As inflexões positivas do governo Lula

Desde o início, o Partido Comunista do Brasil definiu, corretamente, o governo Lula como um governo em disputa. O ponto de partida da análise dos comunistas brasileiros era, na verdade, o ponto de chegada da ciência política marxista do século 20.

Esta havia concluído que nenhum Estado é um bloco monolítico, sem fissuras. Ele tem sido, pelo menos desde o século 19, um espaço de disputa entre as diversas frações das classes dominantes e às vezes, raramente, de setores representativos das classes populares. Este último fenômeno ocorre em momentos de crise de hegemonia.


Vejamos o caso brasileiro desde a segunda metade do século 20. O segundo governo Vargas foi marcado por uma acirrada disputa entre diversos projetos desde o liberal-conservador até o nacionalista de esquerda. Cada um desses projetos traduzia os interesses de frações de classe ou de categorias sociais bastante concretas. Os governos de Juscelino e de Jango não foram imunes a estas disputas. A política adotada por eles foi o resultado de determinada correlação de forças entre as classes em luta no interior e fora do governo. Podemos dizer que nestes embates os setores agro-exportadores – e anti-industrialistas – foram derrotados, embora não eliminados.
 


Os governos ditatoriais pós-1964 viveram também suas lutas internas, às vezes violentas. As diversas correntes militares que se digladiavam, em última instância, representavam – ou se articulavam – com os interesses de alguma das frações das classes dominantes. O primeiro governo militar, o do Marechal Castelo Branco, foi abertamente liberal. O segundo governo, do Marechal Costa e Silva, fez uma inflexão “estatista” e “desenvolvimentista”, que seria radicalizada nos dois governos seguintes, os dos generais Médici e Geisel. A hegemonia das correntes nacionalistas autoritárias, que representavam os interesses das burguesias monopolistas – industrial e bancária -não eliminou a corrente liberal.


Mesmo os dois governos neoliberais de FHC conheceram algum nível de disputa, ainda que de baixa intensidade. Citemos apenas o conflito entre Serra e Malan – respectivamente representante do capital produtivo monopolista e do capital financeiro. Nestes governos a hegemonia coube a esta última fração da grande burguesia, coligada com os interesses do capital financeiro internacional.
 


Então qual a novidade do governo Lula?


A novidade do governo Lula foi a introdução de forças democráticas e populares no interior do bloco de poder de um Estado ainda capitalista. Pela primeira vez, partidos de esquerda, com expressiva base operária e popular, chegaram ao governo da República brasileira. A participação de comunistas, trotskistas e social-democratas de esquerda no primeiro escalão era um dos indícios dessa mudança de campo – um sinal da alteração no interior do Bloco de Poder. 


O governo Lula é também um governo em disputa, mas entre as correntes políticas e sociais (populares e democratas) que desejam um novo modelo de desenvolvimento e aquelas que desejam fazer apenas alterações secundárias no modelo atual e acreditam poder fazer o casamento entre políticas macro-econômicas neoliberais e políticas sociais inclusivas. Mesmo esta segunda corrente, que chamaremos de “neoliberalismo light”, não deve ser confundida com a que predominou no governo FHC, a do “neoliberalismo hard”.  A correlação de forças existente entre elas nem de longe se compara com a existente durante a “era FHC”.


Uma das particularidades do novo governo foi sua estratégia de manter certo equilíbrio entre as forças em disputa. Foi isso que deu a ele – especialmente, a sua política econômica – um caráter híbrido. Lula, ao longo de três anos, tomou o cuidado para que a balança não pendesse demasiadamente para um dos lados, a ponto de neutralizar (ou eliminar) o outro contendor.


Por exemplo, José Dirceu foi substituído na Casa Civil por Dilma Roussef; o economista nacionalista Carlos Lessa foi substituído por Guido Mantega à frente do BNDES. Dirceu e Lessa, efetivamente, foram derrotados pela ala não-mudancistas do governo (com apoio da mídia e das forças conservadoras), mas foram substituídos por outros da mesma corrente, embora com perfis diferentes. Assim, as vitórias dos conservadores (dentro e fora do governo) não foram completas. Pelo contrário, foram verdadeiras vitórias de Pirro.
 


Por outro lado, não podemos negar que neste jogo existia um viés, um desequilíbrio estrutural, favorável às forças que resistiam às mudanças. Estas forças se concentravam, fundamentalmente, no Ministério da Fazenda e no Banco Central.  Foram, em certo sentido, esses “ministérios” que deram o tom durante os últimos anos. Palocci, apoiado em Meirelles, era o homem forte do governo Lula.


Muitos chegaram mesmo a defender que a queda de Lessa havia mudado o caráter do governo, as correntes conservadoras haviam ganhado definitivamente a parada e o governo Lula deixava de ser “um governo em disputa” e tornara-se simplesmente um governo neoliberal. Esta tese mostrou-se incorreta. Como se tratava de uma luta política ainda em curso, aquele não podia ser um resultado definitivo.
 


Uma nova inflexão


A crise política, iniciada pela direita, que atingiu o governo Lula levou que se iniciasse uma inflexão positiva nos seus rumos. Mesmo antes de sua renúncia era visível que Pallocci já perdia força. A indicação de Guido Mantega para o seu lugar, a substituição de Murilo Portugal e Joaquim Levy – principais expoentes do neoliberalismo no governo – foram à conclusão de um processo já em curso. O bloco que defendia algum nível de mudança na política macro-econômica se fortaleceu.
 


Desde a nomeação de Mantega temos visto um choque permanente entre o Ministério do Planejamento e o Banco Central.  Há poucos meses atrás ele já havia denunciado o “excesso de zelo do BC”. Após sua posse, perguntado se o nível dos juros estava compatível disse: “Se continuar caindo, está compatível”. Numa entrevista polêmica à Folha de São Paulo, chegou a condicionar a paz com o BC a continuidade da redução dos juros.


Por sua vez Meirelles afirmou que “as declarações do ministro da fazenda não são levadas em conta nas reuniões do Copom” e  Mantega retrucou: “O Copom tem autonomia para decidir. Agora, o ministro da Fazenda tem a obrigação de analisar a situação econômica, da inflação e tirar suas conclusões. Já pensou o ministro da Fazenda não ter opiniões sobre economia? Seria o fim da picada”. Lula teve que intervir na briga entre seus ministros e tentar estabelecer o equilíbrio.


Mantega provocou nova celeuma ao afirmar: “O superávit é de 4,25 do PIB, mas tem gente que gostaria que fizéssemos um superávit maior. Quem são eles? São os ortodoxos. Então é bom que se diga. Eu não sou ortodoxo. Eles são aquelas pessoas que não gostam dos programas sociais que o governo faz (…) essa é uma diferença ideológica nossa com os ortodoxos e conservadores, que não gostam de programas sociais. Esse gasto o governo não vai reduzir, pois é uma questão de honra atender às necessidades essenciais da população”. No dia seguinte, fortemente pressionado pelo capital financeiro, teve que relativizar sua afirmação anterior.


Os jornais liberal-conservadores constataram, corretamente, que com a queda de Pallocci cresceu muito o poder de Dilma Rousseff. Afirmou a Folha de São Paulo: “Desde então, Dilma não enfrenta nenhuma resistência de Mantega ao tomar medidas de ampliação dos gastos públicos a respeito dos quais Palocci tinha reservas”. Segundo o mesmo jornal, Dilma foi vitoriosa na discussão sobre o valor das aposentadorias, sobre a elevação do teto e dos benefícios da bolsa família, sobre o reajuste do salário do funcionalismo público e o último pacote agrícola. As medidas tomadas pelo governo nestes últimos meses levaram os gastos governamentais ao maior patamar da história, segundo o jornal paulista.
 


O maior impacto sobre os gastos públicos foi causado pelo aumento do salário mínimo para R$ 350 – e não R$ 321 como previstos no projeto de orçamento deste ano – o aumento do número e a recuperação das perdas do funcionalismo. A grande imprensa não cansou de afirmar que os “pacotes de bondade” e o ritmo dos gastos públicos preocupavam os especialistas e ameaçavam a estabilidade da nossa economia.


Entre as medidas em vias de ser implementadas está o aumento do valor da bolsa família em 12,7% e do teto, que subirá de R$ 95 para R$ 107 mensais, e a ampliação do limite de renda para que uma família possa ser incluída no benefício, que passaria de R$ 100 para R$ 120. Este aumento estava sendo obstaculizado pela equipe econômica anterior, liderada por Pallocci. Quando implantadas elas consolidarão o apoio ao governo das camadas mais empobrecidas da população brasileira. Ao contrário do que dizem, essas medidas compensatórias (e focalizadas) têm impacto importante no desenvolvimento regional.
 


Um relativo fortalecimento do Estado


Nestes últimos dias também não podemos deixar de notar uma onda que se levantou contra um suposto agigantamento da máquina pública durante o governo Lula. A direita neoliberal afirma que isso é o resultado de uma política populista, que tem com um de seus instrumentos o “empreguismo” no setor público. Afirma enraivecida que isso seria uma reversão de uma tendência que vinha predominando desde o início da década de 1990, e que foi radicalizada na “era FHC”. Diminuir o tamanho da máquina pública – leia-se desmontá-la – tem sido a principal fórmula dos neoliberais para amenizar a crise fiscal do Estado e estabilizar a economia. 


O governo FHC fez um corte de 127 mil cargos na administração pública direta e quase 100 mil nas estatais privatizadas.  Uma parte dessas funções foi ocupada por trabalhadores terceirizados, com baixos salários e direitos reduzidos. Além disso, foram oito anos de salários congelados – exceção de um pequeno aumento dado às vésperas da eleição de 2002. Os aposentados não tiveram a mesma “sorte” no reinado neoliberal dos tucanos.
 


Pelo contrário, durante o governo Lula foram criados 37,5 mil cargos, dos quais 35.275 mil foram preenchidos por concursos públicos. Isso significou um aumento de cerca de 8% no total do funcionalismo federal. Uma grande parte das contratações se destinou à saúde (6.285), educação (3.900) e transporte (3.975). As carreiras mais beneficiadas com as novas contratações foram as dos professores universitários (1.612), médicos (998) e enfermeiros (750).  Somente as Universidades Federais foram criadas 3.900 cargos. Para o INSS foram criados 6.800 cargos. No final de março uma medida provisória criou mais 4.175 cargos nas áreas de defesa, transporte, desenvolvimento e saúde.


Os motivos alegados pelo governo foram três: “substituição de trabalhadores terceirizados no governo FHC, recomposição de áreas em que havia deficiência de pessoal e de criação de novas carreiras no serviço público”.


Essas medidas ainda são tímidas diante do rombo criado no Estado brasileiro pelos neoliberais. Mas, a imprensa e os partidos liberal-conservadores acionaram o alarme, pois tais medidas não se coadunam bem com a lógica neoliberal predominante na oposição e na mídia brasileiras.


A crise boliviana e a inflexão do governo Lula


Uma dos marcos dessa inflexão positiva foi o fortalecimento do Ministério das Relações Exteriores – e do Itamaraty – durante a crise Boliviana. Nestes últimos dias assistimos a uma fortíssima pressão conservadora sobre o governo. Exigia-se que Lula destituísse Amorim do Ministério das Relações Exteriores e mudasse os rumos da sua política externa pró-integração latino-americana. Conclamou-se uma ação mais dura contra o governo de Evo Morales. Chegou-se a defender a retirada do embaixador brasileiro e o deslocamento de tropas para as fronteiras daquele pequeno país.
 


Se o governo tivesse cedido à pressão liberal-conservadora da grande burguesia, os resultados poderiam ser terríveis para as correntes progressistas dentro e fora do governo. Poderia representar uma inflexão à direita do governo e a perda de prestígio entre as forças avançadas, com conseqüências perigosas para o futuro da América Latina. A mídia conservadora do continente tentou jogar Lula contra Chavez e Morales e implodir o processo de unificação latino-americana, sob direção das forças políticas progressistas.  Muitas correntes tidas como de esquerda também entraram neste jogo perigoso.


O governo brasileiro, de maneira ousada, apoiou a decisão do governo boliviano de nacionalizar as reservas de gás. Na sua primeira nota pública, reconheceu o ato soberano do governo e do povo da Bolívia. Afirmou que o Brasil também exercia “o pleno controle sobre as riquezas do seu próprio subsolo”.


O presidente Lula chegou a criticar diretamente os métodos do imperialismo norte-americano e, brincando, disse que não iria descobrir nenhuma arma de destruição em massa para justificar uma invasão ao país vizinho. Ele ainda afirmou, na reunião regional da OIT, que “não havia crise Brasil-Bolívia” e que haveria “um ajuste necessário de um povo sofrido e que tem o direito de reivindicar ter maior poder sobre a maior riqueza que tem.”
 


Enquanto isso, vociferava o editorial da Folha de São Paulo: “Fica configurado o espírito ‘revolucionário’ da gestão Morales, infestada de ideólogos do confronto étnico (…) Morales é mais um a abraçar o nacionalismo populista de Hugo Chaves na América do Sul”. “passou o tempo da benevolência (…) O Brasil (…) deve redobrar as pressões para que Morales abra exceções em sua política extremista (…) e nenhum centavo adicional do contribuinte brasileiro deve ser alocado no país andino enquanto perdure o surto estatista”.


O oposicionista e presidenciável Roberto Freire foi na mesma direção e exigiu que o governo fosse “firme” e não admitisse “processos expropriatórios”.  Continuou ele: “Nossa política externa, na verdade, vem se desenvolvendo de forma militante, com cacoetes ideológicos, em vez de priorizar os interesses reais e permanentes do Brasil” e revelou o segredo da oposição: “o Uruguai ameaça deixar o Mercosul por absoluta inépcia dos negociadores internacionais do Brasil, que desfruta da posição de líder do bloco. O Peru, por sua vez, já assinou acordo bilateral com os americanos. Nós, que não discutimos a Alca, ficamos cada vez mais isolados”. Para Freire – e Alckmin – o caminho do “não isolamento” do Brasil é o caminho de adesão a Alca. Esse é o nacionalismo estridente de nossos liberais: altivo diante da Bolívia, de joelho diante do imperialismo norte-americano. 


Inflexão não é ainda ruptura 


Com essa inflexão – que não é ainda uma ruptura com a estratégia anterior – melhora a situação das forças mudancistas fora e dentro do governo. Criam-se melhores condições para que um segundo governo Lula seja melhor que o primeiro: mais popular, mais democrático e mais nacionalista. Sabemos que o momento é muito delicado e arriscado para tais manobras, pois estamos às vésperas das eleições.
 


A disputa dentro e fora do governo não está parada. A pressão externa da direita tenderá a aumentar nos próximos meses. A crise boliviana, incensada pela mídia, é apenas um pequeno sinal que virá pela frente. A “insurreição criminosa” do PCC em São Paulo talvez seja utilizada neste movimento de aterrorizar o povo, especialmente a classe média, e jogá-lo contra o governo Federal, mesmo sabendo que a responsabilidade da segurança pública, constitucionalmente, caiba aos estados e não da União.


Por isso caberá a esquerda política e social aumentar sua mobilização, intensificar a luta de idéias e construir um amplo movimento que dê sustentação às inflexões progressistas do governo Lula e garanta-lhe um segundo mandato.

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