“Coringa”: O que o oprimido herda

Em filme sobre a gênese do Coringa, cineasta estadunidense Todd Phillips mergulha o espectador nas estruturas sociais que produzem os revoltados

Na crucial sequência da primeira parte deste “Coringa”, o diretor estadunidense Toddy Phillips (20/12/1970) e seu co-roteirista Scott Silver põem o espectador diante do que define não só o personagem central do filme, Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) mas de todo o sistema capitalista. O jovem e atordoado palhaço chama a atenção da mãe Penny Fleck (Frances Conroy) para sua participação no programa de variedades do comediante Murray Franklin (Robert DeNiro). Ela pouco se entusiasma ao vê-lo apresentar-se diante das câmeras para milhões de espectadores dos EUA.

Este é o instante almejado por aspirantes à fama como Fleck, seja lá qual for o seu sonho. São estes lapsos de brilho que valem não só para ele, como para qualquer outro/a numa sociedade em que todos concorrem contra todos. E seu instante de glória será adiado em razão das sucessivas frustrações. Assim, Phillips transforma Fleck no protótipo do perdedor cuja esperança se esboroa na sala de seu modesto apartamento ao lado da mãe que deveria incentivá-lo. Inexiste, a partir daí uma carinhosa relação entre mãe e filho, mas de dois seres que apenas habitam o mesmo espaço.

É através destas sínteses que Phillips matiza seu personagem sem adentrar à sua gênese. Suas origens estão no romance “O Homem Que Ri”, do escritor francês Vitor Hugo (26/02/1802 – 22/05/1855), e no filme do cineasta alemão Paul Leni (08/07/1885-02/09/1929), interpretado por seu compatriota, o ator Corand Veidt (22/01/1893-03/04/1943). Contudo suas caracterizações como personagem de história em quadrinhos surgem na revista homônima “Batman”, publicada em abril de 1940 pela revista estadunidense DC Comics. Seus autores Jerry Robinson, Bill Finger e Bob Kane irão lhe dar a aparência de vilão com sorriso debochado.

Coringa é um retraído palhaço

O Coringa estruturado por Phillips e seu co-roteirista Scott Silver foge a estas caracterizações. É uma espécie de retorno ao “Homem Que Ri”, de Hugo, adaptado à realidade do Terceiro Milênio. Com seu diretor de Fotografia, Laurence Sher, ele cria densa atmosfera com pouca luz e muita sombra, ao estilo impressionista. E põe Fleck a se deslocar por ruas, escadas e elevadores perseguido pelas aflições que aos poucos toma conta de suas ações. Retraído e pouco dado ao convívio com as pessoas que o cercam, ele é tomado pela solidão e o abandono, mesmo estando em meio à multidão ou no banco do metrô. Há algo mais nele do que se imagina.

Esta introspecção assenta pouco em quem vive de animar festas em escolas de crianças. Mesmo maquiado e em vestes de palhaço seus gestos e olhares não o identificam como tal. É retraído demais para quem tem de dançar e cantar e sorrir e divertir a meninada. Ainda que o assistente social procura orientá-lo, depois do entrevero numa escola infantil, ele se mostra distanciado. E ao retornar ao seu apartamento não se dá por quem está no elevador, embora a vizinha afrodescendente Sophie Dumond (Zazie Beetz) o observe. Suas retribuições de amizade ou interesse são evasivos.

Desta forma, Phillips desconstrói na primeira parte do filme a imagem do perverso Coringa que o espectador se acostumou a ver no cinema. É mais o cidadão comum às voltas com seus dilemas. Inexiste nele os traços do vilão de “Batman! (1989)”, do cineasta Tim Burton, interpretado pelo grande ator Jack Nicholson (22/04/1937). Este dá a sensação de que ele ri e debocha de tudo, inclusive sobre o que ele e o herói Batman (Michael Keaton/05/09/1951) fazem em Gotham City. É mais cinemão para divertir, não a gênese do vilão capaz de chegar ao mal absoluto e aterrorizar.

Coringas torna-se defensor da garota

Todas estas construções dramáticas requerem a atenção do espectador para a relação dele com a idosa mãe, sempre presa à TV. Há algo de estranho na forma como eles se relacionam. O que emerge de seu inconsciente é a refutação do que ela presenta para ele. Eis a sútil gênese do que Phillips desenvolve até a metade da primeira parte deste “Coringa”. Não advém da opressão exterior, mas do que ele mantém vivo em seu subconsciente. Isto lhe causa dor e o leva ao ódio pelo que Penny faz emergir de seu passado a ponto de o presente ser traumático.

Não é o exterior que o oprime, levando-o a buscar compensações no programa de variedades de Franklin. Precisa livrar-se o quanto antes de seus conflitos interiores. O bom desta mudança dramática é Phillips não o fazer através de diálogos ou projeções do inconsciente, mas pôr meio da ação. E ainda mais na sequência em que os papéis se invertem perante o espectador. O Coringa deixa de ser vilão para se tornar o defensor da garota ameaçada no vagão do metrô de Gotham City. É o oprimido a se insurgir contra o status quo personificado nos operadores de Wall Street.

Nem se vê mais enfrentamento, só a hiperviolência a predominar em sucessivas sequências. Dominar o inimigo deixa de ser o objetivo, tudo é feito para exterminá-lo de vez. O Coringa assume outra característica não é mais o vilão, o malfeitor, a lutar para manter seu espaço no mundo do crime, mas o deserdado em busca de quem lhe revele suas origens. E nesta busca, Phillips o reveste de outro enigma, diferente das rusgas com Penny. Fragilizada, sem condições de reagir, ela se vê entregue ao “filho”. E a sequência em que isto se dá atesta o quanto Fleck foi negligenciado.

Phillips alterna drama e suspense

É na terceira parte de sua narrativa que Phillips amplia seu leque de construções dramáticas e transforma este “Coringa” numa obra política. Cada vez mais violentas, elas mesclam a hiperviolência à tentativa de Fleck desvendar quem é por meio de ações políticas. Seu alvo se torna duplo ao tentar manter as raízes de sua paternidade e instigar a multidão contra as promessas não cumpridas pelo prefeito de Gotham City, Thomas Wayne (Brett Cullen). As ruas logo são controladas e a depredação se estende por todos os prédios e veículos. O resultado é de aterrorizar os que prometem mundos e no mandato levam os fundos dos espoliados e ludibriados.

O espectador termina por ser envolvido numa trama que alterna situações intimistas, psicológicas, políticas, suspense e vingança. Phillips lhe acrescenta a visão do Coringa, de que suas origens não lhe foram reveladas a contento. E que para desvendá-las teria de encontrar quem a tramou com anuência do cumplice. E constrói, além disso, um personagem frágil, que usa a hiperviolência como sua única arma para chegar a quem lhe negou o que mais ansiava. E o filme acaba por ser ainda um repúdio à mentira e a manipulação dos pregoeiros das soluções prontas e acabadas.

A complexidade do roteiro da dupla Todd Phillips/Scott Silver e da direção de Phillips está em não tornar o Coringa um personagem chapado. Optaram por construí-lo como vítima do sistema, não um desalmado vilão, a atormentar suas frágeis vítimas com um sorriso grudado na face. E termina por colocá-lo como quem buscou aqueles que lhe negaram uma vida normal. E a hiperviolência é tão só a extensão da brutalidade sofrida por ele em anos. Não só ele se vale da punição para reverter os males sofridos. Pode, assim, reverter sua imagem de ameaça à sociedade.

Phillips buscou outra ooncepção

Mas o que importa neste “Coringa” em termos de cinema é Phillips não se prender a solução fácil de repetir os personagens-chamarizes de bilheteria. Buscou outra concepção dramatúrgica e inovou ao centrar nele sua narrativa, não o destituindo como vilão capaz de se valer da híper-violência para submeter quem o enfrenta. E sobretudo encontrou em Joaquin Phoenix (28/10/1974) o ator em estado de graça para torná-lo crível. Tanto que se multiplica nas sequências em que encarna o palhaço sem graça e principalmente quando expõe seus tormentos à mãe. Seria difícil sem ele para passar de vítima a vingador interiorizando seu drama.

Coringa. (Joker). EUA/Canadá. Drama, thriller, política. 2019. 122 minutos. Ficha técnica: Trilha sonora: Hildur Gudnadóhir. Montagem: Jeff Groth. Fotografia: Laurence Sher. Roteiro: Todd Philips, Scott Silver. Direção: Todd Philips, Elenco: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Frances Conroy, Zazie Beetz.

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