Assassinos fascistas

Aceitei e fomos para uma mesa do bar na calçada. A paisagem de Olinda e sua história não merecem o personagem, o horror que ouvi

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Eu havia aprendido em meus tempos de repórter a não espantar um criminoso. Quero dizer, era preciso chegar perto de um perverso devagar, para que ele não fugisse da nossa presença. Mas nesse caso recente, diante de um homicida, significava reprimir o asco, a indignação, e ouvi-lo aprovando o que ele falava. Mais que balançar o queixo, devia ouvir a sua voz provocando-o para que falasse mais, porque afinal eu seria um indivíduo à sua semelhança. Esse método de flagrar uma ilegalidade não é novo, e nem sempre esteve a favor da civilização. Os policiais que se infiltravam nos grupos socialistas faziam pior, eles vestiam o disfarce da pele do camaleão. Em resumo, eu estava num bar em Olinda nesses dias, vendo um jogo de futebol encostado ao balcão, quando o indivíduo junto a mim, ao reclamar de uma penalidade contra o nosso time, comentou em voz alta:

– Só vai matando!

O juiz da partida era uma juíza. O comentário do sujeito passou sem estranheza para cerca de 20 pessoas que viam o jogo na televisão. Diria, até, com aprovação tácita. Mas o “comentarista” estava de tal maneira na minha vizinhança, que não foi possível ignorá-lo. Então eu me virei de lado e perguntei:

-O quê? Eu não ouvi direito.

Ao que o indivíduo respondeu:

– Só vai matando! Mulher metida a autoridade só vai matando. – E com um toque de cotovelo em meu braço: – Né não?

Então eu tirei os olhos da tevê, para melhor enxergar o ameaçador. Ele era um sujeito alto, largo, branco, olhos claros. Sem bigode. Não fossem as suas palavras, eu diria que ele era um ser de boa aparência. Mas perigoso, sem dúvida, pelo conteúdo de ódio e pelo vulto de braços musculosos, típicos de quem se avoluma em academia. Então eu me lembrei do tempo de repórter, e dei corda ao indivíduo:

– Sim, só vai matando. Mulher então, que apita contra o nosso time, só vai matando.

Eu disse, confesso, e segurei o engulho. Para quê? O indivíduo sorriu, apertou a minha mão, e convidou:

-Vamos continuar na mesa da calçada? Aqui tá muito cheio. A gente acompanha o jogo lá fora.

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Aceitei e fomos para uma mesa do bar na calçada. A paisagem de Olinda e sua história não merecem o personagem, o horror que ouvi. Primeiro, vieram as apresentações. De modo vago, digamos:

– Você faz o quê? – ele me perguntou.

– Sou aposentado.

– Trabalhava em quê?

– Eu?… Era funcionário público, do INSS. E você?

– Sou gerente em uma das lojas do meu pai. Dirijo uns negócios de chocolate, bebidas, e otras cositas más. – Solta uma gargalhada.

– Dá pro gasto, né?

– Não tenho do que reclamar do nosso presidente. Nada! Só apoiar de qualquer maneira.

Esfriei muito a partir daí. Mas eu não podia ser tão simples. Quem sabe se um apoiador do presidente não seria, por contradição, um sujeito razoável? Tentei me acalmar:

– “Mulher só vai matando” é só força de expressão, certo?

– Depende. – E gargalhou mais uma vez.

Mas eu era o repórter. E vesti a máscara fria:

– É verdade. Tem mulher que merece morrer.

– Não tou dizendo? Com essa conversa de fêmea, de feminicídio, é só mimimi. Mulher não respeita mais homem, ofende a nossa honra, e depois, né?… São esses comunistas que invadiram tudo, escola, faculdade, “direitos humanos”… Direito humano é pra quem é humano. Pra comunista, não. Eles são contra a família. Só vai matando!

– É verdade…

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O que era que eu estava fazendo ali? Ele gritou para o garçom e comandou:

– Dois blacks, Johnnie, aqui na mesa!

Antes que eu recusasse, ele cortou:

– É por minha conta. Você é dos nossos.

Ele disse. E se apoiou na mesa com seus inchados braços para melhor falar:

– Tamos vivendo hoje um Brasil que pode voltar ao comunismo. Você está me entendendo? A gente tem que se unir contra tudo que cheire a comunismo. É a defesa da nossa pátria! Você está me entendendo?

– Sim, estou entendendo. Mas é preciso ter cuidado, porque existem juízes contra nós. – Eu disse. E acrescentei:- Apesar de tudo, é preciso seguir as leis.

Com isso, o patriota da família quase se irritou. Mas se conteve com um sorriso cínico:

– Que leis? – E baixou a voz: – A lei a gente faz. Entende? Pra defender os filhos, a lei é a nossa. A gente faz e está feito.

– Mas tem a polícia, que é obrigada a seguir a lei. Lei no papel.

– Você tá feito menino? A gente faz escondido. Eu não vou dar um tiro naquela juíza na televisão. Eu não sou maluco! Mas se pego ela numa descoberta, ah, meu irmão…

– É claro. Atira e corre.

– Não precisa nem correr. Atira e ameaça com a arma. Quem vem? Quem vem?

– Mas aí você pode ser visto e descrito pra polícia.

– Vou de boné e óculos escuros. E se for acerto importante, de hora marcada, touca ninja.

– E gravação no celular de quem viu o crime?

– Puta que pariu, que crime?! É justiça!

– Justiça, justiça federal, legal?

– Justiça boa. A justiça pra ser boa tem que ser parcial. Contra comunista não tem crime. Em qualquer lugar, na rua.

– Como é que você descobre comunista na rua?

– É muito fácil. Eles estão de vermelho. Quem vota em Lula usa vermelho.

Empresário bolsonarista praticando tiro ao alvo com imagem de Lula | Foto: Reprodução

Eu ousei “responder”. Diante do animal, que tem a disposição de matar qualquer cidadão, uma resposta é a falsa concordância. E mais grave, a melhor resposta é a cumplicidade. Então eu, para melhor estudá-lo, fui cúmplice:

– Você está certo. Contra comunista…. Mas o que nós vamos fazer se formos presos? Pode haver policial comunista infiltrado.

– Ah, tranquilo. Sem problema. Nós estamos nos postos-chave. Temos delegados, secretários, oficiais da polícia militar, juízes, tudo a nosso favor. Entende? – E baixa a voz: – Segurança total. Nós temos encontros sociais, festinhas, e acertamos nossas justiças.

– Justiçamentos, é isso?

– Planejar pra matar quem merece.

– Que coisa maravilhosa, homem! Vocês são muitos. Mas será mesmo verdade?

– Então eu estou mentindo? Não sou o único. Eu gosto de matar, mas não sou louco. Tenho apoio. Não vê o nosso presidente? Tu acha que Marielle foi despachada sem os amigos do presidente? Tu acha que aqueles dois amiguinhos gays lá do Amazonas não estavam já prometidos de morrer? Ah, rapaz, perca o medo. Não seja covarde.

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A vontade que tive foi de pedir ao bravo indivíduo um encontro com os seus “patriotas”. Mas aí eu seria um repórter isolado, sem armas de apoio. E para culminar, a lei não estava ao meu lado. Quero dizer, a lei praticada por seus agentes, não a escrita. E eles não gostam de nada escrito: lei, jornalismo, livro, Constituição. E sem querer, fui traído por um pensamento que me escapou em voz alta:

– A Constituição…

– O quê? Foda-se a Constituição. A Constituição é o Brasil para a família e Deus.

– Deus?

– Sim, Deus! O Deus vingativo. O Deus furioso contra os ateus, contra os degenerados. É justo enfiar uma pica na boca de nossas crianças?! Morte para os veados, morte para os negros de terreiros, morte para os professores que doutrinam, morte para as mulheres metidas a machos. Morte!

Nesta altura, eu me rendi ao papel do repórter que incita a confissão do criminoso:

– Muito bem! Você é o cara.

Ele gargalhou uma gargalhada feia, babosa de raiva. Gritou para mais dois blacks. E falou:

-Você não sabe de nada.

Então ocorreu um fenômeno estranho, uma estranheza dentro da civilização de Olinda. Eu já havia visto manifestação parecida em sessões de centro espírita. Ali, entre os espíritas, médiuns falavam como se tomados pelo espírito de outras pessoas. Aqui no bar de Olinda, o corpo e mente dos músculos do “patriota” foram tomados. Tomados por um mal e maldade poderosos da morte nacional. Ele ficou rubro de raiva e falou:

– Era uma passeata a favor de Lula. Pararam o trânsito. Mas eu não parei. Quem mandou a puta vermelha pular no meu para-brisa? O azar foi dela. Freei de vez, ela caiu. Aí botei por cima. Se pegou a cabeça, eu não sei. Acho que só as pernas, O que ouvi foi osso se partindo. Ainda vieram os bandidos dela, os “companheiros” querendo me pegar. Foi pé no acelerador. Eles querem ser heróis. Então morram com a cabeça estourada. Matar comunista dá muito prazer. Deus me fez assim. Não querem destruir as igrejas? Eu sou um missionário. O som das balas se repetindo são a coisa mais bonita do céu e da terra. Até o cheiro é divino. Uma vez um advogado me perguntou se eu tinha alguma dor de consciência. Eu disse a ele: ou eu mato ou eles me matam. Qual é a dor? A minha consciência é limpar o Brasil de toda sujeira. Mas quanto mais eu mato, mais tem bandido comunista. De todo tipo. Aliás, eu não mato. Deus é quem tira a vida. Eu sou só um meio que Deus usa. Ele é o Senhor da Morte. Para Ele e para o Brasil, faço o que for preciso: atropelamento, caçada humana, tiro, bomba. Arararrá. Arrarrarrá.

O indivíduo diante de mim gargalhava a ponto de chorar. Parecia ter atingido um clímax. Eu fiquei sem palavras. Apertei-lhe a mão e saí. Não sei qual foi o resultado do jogo na televisão. O jogo mais sério esteve na minha frente e nada fiz. Representei o companheiro dos fascistas, o confessor dos seus crimes impunes. Mas toda representação contamina a gente. Saí mal, bem mal dali. E para diminuir a covardia, só me restou copiar a memória desse encontro.

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