Começa com você e permanece com ele: um caminho para a empatia

Eu não vou mentir, modificar como vivenciamos as nossas masculinidades e paternidades e, consequentemente, como nos relacionamos com as mulheres não é uma tarefa simples.

O natal e o ano novo se aproximam e dado o quase apocalíptico pesadelo  em tempo real vivenciado no Brasil em 2019, eu gostaria muito de dizer para vocês que as palavras abaixo trazem mensagens leves e bonitas sobre as paternidades, tema desta coluna, afinal, todos/as precisamos de um respiro. Mas esse não é o caso. 

No entanto, por mais estranho que possa parecer a princípio, eu acredito que este texto tenha a ver com amor, união, empatia e esperança, palavras muito comumente jogadas ao vento nesta época do ano. 

O nosso ponto de partida é o dia 6 de dezembro de 1989, no Canadá, quando, pouco depois das 16 horas, um homem de 25 anos chamado Marc Lépine entrou em uma sala de aula da Escola Politécnica de Montreal portando um rifle semi-automático e uma faca de caça. 

Após efetuar um disparo para cima, Lépine ordenou que os 50 homens presentes se posicionassem de um lado da sala e as nove mulheres, do outro. Assim foi feito. Em seguida, ele mandou que todos os homens saíssem da sala. Eles saíram. Depois de dizer que odiava feministas, ele começou a atirar. Todas as nove estudantes foram alvejadas e dessas, seis não saíram com vida daquela sala de aula.

Em seguida, ele caminhou pelos corredores, pela cafeteria e por fim entrou em uma segunda sala. Mais oito mulheres foram executadas e 11 feridas. O único homem a perder a vida naqueles 20 minutos de horror foi o próprio Lépine, exatamente como ele havia planejado e descrito em uma carta de suicídio.

Nessa carta, ele declarava seu ódio às feministas, a quem acusava de terem “acabado com a sua vida” e também listava o nome de 19 “feministas radicais” canadenses, lamentando o fato de que não teria tempo de matá-las. Como pontuou muito bem Anne Thériault, ao  adentrar aquela faculdade, Marc Lépine não queria matar mulheres, mas sim, feministas. Como ela escreve, quem ignora esse fato contribui para o acobertamento de uma grave realidade, a de que “A origem da violência de Lépine não está situada em algum ódio vago às mulheres, mas sim, em uma fúria voltada a um movimento social que busca promover a humanidade básica das mulheres”. 

Topo, da esquerda para a direita: Maryse Laganière (1964-1989, funcionária da École Polytechnique); Maryse Leclair (1966-1989, estudante de Engenharia de Materiais); Michèle Richard (1968-1989, est. de Eng. de Mat.); Nathalie Croteau (1966-1989, est. de Eng. Mecânica); Meio: Sonia Pelletier (1961, est. de Eng. Mec.); Anne-Marie Lemay (1967-1989, est. de Eng. Mec.); Anne-Marie Edward (1968, est. de Eng. Química); Annie St-Arneault (1966-1989 est. de Eng. Mec.);  Maud Haviernick (1960-1989, est. de Eng. de Mat.); Baixo: Annie Turcotte (1969-1989, est. de Eng. de Mat.); Barbara Daigneault (1967-1989, est. de Eng. Mec.); Barbara Klucznik-Widajewicz (1958-1989, est. de Enfermagem); Geneviève Bergeron (1968-1989, est. de Eng. Civil) e Hélène Colgan (1966, estudante de Eng. Mec.).

Dois anos depois desse crime bárbaro que ficou conhecido como o “Massacre de Montreal”, um pequeno grupo de homens canadenses lançou a Campanha do Laço Branco (White Ribbon Campaign), cujo lema “Jamais cometer, justificar ou permanecer em silêncio frente às violências de homens contra mulheres”, busca transmitir a ideia de que se somos nós, homens, que quase sempre cometemos essas violências, então as iniciativas voltadas à  sua prevenção, combate e erradicação não podem ser deixadas apenas para as mulheres. 

Eu sou militante dessa campanha desde a sua chegada ao Brasil, em 1999, no entanto, cada vez mais percebo que o trágico acontecimento que a inspirou pode muitas vezes distanciar ao invés de aproximar e sensibilizar os homens. 

Por mais que essa campanha nos convoque a fazer uma profunda reflexão, o crime hediondo cometido por Marc Lépine às vezes atrapalha nesse intuito à medida em que ele nos apresenta um “monstro”. Tentarei explicar… Como é quase impossível alguém enxergar o próprio reflexo em um ato de tamanho horror, encontramos um mais do que cômodo álibi, que nos permite inclusive dizer “Um homem que faz isso merece morrer ou mofar na cadeia!”. Um outro caminho comum é simplesmente enquadrar esse acontecimento como o ato de um “louco”. 

Qualquer uma dessas leituras contribui para que todos os nossos comportamentos agressivos e violentos – genialmente expostos pelo psicoterapeuta argentino Luis Bonino Mendez no texto “Micromachismos: la violência invisible en la pareja–, sejam jogados para debaixo de um pesado e silencioso tapete. O violento é sempre o “monstro” ao lado, nunca eu. 

No entanto, há um aspecto do massacre de Montreal que raramente é fruto de debate e que pode nos ajudar a fugir disso: o fato de 50 homens, incluindo o professor, terem saído da sala. 

Não faço aqui um julgamento desses homens. Seria absurdo fazê-lo pois me parece simplesmente impossível cobrar qualquer coisa de pessoas que se vêem em situações tão extremas. É claro que atos reais de heroísmo existem, mas eles são raros, ao contrário das bravatas de coragem e heroísmo de homens, que são por demais frequentes.

Se trago esse fato para o debate, é por que acredito que ele possa facilitar, enquanto alegoria, um processo reflexivo sobre o nosso papel em relação às violências contra as mulheres. 

Nós, homens, cotidianamente “deixamos as mulheres sozinha na sala”, no entanto, ninguém está apontando uma arma para as nossas cabeças. As nossas vidas não estão em risco. Mas os nossos privilégios, sim.   

Deixamos as mulheres sozinhas na sala quando não assumimos a paternidade de um/a filho/a; quando falamos coisas como “você que quis ter essa criança”; e quando não dividimos o cuidado dos/as filhos/as. Deixamos uma mulher sozinha na sala quando não ficamos ao seu lado após ela decidir fazer um aborto. Deixamos as mulheres sozinhas na sala quando não dividimos as tarefas domésticas. Deixamos as mulheres sozinhas na sala quando sabemos que uma colega está sofrendo assédio moral e/ou sexual e nada fazemos e quando sabemos que recebemos mais do que uma colega que faz o mesmo trabalho e nada falamos. Deixamos as mulheres sozinhas na sala quando presenciamos uma delas ser agredida e fingimos que nada enxergamos ou quando tentamos justificar os atos violentos de um amigo ou um familiar. Deixamos as mulheres sozinhas na sala quando a chamamos de “louca” e quando nos cerramos em nosso silêncio e nos recusamos a conversar sobre coisas que elas acreditam ser importantes. Deixamos as mulheres sozinhas na sala quando votamos em homens que odeiam as mulheres. 

Apesar de fazê-lo com menos frequência do que eu gostaria, eu tenho usado este espaço para escrever sobre paternidades e cuidado desde setembro de 2017, quando o meu filho tinha menos de dois meses. Como venho tentando explicitar ao longo dos 13 artigos que aqui publiquei, para mim, o foco do debate sobre as paternidades não deve ser os homens/pais, mas sim, como nós podemos contribuir para uma sociedade mais equitativa do ponto de vista das relações de gênero e, enquanto isso, crescermos pessoalmente e termos relacionamentos mais prazerosos e saudáveis com nossas/os filhas/os e com as suas mães. 

Como escrevi em meu último artigo, me traz grande alegria e alguma esperança ver cada vez mais homens refletindo sobre as paternidades. No entanto, me frustra ver que de modo geral, continuamos conversando pouco sobre a desigualdade de gênero e principalmente, sobre os nossos privilégios, questões que impactam diretamente na saúde e no bem-estar das mães de nossos/as filhos/as e das mulheres em geral e estão diretamente conectadas às violências contra elas.

Como pai de um menino e futuro pai de outros dois (gêmeos idênticos), sinto que uma das minhas principais responsabilidades é a de olhar e atuar constante e diretamente para essas questões e fazer com que os meus filhos cresçam imbuídos da certeza de que meninos e meninas e homens e mulheres possuem o mesmo valor e de que eles devem nutrir profunda empatia pelas mulheres. Em resumo, eles nunca devem deixá-las sozinhas na sala. Como diz o pôster abaixo “Começa com você. Permanece com ele”

Eu não vou mentir, modificar como vivenciamos as nossas masculinidades e paternidades e, consequentemente, como nos relacionamos com as mulheres não é uma tarefa simples. Estamos falando sobre ir na contramão de uma construção social e cultural que vem sendo estruturada há séculos. É preciso coragem para negar traços basilares de nossa cultura que são reforçados cotidianamente por nossas religiões, pela educação, por nossos pares e por nossos pais. Mas se a nossa masculinidade é forjada na ideia do desafio, do risco e da coragem, por que não utilizar tais valores para essa missão? 

E por que não começar agora?

Tradução livre: Começa com você. Permanece com ele. Estenda às mãos aos meninos ao seu redor e os motive a construir relações saudáveis, igualitárias e consentidas que respeitam limites e geram confiança e boa comunicação. Seja um exemplo de masculinidade positiva e ajude os meninos a criar um futuro aonde homens e mulheres vivem livres de violência e desigualdade.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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