centro do olhar de Susanne Bier. Trata-se, apenas, da introdução do que virá depois.


                      



Personagem enfrenta as desigualdades sociais através de uma ONG


                     



Estamos diante de outra forma de abordagem do problema milenar indiano, uma sociedade de casta em que a mobilidade social é dificultada pela própria estrutura social. Para minorar o sofrimento das crianças, pois é delas que Susanne Bier trata, há Jacob Petersen (Mads Mikkelsen), idealista que enfrenta as desigualdades sociais através do trabalho voluntário, organizado por uma ONG. O olhar da diretora, então, desloca-se das crianças para ele, com seu jeito de perdedor, entregue a uma tarefa que, sabe, só ameniza a dor dos que tenta cuidar. Entre eles, seu afilhado Promold (Neeral Mulchandani), um garoto ao qual se apega e que, no final, atesta o quanto às questões econômicas influenciam as relações sentimentais. Ficamos, assim, diante do dilema posto a Petersen: submeter-se às exigências do capital e tentar salvar, na medida do possível, a ONG por ele administrada com enorme sacrifício e, por extensão, “garantir” o futuro de centenas de crianças marginalizadas.
                 



“Depois do Casamento” não é, pois, um filme sobre os dilemas do Primeiro Mundo e suas reflexões sobre os males causados aos bilhões de deserdados planeta afora. Diferente de “Sombras do Passado”, do alemão Florian Gallenberger, e muito menos a “Em Família”, da indiana Mira Nair, que tinham a Índia como principal tema. As imagens além de decantadas, poderem ser apreciadas e refletidas, nos colocavam em contato com questões centrais para o país hoje. Susanne Bier, pelo contrário, usa-o para contar uma história sobre perda de identidade, busca do pai, fracassos, reencontros e o confronto com a morte. A Índia é tão só o mote que impulsiona a história e opõe visões sobre a utilização de dinheiro em projetos sociais. Percebemos, ao cabo de 120 minutos que, a exemplo de “Brothers”, ela, a diretora, parte de entrecho aparentemente significativo para mergulhar num melodrama, sem pudor algum. Suas imagens; ágeis, se atém às relações do industrial bonachão, Jorgen (Rolf Larsgard) com sua mulher Helene (Sidse Babett Knudsen), sua filha Ana (Stine Fischer Christensen) e seus filhos gêmeos, Martin e Morten.


                     



Há no filme tendência ao acerto de contas


                     



Há em “Sombras do Passado” uma tendência ao acerto de contas. Petersen e Helene consigo mesmos, Jorgen com seu presente e Ana, em princípio angelical, com seu futuro, mas que depois mergulha numa inquietação que atraí para si toda a atenção dos demais personagens e, por que não, do próprio público. É que, na urgência de salvar sua ONG, Petersen vai, aos poucos, descobrindo outras razões para estar ali. Susanne e seu roteirista habitual Anders Thomas Jensen, baseados em história sua e da diretora, o fazem ir de um canto ao outro, catatônico, tentando entender a razão de tanta benemerência por parte de Jorgen, que pretende ajudá-lo, sem justificar porque o faz. Enquanto o enredo oscila entre uma exposição e outra, Susanne vai puxando os novelos e desvendando o passado de cada um dos personagens. O que se vê não é bom para ele, Petersen, e tampouco para Helene. A cada revelação ambos se reagem e, ainda assim, se vêem presos a um passado que preferiam esquecer.
                     



Interessante em “Depois do Casamento” é o comportamento dos personagens. Ao invés de mostrá-los frios, cerebrais, Susanne os faz ter emoções explicitas, em que se diz o que se sente e se fala o que se quer. Às vezes há silêncio, noutras, eles se derramam, ficam um nos abraços do outro, como disso dependessem para sobreviver. As lágrimas afloram, seguidas de frases reveladoras. Surpreendente para um gênero tido como menor, embora salvo nas últimas décadas por Almodôvar, com mais espalhafato e cor. Há todo momento, lembramos do clichê “dramalhão mexicano”. Principalmente na seqüência central para o filme; dominada por um Jorgen aos prantos. Esperava-se o recurso da elipse, o diálogo deixado pela metade e o sentido a cargo do espectador. Susanne o faz desmanchar-se como ser humano, de persona equilibrada, senhor de si. É o desestruturar de um homem cuja vida precisa ter um sucedâneo com a contribuição de Petersen.


               



Diretora não questiona razões da miséria do 3º Mundo


               



Este entrecho, depreendido ao longo do filme, é o que explica a razão de Petersen esta ali. Jorgen, típico capitalista, dono de uma fábrica de elevadores internacional, faz seu derradeiro lance, de maneira a que seu oponente se transforme num aliado. Suas razões não são nada nobres, uma vez que o faz em detrimento daquilo a que Petersen deixou na Índia. Este entrecho subjacente, é que tornam as camadas deste melodrama menos enfadonhas, repetitivas e baseadas em personagens que agem por razões expostas em situações extremas. Nenhuma razão altruísta, então, impulsiona Jorgen, igual a tantos em sua situação. Petersen; por quem torcemos em razão da situação pré-falimentar de sua ONG, se vê atraído pela armadilha que lhe monta Jorgen e, num final, surpresa, optar por um caminho mais cerebral e condizente com a sua condição atual. Precisa se redimir de seus erros e encontrar o rumo certo. Podemos querer outra opção, cabe a ele, no entanto, saber se conduzir.
                 



Longe da concepção do “Dogma”, movimento liderado por Lars von Trier e Thomas Vinterberg, Susanne Bier estrutura seu filme de forma a deixar ao público o entendimento final. É o que o salva de ser mais um melodrama. O visto na tela não é o plano montado por Jorgen. Há algo mais. Se a ONG e as crianças indianas são uma preocupação, ela demonstra olhar o Terceiro Mundo a partir de instituições voluntárias, sem adentrar a discussão de responsabilidade. Notadamente por fazer de Jorgen alguém que brande em alto e bom som que sua empresa logo se expandiria por outros países asiáticos. O lucro então é o cerne da questão, não os famintos e deserdados do mundo. Susanne Bier ainda tenta, via Petersen, discutir esta questão, porém fica pela metade. Seu compatriota não questiona nem a burguesia dinamarquesa nem a estrutura de casta indiana. Sua ONG busca amenizar o sofrimento, não dizer porque milhões de crianças perambulam famintas pelos becos, ruas e avenidas de Bombaim.


                 



Às vezes, ela e seu roteirista quase chegam ao ponto, logo o deixam em favor do melodrama. E a questão da identidade, problema de Petersen, conflito freudiano, questão de Ana, e hesitação entre um homem e outro, dilema de Helene, logo os desviam para outro lado. Talvez seja querer demais, entretanto, as linhas mestras para este tipo de análise estão em “Depois do Casamento”. Fica, no final, a certeza de que outras obras serão necessárias para revelar as profundezas da globalização; vinda da descoberta do “Novo Mundo” e do “caminho marítimo para as Índias”, até desembocar na etapa atual, quando nações de 1º Mundo acreditam estar contribuindo para minorar a fome do 3º Mundo, por meio de bem intencionados gestores de ONG. A decisão tomada por Petersen demonstra isto, sem muito subterfúgio.


 


 


“Depois do Casamento” (Efter Brylluppet). Drama. Dinamarca/Suécia. 2006. Roteiro: Anders Thomas Jensen, baseado em história sua e de Susanne Bier. Direção: Susanne Bier. Elenco: Mads Mikkelsen, Sidse Babett Knudsen, Rolf Lassgard, Stine Fischer Christensen.

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