Apenas a ponta do iceberg

Ainda haverá, no governo Bush e alhures, quem acredite que o poderio econômico dos EUA está no melhor dos seus dias. Contudo, até mesmo o senso comum terá percebido a notícia divulgada na última terça-feira (24-4) de que a Toyota Motor tornou-se a número

A Toyota supera sua rival em vários outros indicadores. Seu valor de mercado, estimado em 225 bilhões de dólares, é quase doze vezes superior ao da GM. Já o lucro ficou em torno de US$ 13 bilhões nos 12 meses completados em março deste ano, ao passo que a empresa dos EUA ainda luta para sair do vermelho, tendo acumulado prejuízos de US$ 2 bilhões em 2006 e US$ 10,4 bilhões em 2005.



Longo declínio



O ramo automobilístico da potência hegemônica no sistema imperialista não entrou em colapso de uma hora para a outra, a exemplo do que ocorre com o conjunto da economia. Conforme notou o jornalista Keith Bradsher, do “New York Times” (em matéria reproduzida pela “Folha de São Paulo”, 25-4, página B14), “a ascensão da Toyota, que muitos observadores do setor já previam havia algum tempo, é um novo marco no longo declínio da indústria americana, que já dominou o mundo”. Os problemas começaram a se acumular “a partir da metade dos anos 1960”.



As empresas estadunidenses perderam terreno pouco a pouco em decorrência de fatores como o relativo atraso e estagnação tecnológica ensejada pela arrogância monopolista (retratada por Francis Ford Coppola no belo filme “Tucker – Um homem e seu sonho”) e o elevado custo de sua aristocracia operária, entre outros. Em contrapartida, a concorrência estrangeira (sobretudo japonesa) avançou estimulada pela maior criatividade industrial, traduzida em inovações tecnológicas e gerenciais (toyotismo), associada a uma taxa de exploração maior da força de trabalho, ganhando em produtividade e competitividade (preços relativos).



Detroit, outrora a próspera capital da indústria automobilística, é hoje a própria imagem social da decadência, com a fama de “cidade fantasma, inóspita, assustadora”, nas palavras da jornalista Cora Rónai, que em seu blog na internet descreve, a respeito, um cenário desolador. “Muitos edifícios da época de ouro estão abandonados. Outros foram ocupados por mendigos. A sujeira é universal. Rua após rua, o que se vê são lojas fechadas, ruínas, escassos sinais de vida.”


 



Desenvolvimento desigual



 


A perda de mercado é particularmente sensível dentro dos próprios EUA, onde os estrangeiros respondem atualmente por 49% das vendas no ramo automobilístico. Das três grandes de Detroit (GM, Ford e Chrysle) restaram duas (GM e Ford) que não parecem muito longe da insolvência. Primeira a falir, a Chrysle foi abocanhada pela alemã Daimler. Com qualidade e preço atraentes, a Toyota, sozinha, já detém 16% do apetitoso mercado estadunidense.



A decomposição da hegemonia automotiva dos EUA nos dá um exemplo eloqüente da lógica do desenvolvimento desigual das nações operando num ramo específico da produção industrial. Todavia, é apenas a ponta do iceberg. A decadência da indústria norte-americana é um fenômeno bem mais amplo e complexo, que pode ser melhor percebido (de um ponto de vista mais geral) quando se analisa o déficit industrial acumulado por Tio Sam no comércio exterior, que em 2006 alcançou o valor recorde de 836 bilhões de dólares.



O saldo comercial negativo do setor industrial é a principal causa do déficit em conta corrente e da fabulosa dívida externa dos EUA. Reflete a perda de espaço para a concorrência estrangeira pelo conjunto da indústria. Significa que as corporações do setor, em muitos e diferentes ramos, perdem terreno para o capital estrangeiro no maior e mais desregrado centro do mercado único mundial. Não só, nem principalmente, para o Japão, como também para a China, a Alemanha e outros países. A impressão que se tem, ao refletir sobre o tema, é que aos poucos a concorrência e o parasitismo estão levando a indústria estadunidense à bancarrota, despertando um forte ressentimento protecionista.


 



Reprodução parasitária



 


O fenômeno tem provocado mudanças significativas no ciclo econômico e na reprodução do capital nos Estados Unidos e em todo o mundo. Está associado ao que o norte-americano Robert Brenner, professor de História e diretor do Center for Social Theory and Comparative History da Califórnia, classificou de “uma via de expansão distorcida”, no livro “O boom e a bolha” (publicado pela editora Record).


 



O fato é que o hesitante ciclo expansivo que se seguiu à recessão de 2001 nos EUA não teve por força motriz o crescimento da produção de valores reais (mercadorias) pela indústria ou reanimação do nível emprego, que só começaram a reagir em 2003. “Os setores industriais e correlatos continuaram numa contração profunda”, assinala Brenner. A recuperação, que hoje se revela frágil (sugerindo mais uma “bolha” do que de um “boom”), foi liderada pela expansão do comércio (estimulado pelo excesso de importações) e do crédito, especialmente no setor imobiliário (que alavancou a construção civil), além de ser reforçada pelo chamado “keynesianismo de guerra” (Iraque e Afeganistão).



Os otimistas dirão que o recuo da indústria é um processo natural ou um subproduto inevitável e até saudável do progresso, já que caminhamos todos, alegremente, para a “sociedade pós-industrial”. Mas, esta é uma maneira errada de ver as coisas. Não devemos apagar as fronteiras entre trabalho e setores produtivos e improdutivos da economia ou esquecer as lições elementares de Marx sobre as atividades comerciais e financeiras, que certamente movimentam, mas não criam valores e, por conseqüência, são, por natureza, improdutivas, muito embora indispensáveis. Convém desconfiar de um crescimento puxado pelo consumo e pelo crédito.



Como disse um economista americano (Addison Wggin) medir o PIB através do consumo alimentado por dívidas é medir a taxa pela qual os EUA estão fadados à falência (enquanto potência hegemônica). “O endividamento em constante expansão constitui uma maneira perigosa de manter vivo o consumismo no interior do país, para não falar de pagar uma guerra”, alertou, por sua vez, o professor David Harvey (no livro “O novo imperialismo”, Edições Loyola).



No caso, o declínio da indústria reflete uma via parasitária de reprodução capitalista, em que o consumismo exacerbado tornou-se a principal fonte de crescimento, gerando uma falsa exuberância; é fruto do velho e renovado parasitismo, cujo resultado histórico é (e não poderia deixar de ser, conforme prevenira Lênin) a decomposição da hegemonia econômica dos EUA e do padrão dólar. Notemos que a vertiginosa ascensão da China, no pólo oposto do desenvolvimento desigual, tem por fundamento, em vez da “financeirização”, o extraordinário desenvolvimento da indústria. Pretendo voltar ao tema com mais detalhes num próximo artigo.    

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor