Daniel Lima, padre, poeta e humanista

No Recife, os afortunados conheciam-no por Padre Daniel, professor da UFPE, antiacadêmico por natureza. E dele falam aventuras dignas de Cervantes e de Camões, mas o Camões popular, cantado em rimas de cordel.

Há 11 anos, em 14 de abril de 2012, o padre Daniel Lima foi ali e não voltou. Sei que a data passará em branco, logo para ele, Padre Daniel, de pele escura. Então divulgo a seguir um trecho que dediquei ao poeta e padre inesquecível, no Dicionário Amoroso do Recife.

Não pensem que exagero no meu provincianismo do Recife. Mas existe qualquer coisa em Pernambuco que faz do seu território um chão fértil para bons e ótimos poetas. Nem quero aqui chover no molhado e lembrar João Cabral, Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, Ascenso Ferreira, Mauro Mota, Carlos Pena, todos amados pelo mundo culto do Brasil. Não. Me refiro a outros grandes que o mundo inteiro desconhece, que até nisso Pernambuco é um exagero: ótimos poetas não são silenciados somente no estado, são de Pernambuco calando para o mundo.

Quem me desacompanha até hoje tem visto o que escrevi sobre um poeta fundamental da língua, Alberto da Cunha Melo, que os leitores de muitos estados e jornalistas nas redações do sudeste perguntam: “quem? quem?”. Aqui e ali, na medida de minha força e tempo, lembro Geraldino Brasil, quem? Miró, Valmir Jordão, quem? Valter Fernandes, quem? Isso para não lembrar a dívida que tenho com os poetas Everardo Norões, Marcus Accioly… Pois aqui lembro ligeiro — e com um sentimento de desconforto por antes dele não ter falado — o poeta e homem de espírito e graça, de nome Daniel Lima.

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No Recife, os afortunados conheciam-no por Padre Daniel, professor da UFPE, antiacadêmico por natureza. E dele falam aventuras dignas de Cervantes e de Camões, mas o Camões popular, cantado em rimas de cordel. Vou resumir duas ou três, no limite estreito deste espaço. Uma vez, padre Daniel recebeu o original de um romance de um professor da universidade para ler. O diabo é que o livro era ruim demais e além da conta. O que fazer; como falar a verdade ao colega sem ferir a gentileza? Eis o que Daniel lhe disse:

— Ilustre amigo, o teu romance é inferior ao teu talento.

E ganhou, ainda assim, um secreto inimigo. Em outra, na época da ditadura, um militante socialista o visitava na residência, e foram conversando em voz baixa até o quintal. De repente, padre Daniel observa ao visitante:

— Está vendo o vizinho aí no muro? Ele sempre está me espionando.

Ato contínuo: disparou na carreira contra uma bananeira no terreno, e lá nela deu-lhe uma peitada com os braços abertos. Caiu sentado. Surpreso, o jovem correu para ele. E Daniel, baixinho:

— Não foi nada. O vizinho desconfia que sou doido. Agora tem a certeza.

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Pois é este homem, de quem sempre se esperou generosidade, a quem uma vez fui vender uma assinatura do jornal Movimento, e ao me receber sedento de álcool e angústia num sábado, assinou o jornal e me fez sair bêbado do uísque guardado “para visitas especiais”, pois é este homem que há muito escrevia poemas e guardava, por timidez ou medo, quem sabe, de não escrever ótima poesia, pois é este homem que recebeu o prêmio máximo da Biblioteca Nacional em 2011, para o seu primeiro livro. Aos 95 anos. Como demora o reconhecimento para essa gente de Pernambuco. Se lesse essa frase, padre Daniel diria:

— Como demora o reconhecimento. E às vezes nem sai.

Ó Daniel, o que é que pode falar um ingrato que há séculos não vai na tua casa? Na última, no último decênio do século XX, estranhei a cor da tua pele, quando te disse:

— Padre, não sei se é a minha memória. Mas eu o lembrava mais escuro.

Ao que ouvi:

— É não, amigo. A gente quando envelhece vai ficando mais branco.

Então entrei e ouvi a crítica amiga a um rascunho de romance que para a sua leitura eu havia deixado. Lá para as tantas, com a verdade do álcool perguntei:

— Padre, como foi a sua luta para se manter na castidade?

E ouvi o espírito que se fez carne em Daniel me responder:

— Foi difícil, amigo. Mas depois dos 80 fiou mais fácil.

Pois é esse homem, que no vigor dos seus 95 anos, com o sexo sob controle (já sei, Daniel, que dirias “sob controle, mas nem tanto”), pois é esse padre rebelde que  surpreende todo o Brasil com a poesia magnífica, fecunda, cheia da graça e da verdade do seu pensamento. Como nesta expressão de beleza:

“Nada será jogado no vazio.
Nem mesmo o vazio da vida,
porque é vida.
Nem mesmo o gesto inútil,
pois-que é gesto.
Nem mesmo o que não chegou a realizar-se,
pois-que é possível.
Nem mesmo ainda o que jamais se realizará,
porque é promessa.
E o próprio impossível
é vontade absurda de existir.
E nisso existe.”

Ou aqui, ao fim, por enquanto:

“Minha mãe era anoitecida.
Às vezes orvalho, às vezes estrela.
De repente, ria. De repente, chorava.
Falava sozinha enquanto trabalhava.
Resmungos, ou não sei se filosofia.
Descascava batatas, partia cebolas
e sonhava
‘Para não perder tempo’, dizia.
Com que seria que minha mãe sonhava?”

Com o prêmio nacional para seu livro Poemas, a poesia e todos nós entramos em festa em dezembro de 2011. Mas em abril de 2012, alegando uma pneumonia, Daniel partiu discreto e não mais voltou.

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