Carlos Diegues – O realismo de “Os “Herdeiros”
“Os Herdeiros” é uma expressão realista e significativa da realidade brasileira, mas reconhece que pode não agradar ao grande público.
Publicado 03/07/2023 09:28 | Editado 03/07/2023 09:29

Os personagens criados por Carlos Diegues no seu “Os Herdeiros” , que o Moderno está exibindo, não são lúcidos como disseram, mas são personagens extraídos da realidade brasileira, da nossa história política dos últimos anos, com uma boa expressão fílmica. Com “Os Herdeiros”, Cacá Diegues não desce de nível em sua carreira cinematográfica, pois essa realização tem tanta significação, hoje, quanto um “A Grande Cidade”, feito em preto e branco, há alguns anos passados.
Dizer que um filme de Carlos Diegues é “cinema-bozó”, é talvez não entender o significado da palavra, pois nada em seu cinema é jogado, é colocado no azar – como acontece no bozó: Diegues é um artista realista, e até certo ponto sua obra, hoje, está “fora de moda” diante de um cinema do irracional, do não-lógico (pelo menos), como é o que estão fazendo os cineastas da “boca do lixo”.
Em “Os Herdeiros” é contada a história de uma família, principalmente de um jornalista (vivido por Sérgio Cardoso), que se mantém no poder desde 1930 até os nossos dias. Todas as mudanças políticas havidas no país, todas as mudanças de Governo, talvez tenham feito apenas que o poder dessa família, desse jornalista, tenha crescido, pois – através de todos os métodos, principalmente da traição a si próprio – ele consegue mudar de “amigos”, momentos antes de serem mudados os governantes. É, portanto, uma história/estória clara, praticamente linear, que conduz a narrativa do novo filme de Cacá Diegues, não tendo nada de jogo, de azar, ou de incompreensível. Por outro lado, o cineasta toma uma posição muito clara diante da realidade brasileira, coisa que até a crítica parisiense e de Nova York compreendeu.
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O “tropicalismo” do filme é, simplesmente, um caminho para a interpretação da nossa realidade, com a sua excelente cenografia. “Os Herdeiros” não transfigura o que é o Brasil. Somente mostra como é “tropical” o décor / cenário de nossas casas, de nossas repartições públicas, até mesmo de nossos palácios. Quando o “tropicalismo” – que ainda está num filme como “Os Herdeiros” – mostra esse sentido colorido do ambiente brasileiro, não é propriamente condenando, tomando uma posição de “ser contra”, é simplesmente constatando a nossa realidade, não tendo vergonha de mostra-la. Há nada mais tropicalista do que o Palácio do Governo, do Catete, que é mostrado no filme? E não há transfiguração: a realidade é que está lá, só e só.
Considero que “Os Herdeiros” é uma obra difícil de se comunicar com o “grande público”; e isso simplesmente porque a maioria dos espectadores não gostam de ir ao cinema para ver, ali, problemas / questões da realidade. O que interessa à maioria é o “cinema-sonho”, ou “cinema-bozó”, ou seja, o puro divertimento: e isso “Os Herdeiros” não é. Classificar o filme de Diegues entre os que não discutem, não equacionam, não estão dentro de uma realidade é, simplesmente, desconhecer a realidade.
O cineasta Cacá Diegues tem toda a sua formação técnico-artística dentro da escola do cinema novo, onde imperavam os padrões de um cinema que hoje já poderíamos considerar clássico, com suas linhas estruturais estabelecidas por um Glauber, a partir do cinema de Visconti. Por isso não é nada demais que se encontre em “Os Herdeiros” semelhanças com o cinema de Glauber; o que ele não tem é coisa alguma com Jean-Luc Godard. O filme de Diegues é, essencialmente, do décor / cenário, do décor construído e da zoom (vejam artigo de Glauber sobre a zoom de Visconti): é uma obra que vem diretamente da linha do cinema viscontiano. Um Visconti “tropicalista”, poderíamos dizer.
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Enfim, quem não for “espectador comum” deve ir ver “Os Herdeiros”; para o “espectador comum”, eu não indico a obra de Cacá Diegues. Para estes é melhor ficar em casa, vendo uma novela ou até mesmo o “grande” programa de Sílvio Santos.
Jornal do Commercio, Recife, 02.02.1971
Texto copiado do livro “Cinema Brasileiro (Volume I)” de Celso Marconi
Os lábios de mel de Iracema
Carlos Coimbra é um velho cineasta, que faz cinema desde 1953. O seu maior sucesso popular foi com “Independência ou Morte”. Carlos Coimbra, porém, não é um artista de cinema, no sentido que é mais justo que se dá ao termo; isto é, alguém que faz cinema com uma linguagem pessoal, imprimindo à sua obra uma visão própria. Isto é, artista (não no sentido da revista Amiga) é alguém que tem opiniões pessoais, e através de sua arte envia uma mensagem a um público também interessado em opiniões. Carlos Coimbra é, porém, um bom artesão, que sabe manejar a técnica cinematográfica, e isso os quatorze filmes que ele realizou comprovam.
Mas Carlos Coimbra faz cinema como qualquer profissional menos criativo faz qualquer outra atividade. Ele aceita a opinião geral, por menos que essa opinião não corresponda à realidade, não vá ter nenhuma influência para uma melhor conceituação da mesma realidade. Isso aconteceu com “Independência ou Morte”, um filme de boa confecção cinematográfica, mas contando a estória pelo lado mais convencional.
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E com esse “Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel”, o cineasta Carlos Coimbra bate todos os recordes de aceitação do “status quo”, do formalismo, da falta de interesse em questionar a realidade. Numa hora em que se discutem os direitos espoliados dos indígenas brasileiros, um filme como este, de Carlos Coimbra, é um verdadeiro acinte. Novela de televisão brasileira é mais crítica; por aí você pode imaginar como se trata de uma obra que aceita a forma mais bobalhona de contar uma estória.
Eu gostaria que existisse um exibidor que tivesse a coragem (e a ideia) de pregar uma peça no público que aceita esse tipo de filme. Seria a seguinte: anunciar nos cartazes esse filme de Carlos Coimbra, com as fotos eróticas de Helena Ramos como a Iracema, e depois, na sala escura, exibir o “Iracema” de Bodanski, que ainda não teve liberação pela Censura (por falar nisso, ela acaba ou não?!) brasileira. Seria bom documentar a reação do público.
Jornal do Commercio, Recife, 16.06.1979.
Texto copiado do livro “Super 8 & Outros – CINEMA BRASILEIRO (Volume II)” de Celso Marconi.