Carnaval em tempo ruim e em tempo bom

Recordações de carnaval trazem cenas inesquecíveis de fases da nossa própria vida. Instantes de contenção e recolhimento forçado ou de alegria e fuzarca desbragadas.

Ilustração: Frevo, de Lula Cardoso Ayres

O carnaval deste ano tem um quê de comemoração para milhões de foliões que votaram em Lula no último pleito. 

“Este ano não perco nenhuma prévia e vou me soltar em Olinda até a madrugada da quarta-feira!”, me diz uma amiga de algumas décadas, que eu nem a imaginava ainda foliã. “A Esperança voltou, meu bem” — completa.

Eu mesmo — ex-folião assumido — postei hoje no storie do Instagram e nas demais redes uma tela de Lula Cardoso Ayres (ilustração deste artigo) e versos de Vinícius: “Voltou a esperança/É o povo que dança/Contente da vida/Feliz a cantar”.

No meu blog, um artigo de Urariano Mota https://bit.ly/3YWP5cu sobre sobre a eterna polêmica acerca da renovação do frevo.

Sou também tomado de entusiasmo pela festa de Momo, que agora retorna com toda a força, interrompida que foi nos piores momentos da pandemia. Mas do sábado até a quarta-feira estarei recolhido no meio do mato, respirando paz e pondo minhas leituras em dia.

Já tem uns bons quinze anos ou mais que me recolho.

Mas quem traz nas costas tantas décadas nesse mundo de Deus e de Momo, bem que pode dizer, com toda a propriedade, que já viveu muitos carnavais.

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Alguns no tempo duro da militância clandestina, sob a ditadura militar.

Naquelas circunstâncias, simplesmente nos recolhíamos, quando não aproveitávamos o ambiente para nos reunirmos clandestinamente. Julgávamos ser mais seguro.

Nem sempre a discrição era mantida com todo o rigor. Como uma vez em que eu me dirigia a uma reunião, num domingo de muitas troças e blocos pela rua, nas imediações da Vila dos Comerciários, no Recife, e fui cercado por garotos armados de talco, bisnagas de água e confetes que me deram literalmente um banho e me transformaram no que eu não podia ser naquele instante: falso folião.

Outra vez, em Santana do Ipanema, sertão alagoano, onde vivíamos como um casal de vendedores ambulantes de roupas, Luci e eu seguíamos na pipoca da escola de samba “Unidos do Monumento” e nos deparamos com um muro pichado com a campanha de um candidato a vereador que se apresentava literalmente como comunista, incluindo o símbolo da foice do martelo.

Fosse hoje, teria feito a foto para divulgar nas redes sociais. Naquele instante de duro rigor clandestino, disfarçamos a emoção.

Recordações de carnaval têm disso: cenas inesquecíveis de fases da nossa própria vida. Instantes de contenção e recolhimento forçado ou de alegria e fuzarca desbragadas.

Em nosso primeiro carnaval após o período de prisão sob a ditadura militar, nos juntamos à cambada de velhos e novos amigos na fundação da troça improvisada “Amantes de Beré” (homenagem à mãe de alguns componentes, a Sra. Beré), que arrastou muita gente pelas ladeiras de Olinda.

Hoje convertido em grande negócio de ocasião, constante nas estatísticas sobre emprego temporário e vendas do varejo e do turismo, hoje o Carnaval ainda resiste como explosão espontânea de um povo que sofre mas faz da alegria uma bela forma de resistência.

Evoé!

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