“Cafuné”:Histórias que não se explicam

Filme do brasileiro Bruno Vianna se perde entre vários temas sobre a realidade do Rio de Janeiro

Logo na abertura do filme “Cafuné”, de Bruno Vianna, após uma seqüência que mostra a mata de São Conrado ao fundo, a câmera passeia pelo sofá ensangüentado e termina no bebê alheio ao que se passa. Há um corte para duas jovens conversando na praia.Têm-se a impressão de que haverá silêncio, para que o público absorva o que virá a seguir. A compulsão pelo diálogo logo as faz introduzir suas vozes e quebrar o impacto do que seria um belo encadeado de cena. Não que haja descontinuidade, apresentação de personagens de forma que acrescente novos dados para justificar um princípio de filme tão promissor, mas uma clara opção pela linearidade. 



            
O que se depreende neste início, é que algo bárbaro aconteceu e que as seqüências seguintes irão desvendar, devagar, o que ocorreu, mas há o corte para uma cena desligada de seu princípio. Esta cena desmonta a estruturação do filme, revelando que, a partir daí, não teremos cinema, com imagens abrindo caminhos, mas diálogos explicando o que elas poderiam revelar. E com pressa, pois a seqüência que segue a do bebê no sofá ensangüentado, tem por objetivo contar como tudo aconteceu. Pode parecer interessante, o filme começa pelo final e depois, devagar, vai revelando o que afinal levou àquela cena brutal.



            
 “Cafuné”, porém, sofrerá um longo corte para só a partir do terço final retomar àquele princípio. E o faz de forma linear, contando a história como se o diretor/roteirista tivesse perdido o fio da meada. Nada demais se houvesse indício de que se trata de uma estética, uma forma de contar uma história em círculos. Mas percebe-se logo que não se trata disto. Houve uma opção por este caminho em dois terços do filme. Depois, como se verá a seguir, a descontinuidade é retomada, e o filme cresce de forma surpreendente. Parece que, de repente, o caminho foi encontrado (quem sabe não foi na sala de montagem que o caminho final foi encontrado?). Não que não houvesse, desde o principio algo forte para contar, mas há.


 


           
Amor entre jovens de
            classe diferentes poderia
            ser melhor abordada


         
 


“Cafuné” é a história de amor entre dois jovens, ela da classe média, moradora no Leblon, ele morador da Rocinha, favela da região de São Conrado, e a resistência da mãe dela a este relacionamento. Mas pretende também ser uma análise da juventude bem nascida, que vive solitária em seus apartamentos à espera de um acontecimento que dê sentido à sua existência, ou que tenta montar negócios para os quais não tem a menor tendência. Formam, portanto, três eixos que irão, de forma descontinua, tentar levar o filme, aos tropeços, adiante.
           



Caso estes três eixos fossem revelados, cada qual a seu tempo, com seqüências bem estruturadas, personagens bem delineados, o público não teria dificuldade em acompanhar. “Pulp Fiction”, de Quentim Tarantino, e “Amores Brutos”, de Alejandro González Iñarritu, são construídos assim. Mas Bruno Vianna apenas esboça as situações e os personagens. A solitária Hérica (Alice Gomes) que descobre o próprio corpo ao começar fotografá-lo não tem passado ou razão para estar ali fechada num prédio espremido entre tantos outros, sem vista para lugar algum, e a dona de galeria, Joana (Ana Kutner), que anda às turras com o namorado Beto (Daniel Arcangelo), não se explicam enquanto seres do mesmo universo. Só se relacionam porque são mostradas juntas como amigas, moradoras do mesmo bairro, mas não existem enquanto seres reais por mais que tenham problemas comuns a seu segmento social.



            
Às vezes tem-se a impressão de que são meros contrapontos a Débora (Priscila Assun), do Leblon, que se apaixona por Marquinhos (Lúcio Andrey), da Rocinha, uma vez que, mesmo estando juntas no mesmo espaço não se relacionam. Conversam e conversam e conversam, quando as imagens poderiam, a partir do roteiro e da montagem, relacioná-las, explicar seus dilemas e mostrar suas contradições. As coisas se complicam quando entra em cena o velho sonoplasta Luís Eduardo (Roberto Maya), pai de Débora, que fala o tempo todo sobre  falta de sincronismo na dublagem, tempo de retorno de som, necessidade de melhorar a técnica de captar o som, numa época em que impera a poluição sonora. É um personagem que está ali para justificar a cinefilia do diretor/roteirista, porque em momento algum interfere na ação ou se mostra à altura dos problemas enfrentados pela filha. Numa das cenas, ele fala diante de cenas de “O Leopardo”, de Luchino Visconti, sobre a falta de sincronia nas falas do conde interpretado por Burt Lancaster.


            



Temas importantes
              se perdem no filme


            


Nesta altura do filme, o público se pergunta porque tanto assunto no mesmo filme, se eles não estão suficientemente amarrados? São coisas demais. “Cafuné” no eixo central é a história da falta de dialogo e de convivência entre os dois Rios de Janeiro: o dos bem nascidos e os da periferia, que por contingências sociais terminam por se encontrar na praia. E de maneira inusitada. Débora e sua amiga solitária fumam maconha e Marquinhos se aproxima delas e pede uma pitada. O PM o vê e o aborda. Os dois discutem e o PM agride Marquinhos. As duas jovens, principalmente Débora sai em seu socorro. Daí nasce o caso de amor entre eles. A mãe, Mariana (Dilma Lóes) no início não leva o caso a sério, mas quando a paixão se estabelece, ela interfere.



            
Há na discussão entre elas uma tentativa de crítica à geração “paz e amor”, com Mariana questionando a filha por não aceitar fazer aborto e esta insistindo em ter o filho. E não passa disto. Funciona mais como esboço do que poderia ter sido o roteiro em mãos mais hábeis. O conflito que poderia se estabelecer se dilui. Marquinhos não passa por barreiras ou tem de optar entre continuar sofrendo até conseguir viver com Débora ou enfrentar a sogra até ela se convencer de seu caráter. Pelo contrário, Bruno Vianna faz um jogo com o público e Mariana. Para mostrar o bom caráter e a independência de Marquinhos, o faz não aceitar ajuda da sogra, pondo-o a contribuir com mísero R$ 1,00 no pagamento das despesas de restaurante.



              
Não menos sofrível é a abordagem de Beto, filho de Mariana, que tenta ser corretor de bolsa de valores e depois, falido, procura montar uma ONG, sobre a justificativa de que está na moda. Outra abordagem que, se feita em outro contexto, poderia se transformar numa critica ao chamado “Terceiro Setor”. Nada disso ocorre. Mesmo um dos bons achados de “Cafuné” se perde, por não ter continuidade. Numa cena, Joana acompanha sua amiga Hérica a um apartamento para alugar. A corretora, toda empinada, faz jorrar as qualidades do imóvel, dizendo que ele dá vista para o Cristo Redentor. Só que ao procurá-lo, ela não o encontra. O tempo e os prédios não permitem que ela o faça. Isto corre hoje nas grandes cidades onde se vende a proximidade de monumentos e de áreas verdes que praticamente inexistem.


              



História cresce
               no terço final

 
             


Nesse emaranhado de eixos e temas desconectados, narrados linearmente, “Cafuné” chega a seu terço final. Se antes, a falta de estética, de bons enquadramentos, inquietavam, quando atinge esta parte, o filme cresce. Não que haja grandes choques, seqüências de tirar o fôlego, a critica social ganhando forma, mas pelo encadeado das cenas. Ele perde a linearidade, com a descontinuidade se impondo. A curiosidade ressurge. Numa seqüência em que Joana e Beto brigam, porque ela tenta retocar a maquiagem e ele a manter sua atenção no trânsito, o mundo do “filhinho da mamãe” vem abaixo. O universo superficial e sem sentido da classe média se desnuda e Beto solta sua ira sobre quem nada tem com suas frustrações.



             
A emoção que antes era rala chega. A descontinuidade, com cenas que surgem e desaparecem, com Débora chegando com o filho, Marquinhos ensangüentado no sofá, o pai de Débora desolado, o irmão de Marquinhos triste na entrada do barraco, e o bebê em meio ao sangue mostram o filme que “Cafuné” poderia ter sido. Mas perdeu-se a oportunidade de fazê-lo. Primeiro devido à deficiência técnica: enquadramentos que definam a situação de modo a provocar empatia entre os personagens e o público, fotografia que permita o clima necessário ao andamento da história, aprofundamentos de situações que desenhem melhor os personagens e a opção por uma montagem que una personagens que se justifiquem e o uso primordial da imagem para contar a história.



              
Para o cinema nacional que teve nos últimos anos de “Cidade de Deus”, a “Cidade Baixa”, passando pelo espetacular “Cinema, Aspirinas e Urubus”, todos técnica e esteticamente perfeitos, “Cafuné” representa um retrocesso. Porém, muitas idéias boas estão em seu roteiro e, se melhor aproveitadas, poderiam ter rendido um bom filme. Principalmente se tivesse trabalhado melhor o elenco e escapado às tentativas de imitar situações que, por si só, merecem um filme só para abordá-las. Caso contrário têm-se apenas um esboço de um bom filme.


 



“Cafuné”, Brasil, 2005, 73 minutos, 16 anos. Direção: Bruno Vianna. Roteiro:Bruno Vianna. Elenco: Priscila Assun, Lúcio Andrey, Carlos Mossy, Tessy Callado, Dilma Lóes.

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