As mulheres no socialismo: avanços e impasses

As conquistas da revolução


A situação das mulheres na Rússia czarista, como, aliás, na quase totalidade dos países capitalistas, era deplorável. Elas não podiam votar e nem participar de organizações políticas. Não existia matrimônio civil, ape

No início do século 20 apenas 12,4% das mulheres russas sabiam ler e escrever.  Em algumas regiões mais atrasadas os homens tinham o direito de vida e de morte sobre suas esposas e filhas –  uma tradição medieval que era tolerada pelo regime czarista.


 


A revolução socialista de outubro de 1917 viria abalar profundamente este estado de coisas e colocar a mulher em outro patamar na luta pelos seus direitos. Na verdade, a reviravolta já havia se iniciado meses antes quando o governo provisório sob pressão das massas insurgentes, especialmente das mulheres, promulgou o direito ao voto feminino.


 



A Rússia revolucionária foi o primeiro grande país europeu a instituir tal direito. O segundo país foi a Alemanha, após a revolução operária de 1918. A França e a Itália só viriam instituir o sufrágio universal feminino em 1945. 


 



O primeiro sinal dado pelo poder soviético de que as coisas mudariam para as mulheres na nova ordem foi a eleição da líder socialistas e feminista Alexandra Kollontai para o cargo de Comissária do Povo de Assistência Pública – título equivalente a de ministro de Estado. Assim, Kollontai foi a primeira ministra da história.  Um fato que merece ser lembrado.


 



A constituição soviética estabeleceu que as mulheres desfrutariam de “direitos iguais aos homens em todos os terrenos da vida econômica, pública, cultural, social e política”. O código penal, por sua vez, determinou punições para os que buscassem impedir que isto se realizasse.


 



Quatro dias após a tomada do poder, os bolcheviques estabeleceram para as mulheres a jornada de 8 horas diárias de trabalho e proibiram serviços noturnos e nas minas. Logo em seguida, aprovaram subsídios à maternidade e uma licença remunerada de oito semanas antes e oito semanas depois do parto para mulher trabalhadora.
A legislação soviética determinou que: “o salário das mulheres e dos homens seriam iguais quando efetuassem o mesmo trabalho e na mesma quantidade”. Como diria Evelyne Sullerot, “pela primeira vez uma nação proclamava o princípio de ‘para trabalho igual, salário igual’”.  Um sonho distante para muitas mulheres do mundo capitalista naquela oportunidade.


 



Em 1924 tomaram-se medidas para impedir que as mulheres fossem demitidas e substituídas pelos homens, como vinha ocorrendo em toda a Europa no pós-guerra. Isto, segundo os bolcheviques, era uma necessidade política do socialismo. Para que pudessem cumprir novas e maiores responsabilidades, as mulheres foram integradas massivamente nos cursos técnicos e superiores. Em 1928 o número de mulheres nestes cursos era de 83.137 mil e em 1933 já havia subido para 548.832 mil. Uma verdadeira revolução educacional feminina.


 



Não somente no plano do trabalho e da educação as mulheres soviéticas foram beneficiadas. O poder soviético, logo de início, estabeleceu o casamento civil e reconheceu como legitimo os casamentos “de fato”, não registrados – denominados “casamentos livres” e, também, de maneira pioneira, pôs fim a deplorável distinção entre filhos legítimos e naturais (pejorativamente chamados de “bastardos”). Todos eram agora, sem distinção, portadores das mesmas garantias legais.


 



Uma lei aprovada em dezembro de 1917 estabeleceu que o casamento passava a ser uma “união livre e aberta de um homem e uma mulher” e, portanto, poderia “ser dissolvido, de acordo com a vontade dos dois cônjuges, bem como de acordo com o desejo de apenas um deles”. Escreveu Kollontai: “o divórcio deixou de ser um luxo acessível aos ricos; daqui em diante, a mulher operária não terá que solicitar durante meses, ou até durante anos, um passaporte para se tornar independente de um marido brutal, ou ébrio, que a espanca”.


 



Por fim, foi o “país dos sovietes” que, em primeiro lugar, legalizou o abordo, dando a mulher o direito sobre o seu próprio corpo. O decreto de novembro de 1920 afirmava: “O governo dos operários e dos camponeses (…) faz, em grande escala, uma sistemática propaganda contra os abortos e prevê, no caminho da estabilidade do regime socialista e dos progressos à maternidade e à infância, a extinção gradual desse fenômeno perigoso. Mas, na hora atual, as superstições de ordem moral herdadas do passado e a pressão das condições econômicas do momento ainda continuam a encaminhar certa parte da população feminina aos riscos desta operação. O Comissariado do Povo para a Saúde Pública e o Comissariado da Justiça, decretam:
1) A operação do aborto, efetuada livremente e a título gratuito, é autorizada pela lei, com a condição que ela seja praticada nos hospitais soviéticos, onde o máximo de segurança pode ser dado à paciente; 2) Uma proibição formal para efetuar esta operação é dirigida contra toda a pessoa sem diploma de médico; 3) As parteiras culpadas pela realização dessa operação, são privadas do direito de exercer sua profissão (…); 4) Todo o médico que, por motivos de lucros pecuniários, tenha feito esta operação fora das condições exigidas será citado perante o tribunal.”


 


 
Damos a palavra novamente a ministra Kollontai: “a república dos trabalhadores reconheceu que o abordo não era um delito. Essa lei foi promulgada por iniciativa e com a fervorosa participação da seção das mulheres (…) Reconhecemos que a URSS sofre, não de um excesso de força de trabalho, mas, ao contrário, carece dela (…) Como então se pode decretar que o abordo não é condenável? (…) O abordo é um fenômeno ligado ao problema da maternidade, resulta da situação precária das mulheres (…) O abordo existe e floresce em todos os países, e nem leis nem medidas de repressão puderam extirpá-lo. (…) Mas a ajuda clandestina às mulheres grávidas só serve para mutilá-las (…) Um abordo feito nas condições de uma intervenção cirúrgica normal é muito menos prejudicial, muito menos perigoso”.


 


Lênin e as mulheres


 


Ao pensar nas grandes conquistas das mulheres no socialismo não podemos desassociá-las do nome do líder revolucionário Wladimir Ilitch Lênin. Em 1903 foi ele que propôs a inclusão no programa do Partido Social-Democrata Russo do seguinte item: “estabelecimento da plena igualdade de direitos do homem e da mulher.” Em 1907 ficou ao lado de Clara Zetkin quando esta condenou as políticas de alguns socialistas que colocavam no centro de suas reivindicações o voto masculino e re-legavam para um segundo momento a luta pelo voto feminino.


 



Lênin, ainda, se pronunciou decididamente a favor do divórcio. “Não se pode ser democrata e socialista, escreveu ele, sem exigir imediatamente a plena liberdade de divórcio, pois a falta desta liberdade implica a máxima ofensa ao sexo oprimido, da mulher, ainda que não seja nada difícil compreender que o reconhecimento da liberdade de deixar os maridos não significa convidar a todas as mulheres procederem desta forma”.


 



Antes que outros revolucionários o fizessem, em 1913, ele defendeu de maneira conseqüente o direito das mulheres ao aborto: “somos incondicionais inimigos dos neo-malthusianos (…) Mas, isto não nos impede de modo algum, de exigir a abolição absoluta de todas as leis que castigam o aborto ou a difusão de obras de medicina, nas quais se expõem medidas anticoncepcionais etc.”


 



Lênin sabia da importância da luta das próprias mulheres trabalhadoras para o seu processo de emancipação. Por isso afirmou em tom provocativo: “Afirmamos que a emancipação dos operários deve ser obra dos próprios operários, e da mesma maneira a emancipação das operárias deve ser obra das próprias operárias”. As mulheres não poderiam ficar à espera da vontade soberana dos homens, mesmo sendo eles sinceros revolucionários.


 



Menos de dois anos após a revolução de outubro, Lênin poderia afirmar orgulhoso: “Nenhum partido democrático do mundo, em nenhuma das repúblicas burguesas mais avançadas, tem feito, neste aspecto, em dezenas de anos, nem a centésima parte do que temos feito no primeiro ano do poder soviético. Não temos deixado pedra sobre pedra (…) das vergonhosas leis que estabeleciam a inferioridade jurídica da mulher, que punham obstáculo ao divórcio e exigiam para concretizá-lo requisitos odiosos, que proclamavam a ilegitimidade dos filhos naturais (…) Em todos os países civilizados subsistem numerosos vestígios destas leis, para a vergonha da burguesia e do capitalismo. Temos mil vezes razão para nos sentirmos orgulhosos do que temos feito neste sentido. Entretanto, quanto mais nos desfazemos do fardo de velhas leis e instituições burguesas, tanto mais claro vemos que somente preparamos o terreno para a construção, porém esta ainda não começou”.


 



 O orgulho de Lênin era justificado, em poucos anos a URSS tinha realizado plenamente o programa feminista: direitos políticos iguais, salários iguais, direito ao divórcio e ao aborto (livres e gratuitos), ensino misto e igual para os dois sexos, rede de creches e escolas públicas etc. A URSS passou a ser um exemplo para as mulheres avançadas de todos os países.


 



Também era claro para Lênin que as coisas não poderiam andar no mesmo ritmo em todo imenso território soviético. Existiam regiões culturalmente muito atrasadas. Mas mesmo ali a revolução ia fazendo seu trabalho profilático.


 



A famosa jornalista socialista Anna Louise Strong, que visitou a URSS no final dos anos 1920, deu o seu testemunho sobre a cultura reacionária que ainda existia em algumas regiões mais atrasadas e atitude ativa do poder soviético para superá-la. Escreveu ela: “Houve o caso da garota de uma escola de Tashkent, que recebeu férias para que pudesse participar de agitações pelos direitos das mulheres na sua aldeia. Como resposta, seu corpo desmembrado foi mandado de volta à escola em uma carroça, onde se lia: Isto é para a liberdade de suas mulheres. Uma outra mulher havia recusado as atenções de um proprietário de terras e casara-se com um camponês comunista. Em conseqüência, um grupo de dezoito homens, incitados pelo proprietário, a violou no oitavo mês de gravidez e lançou seu corpo em um rio”.


 



Mas, continuou ela, “ao tomar conhecimento deste fato, o Poder Soviético usou várias armas para libertar as mulheres, como a educação, a propaganda e a lei em todas as partes. Grandes julgamentos públicos condenaram duramente os maridos que assassinaram suas esposas. Com a pressão das novas exigências, juízes confirmaram a pena de morte para os praticantes do que o velho costume não considerava como crime”. Eis a ditadura do proletariado agindo a favor da libertação da mulher.


 


Impasses e regressões. 


 


 


A partir de meados da década de 1930 ocorreu um arrefecimento do debate em torno do problema da emancipação da mulher. Predominou amplamente uma visão economicista (produtivista) e perderam-se as múltiplas dimensões da questão feminina – que se traduz no campo político, teórico, cultural, moral etc.


 



Podemos dizer que os componentes que conduziram à crise do socialismo foram os mesmo que conduziram à crise do feminismo soviético, pois o desenvolvimento do socialismo acompanha o desenvolvimento do processo de emancipação da mulher. Um se alimenta no outro. Quando um retrocede ou outro também tende a retroceder.  Esta é uma conclusão dos clássicos do marxismo. 


 



Em 1934, pela primeira vez desde 1917, a homossexualidade foi criminalizada. Dois anos depois, em 1936, uma nova lei sobre a proteção da mãe e da criança proibiu a realização do aborto e passou a se exercer forte repressão sobre aqueles que a praticavam. 


 



Stalin afirmou no alto de sua autoridade de principal dirigente do Estado Soviético: “O abordo que destrói a vida é inadmissível em nosso país. A mulher soviética tem os mesmo direito que o homem, porém isso não a exime do grande e nobre dever que a natureza lhe há designado: ser mãe da vida” e alguns anos mais tarde, em 1950, um documento do PCF, numa linguagem mais amena, procurou justificar tal medida: “A partir do 2º Plano Qüinqüenal, a contínua elevação do nível de vida, o crescente bem-estar dos trabalhadores, a multiplicação das maternidades, das creches, das escolas, tornaram caduca a absurda prática do abordo”. Cinco anos depois, logo após a morte de Stalin, o aborto voltou a ser permitido, mostrando que não era algo tão caduco e absurdo assim. 


 


 
Estas medidas regressivas coincidiam com o crescimento da repressão política contra a oposição e o início dos chamados processos de Moscou. Graças à repressão e a violação da legalidade socialista na URSS, sob direção de Stalin, a “teoria progredia de maneira insuficiente, passava por uma fase de relativa estagnação. Surgiram variados problemas decorrências do desenvolvimento objetivo da sociedade em construção. Escasseavam respostas teóricas a tais problemas, gerando ausência de perspectiva. Medrava, em certa medida, o subjetivismo, o empirismo e o dogmatismo”. Esta foi a constatação do VIII Congresso do PCdoB, realizado em 1992. Isto teve conseqüências no campo das relações sociais – que tinha como um de seus elementos centrais a relação entre homens e mulheres.


 



Um decreto de 1944 estabeleceu que “somente os casamentos legais asseguraria direitos e deveres para o marido e para a mulher. As pessoas vivendo maritalmente deveriam legalizar a sua união”. Apenas os casamentos registrados e os filhos assim concebidos passaram a ser reconhecidos pelo Estado. Voltava-se à antiga distinção jurídica entre filhos legítimos e naturais.


 


 
O divórcio, por sua vez, somente seria concedido em casos considerados graves e após a decisão de um juiz. Desde a década de 1930 o divórcio passou a ser pago e em caso de reincidência ele aumentava de valor. A partir de então o casal que quisesse se separar deveria pensar duas vezes, pois teria que arcar com o ônus financeiro. Os trabalhadores com menor remuneração eram os que mais sofriam com tais medidas.
No final da II Guerra Mundial o Estado soviético ainda criaria condecorações para as mulheres que tivessem mais filhos: a de “Glória maternal” para aquelas que tivessem entre sete e nove filhos e a de “Mãe heróica” para aquelas com dez ou mais filhos. Fortaleceu-se a imagem da mulher apenas enquanto mãe. Um estereótipo que a revolução de 1917 tentou acabar.


 



Nestes anos cresceu o moralismo no campo das relações familiares e sociais, que em tudo se distanciava do antigo espírito libertário forjado por Lênin e Kollontai. Em algumas regiões, por exemplo, foi re-introduzido o ensino separado entre meninas e meninos. Este clima se espalhou pelo movimento comunista internacional.


 



As razões de algumas destas medidas estavam ligadas às necessidades econômicas de incrementar a população – devido à aplicação dos planos qüinqüenais e depois com a sangria gerada pela II Guerra Mundial. Mas, a argumentação oficial era que a proibição do aborto, do homo-sexualismo, do casamento livre e do reconhecimento dos filhos naturais e os novos obstáculos impostos ao divórcio se deviam ao fato de a URSS ter entrado numa fase superior do socialismo, que a conduziria diretamente ao comunismo. Reprimir direitos das mulheres em nome da defesa do socialismo e do comunismo era um contra-senso político e teórico para qualquer marxista.


 



Foi visível também a redução do papel das mulheres no núcleo duro do poder de Estado e no Partido Comunista. A URSS não produziu mais nomes expressivos como Krupskaia, Kollontai ou Inessa Armand. A explosão da participação política das mulheres, iniciada com a revolução russa, não foi concluída e refluiu. Os comitês femininos que jogaram um grande papel pós-revolução perderam força e desapareceram. O feminismo, inclusive na sua vertente socialista, passou a ser considerado um desvio pequeno-burguês.


 


 
Mas, o recuo não foi completo e a mulher soviética continuou, por longos anos, usufruindo de direitos que as mulheres no capitalismo estavam longe de conseguir. Lembramos apenas que o aborto e o divórcio livres não eram reconhecidos em quase nenhum país. Portanto, mesmo na sua fase mais “conservadora”, a URSS não ficou aquém de nenhuma das democracias ocidentais. 


 


 
A URSS manteve uma alta porcentagem de mulheres no trabalho e uma reduzida “divisão sexual do trabalho”. Ali as mulheres estavam distribuídas em todas as profissões, embora continuasse existindo uma concentração maior em serviços tidos como femininos e, por isso, menos remunerados. Em 1959 as mulheres representavam 31% dos engenheiros, 32% dos juristas, 74% dos médicos e 67% dos professores com nível universitário. Proporções bastante altas comparadas as dos países capitalistas no mesmo período.


 



Devemos, assim, concordar com Heleith Saffioti que afirmou, “a experiência soviética demonstra que, se a libertação da mulher e sua conseqüente integração na sociedade não se realizaram plenamente sob o regime socialista, foi sob este regime que ela atingiu seu maior grau”.  Aprender com os acertos e erros desta rica experiência nos propiciará retomar em outro patamar a luta pelo socialismo e pela emancipação das mulheres. 


 


  


Bibliografia


 


 


Alambert, Zuleika, Feminismo: o ponto de vista marxista, Ed. Nobel, S.P., 1986.
Lênin, V. I. – Sobre a emancipação da mulher, Ed. Alfa-Omega, S.P., 1980
Riazov, David – Socialismo, casamento e família, Livraria Martins Fontes, Porto, 1975.
Saffioti, Heleieth I. B. – A mulher na sociedade de classe: Mito e realidade, Ed. Vozes, Petrópolis, 1976.
Sullerot, Evelyne – Historia y sociología del trabajo femenino, Ediciones Península, Barcelona, 1970.
Volkova, Tâmara – Ser mulher na URSS e países do Leste, Ed. Antídoto, Lisboa, 1978.

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