Dama de Honra

Armadilha do Amor

 

Diretor francês Claude Chabrol analisa o impasse a que chegou a juventude francesa, em seu Filme ″Dama de Honra″.

O amor, em suas várias vertentes, precisa de prova. Uma declaração. Uma mensagem. Um ato. Muitas vezes de algo mais. Trágico. Romeu e Julieta: veneno. Algo romântico que configure uma ligação para toda uma existência. Belo. Envolvente. Jovem. Principalmente jovem. Uma história de amor entre dois jovens franceses, é o que nos relata Claude Chabrol, em ″Dama de Honra (La Demoiselle d`Honneur)″. Envolve, naturalmente, uma prova, para que ele se configure real para Stéphane ″Senta″ Bellange (Laura Smet), a misteriosa, frívola e cínica franco-islandesa, que entra na vida do vendedor de material de construção Philippe Tardieu (Benoit Maginel). Deve ser algo forte, palpável, inquestionável. E ele que, em princípio, desconfia, termina por elaborar um jogo para escapar a seus desígnios, ao mesmo tempo em que se submete à prova a que ela lhe impõe.
              
Não foram poucos os casos de amor levados à tela. Alguns violentos, ″Bonnie and Clyde″; outros melosos, ″Love Story″; doentios, ″Crônica de um Amor Louco″ (1). Todos envolvendo jovens que, na esperança de terem confirmado o amor do outro, se vêem impelidos ao ato desesperado. Nada mais romântico. E uma das características do romantismo é a predominância do trágico sobre o equilíbrio, em que o/a apaixonado/a sucumbe às exigências da/o amada/o. Ter o/a amado/a não basta, é preciso algo mais. Mesmo que o romantismo, supostamente superado, perdure na modernidade. A paixão deixa de lado a racionalidade para penetrar nos sombrios recônditos da pisque, às vezes doentia. A forma com que Senta surge na vida de Philippe, como se saída do nada, e o aprisiona, é digna dos grandes casos de amor. Ela é, ao mesmo tempo, sutil, frágil e cativante com seus olhos violeta, pele esquimó aveluda e corpo escultural. Mas é também esquiva, escorregadia, e, como já sublinhado, misteriosa.
            
É a típica ″femme fatal″, não predominante em meio às mulheres fortes, diretas, independentes dos tempos atuais. Senta, não, atrai Philippe pelo que tem de mais forte: a palavra doce, o jeito inusitado com que o leva para seu ninho, um porão com móveis velhos tomados pelas sombras. Chabrol, mestre em sutilezas, mostra o relacionamento de Senta e Philippe sem meios tons, mas cercado de pequenos casos que o ilustram. Dentro de uma normalidade, sem rebuscamentos, música que interfira na narrativa, fotografia carregada, que crie clima desnecessário ao desenrolar da trama. Pelo contrário, a música acentua a ação, a fotografia de Eduardo Serra prima pela simplicidade. As cenas são limpas, os enquadramentos perfeitos. Chabrol conduz ″Dama de Honra″ com uma leveza de fazer inveja aos cineastas que adoram seqüências rebuscadas, enganosamente modernas e vaziais de conteúdo. Seu filme flui, seqüência após seqüência, sem closes ou intimidade com os personagens. Mesmo Senta, quando sua câmera dela se aproxima é para acentuar suas características, importantes para o contexto em que ela se situa.
              
As pessoas de ″Dama de Honra″ são normais, comuns, nenhuma se sobressai por beleza de estrela. Nem Chabrol pôs em cena suas atrizes costumeiras (Sandrine Bonnaire/Isabelle Huppert). O espectador é pego, repito, pela simplicidade. Não há truques nos filmes de Chabrol. Diferentemente de seus parceiros da Nouvelle Vague (François Truffaut, Jean Luc Goddard, Eric Rohmer, Alain Resnais) seus filmes não são acontecimentos. Escapam aos discursos às vezes excessivos de Goddard, o americanismo de Truffaut, a linguagem interior de Resnais ou o deslumbramento da imagem de Rohmer. Seu mestre é Alfred Hitchcock, a quem elevou ao status de autor, antes mesmo de Hollywood lhe dar o pleno reconhecimento.Mas não se pense que copia seu mestre. É mais sutil, penetrante, capaz de traçar o perfil de classe a partir do comportamento dos personagens, a exemplo do que faz em ″Dama de Honra″.
               
Pode tratar também da luta de classe a partir de uma banal história de assassinato. Em ″Mulheres Diabólicas (La Cérémonie)″ a emprega doméstica, Sophie (Sandrine Bonnaire) se une à dona do correio local, Jeanne (Isabelle Huppert), para assassinar a família da burguesa Leliévre (Jacqueline Bisset). Tudo com muita calma, sem grande suspense. Chabrol, para além de Hitchcock, segue as trilhas traçadas pelas damas da novela policial, a norte-americana, Patrícia Highsmith (O Sol por Testemunha), e a inglesa Ruth Rendell, de cuja novela homônima adaptou seu filme ″Dama de Honra″. Em suas narrativas, elas mostram o cotidiano medíocre da classe média, suas pequenas ambições, seus sonhos que não vão além da esquina e, nesta aparente normalidade, são capazes de crimes atrozes. São pessoas das quais nunca se desconfia, dada a sua moral, ética e respeito às normas sociais, principalmente às das cidades do interior. Mas, de repente, daquele cálido rio sem ondas emerge um interior violento.
              
              
Em ″Dama de Honra″ estamos nestas estruturas e influências. A vida das pessoas transcorre sem sobressaltos. Trata-se, no entanto, de apenas uma camada. O que ela esconde é o que conta para Chabrol. Senta e Philippe vivem em meio aos desencontros dos adultos já estabelecidos. A começar pela família Tardieu, classe média, liderada pela mãe Christine ( Aurore Clément), apoiada em Philippe, espécie de chefe da casa, sem status declarado. Juntos deles estão a irmã noiva Sophie (Solene Bouton) e a irmã adolescente dark Patrícia (Anna Mihalcea). Vivem o cotidiano de qualquer família do interior, protegidos pelo carinho de Christine, cabeleireira, e a vigilância do irmão, Philippe. Isto, porém, se revela insuficiente, dadas as armadilhas que podem advir do comportamento humano, dominado, ao mesmo tempo, por eros e thanatos. A morte pode caminhar lado a lado com o amor e o desejo, configurados na relação de Senta com Philippe. 
          
Nada demais, não fosse essa a estrutura criada por Chabrol para espelhar a vida dessas pessoas. Cada uma delas, à sua maneira está tomada por fraquezas e ambições, mesmo que seja apenas a de casar, como o faz Sophie com Jacky (Eric Seigne), primo de Senta. Mas configura-se também na esperteza do cinqüentão Gerard Courtois (Bernard Lê Coq), por quem Christine está apaixonada, a ponto de presenteá-lo com o bem mais precioso que havia lhe deixado o ex-marido.Ou na faceta incestuosa de Philippe, que acaricia, sonha e dorme com o busto da mãe, roubado de Courtois sem que ela saiba.              
           
O universo de cada um desses personagens é adverso, vai sendo revelado aos poucos, com os fios ligados a Senta e Philippe. Chama a atenção que esse universo não se estende para além deles. Chabrol não deixa antever o que eles escondem. Quando o faz é através da televisão, é ela que entra nas casas e põe a nu as doenças da pequena cidade. Ali tudo é bonito, bem cuidado, pintado, igual à mansão de Gerard Courtois. Os cadáveres vão se amontoando para choque das famílias, que não percebem o que elas próprias gestam. Estão, pelo que sentem, ao abrigo, à segurança do lar. As escapadas de Philippe não contam para Christine. Só os desvios e sumiços de dinheiro provocados por Patrícia a incomodam. Mas são tratados como casos comuns, coisas de jovens. Quando o cerco se aperta, todos pulam. É quando Chabrol espeta a ferida e o pus jorra.
            
A maneira como o faz, vale mais do que os discursos de seus parceiros da Nouvelle Vague (Nova Onda). E atinge com maior contundência a consciência do espectador. A frase que o mendigo, odiado por Senta, solta ao reencontrar Philippe dá o tom do filme e da etapa histórica em que vivemos. ″Estou afundando como todo mundo″, diz em frase não literal. É a forma de Chabrol atestar o que mostra em seus filmes, sem o discurso, o panfleto. O espectador fica chocado com o que pode produzir a aparente normalidade. São violências praticadas por ″pessoas normais″, sem razão aparente, apenas para que o outro confirme seu amor. A vida do outro já não conta, fato tão comum nas grandes cidades, onde sair para o trabalho pode ser tão perigoso quanto atravessar um grande parque em plena madrugada.
            
Descobrimos assim que a modernidade tão apregoada como símbolo da civilidade é uma vertente não declarada da barbárie. ″O grande dilema da modernidade está situado justamente no elemento mais original da guinada moderna: o self. A modernidade é criticada por enfatizar unilateralmente o domínio da subjetividade transcendental. O resultado é que a modernidade acabou presa ao abismo intransponível entre o sujeito e o objeto, entre o cogito e o mundo. Para Hegel, este dualismo é um dos sinais mais evidentes do fracasso do projeto moderno. O grande paradoxo é que a história da subjetividade moderna só pode ser traçada se implicar a histórica da morte ou ″desconstrução″ do sujeito″, nos diz o professor José Carlos Aguiar de Souza, em seu artigo Autonomia da Razão(2). 
           
A desconstrução do sujeito representa, sem dúvida, a do sujeito sob o capitalismo, daí a necessidade de desmontá-lo. Em se tratando de França o provam duas revoltas em pouco mais de um ano; a dos jovens imigrantes dos subúrbios e a dos jovens classe média e dos operários contra as políticas excludentes e neoliberais do Governo Jacques Chirac. Mas os jovens de ″Dama de Honra″ estão em outro registro. Não vêem a estruturação de um grande movimento de mudanças como forma de superação do capitalismo. Continuam entregues à futilidade da prova de amor e ao escapismo fácil possibilitado pela droga e o roubo, no mesmo país onde se aponta as ruas e as manifestaçôes como solução. Porém, para ficar na constatação de Chabrol, algo afunda no mundo, é preciso encontrar o que colocar em seu lugar.  
                           
Referências: (1) Uma Rajada de Balas (Bonnie and Clyde), de Arthur Penn; Uma História de Amor (Love Story), de Arthur Hiller; Crônica de um Amor Louco (Tales of Ordinary Madness), de Marco Ferreri. (2) Aguiar de Souza, José Carlos, A Autonomia da Razão, Caderno Pensar, Estado de Minas, pág. 4, sábado, 15/04/06.

 

Dama de Honra (La Demoiselle d´Honneur), França, Alemanha, itália, 2004, 1h50, 14 anos. Direção: Claude Chabrol. Elenco: Benoit Maginel, Laura Smet, Aurore Clément, Bernard Le Coq.         

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