Álvaro Cunhal em “A Casa de Eulália”

Urariano Mota traduziu* artigo de Eric A. Gordon** sobre um dos melhores romances de Álvaro Cunhal que usava o pseudônimo de Manuel Tiago

Ilustração de José Luis Rey Vila

Quero apresentar “A Casa de Eulália” para os leitores de língua inglesa com algumas reflexões pessoais como seu tradutor.

Se um pai fosse perguntado “qual de seus filhos era o favorito”, ele estenderia os dedos da mão e responderia: “Meus filhos são como os meus dedos. Não me peçam para dizer qual o favorito. Todos são preciosos para mim”.

Histórico líder comunista e escritor português, Álvaro Cunhal usava o pseudônimo Manuel Tiago

“A Casa de Eulalia” é o sexto dos oito livros de Manuel Tiago (como os leitores devem saber, esse é o pseudônimo literário de Álvaro Cunhal, líder por longo tempo do Partido Comunista Português). Todos os seus livros têm méritos únicos. No entanto, vou discordar do pai mencionado acima, e dizer que “A Casa de Eulália” é pelo menos uma das minhas obras favoritas do autor português. Por quatro razões:

A Guerra Civil Espanhola

“A Casa de Eulalia” está situada nos primeiros meses da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Essa crise foi a questão social definidora do seu tempo. Com regimes fascistas já estabelecidos na Alemanha, Itália e Portugal, ao lado de estados militaristas autoritários como o Japão, muitos milhões de pessoas em todo o mundo perceberam o perigo fascista na Espanha e responderam ao chamado democrático. Eles sabiam que uma Espanha fascista, apoiada pelas outras nações fascistas, representaria uma ameaça à democracia ocidental no resto da Europa. Tal eixo de forças só poderia ser uma ameaça também para a jovem União Soviética socialista. Uma vitória fascista na Espanha daria força ao acordo reacionário antidemocrático do mundo entre Junkers (a velha nobreza da Alemanha), capitalistas, imperialistas coloniais, latifundiários feudais e a Igreja.

Ilustração de José Luis Rey Vila

Quando foi deflagrada a guerra, voluntários vieram de muitas terras, representando várias tendências políticas – comunistas, trotskistas, socialistas, anarquistas, sindicalistas, republicanos – refletindo as diferentes vertentes da política interna dentro da própria Espanha. Dos Estados Unidos, pelo menos dois mil homens e mulheres, jovens apaixonados se juntaram aos de outras terras nas reverentemente lembradas Brigadas Internacionais. O contingente americano foi chamado de Batalhão Abraham Lincoln, muitas vezes chamado de Brigada. Até hoje, os Arquivos da Brigada Abraham Lincoln (ALBA) continuam a educar o mundo sobre esses heróis, que arriscaram e deram as suas vidas na defesa da democracia. O seu bem pesquisado periódico The Volunteer está repleto de suas histórias. Quando, após a Segunda Guerra Mundial, os voluntários foram investigados pelos seus pontos de vista pró-democráticos por organismos como a Comissão de Atividades Antiamericanas da Câmara, foram apelidados de “antifascistas prematuros” por reconhecerem a ameaça que em breve envolveria o mundo inteiro.

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Assim, o cenário desse romance é um grande divisor de águas. É altamente irônico pensar que de alguma forma “antifa” – antifascistas – são agora considerados desprezíveis nos círculos conservadores e de direita. Milhões de americanos, para não mencionar muitos mais em todo o mundo, foram destemida e ferozmente empenhados na causa “antifa” nos anos 40 e venceram, entre eles o meu próprio pai, na Batalha do Bulge. Se um indivíduo é “anti-antifa”, é praticamente um “fa”, fascista, na minha opinião!

A Espanha capturou a imaginação de artistas em todos os meios em todo o mundo. Os romances bem conhecidos de Ernest Hemingway, Alvah Bessie e outros americanos capturaram as vistas, os cheiros e as paixões da guerra, enquanto o escritor britânico George Orwell em Homenagem à Catalunha documentou a forma como os defensores da democracia se empenharam na construção da nova sociedade dentro da velha – e sob artilharia dos fascistas. Documentários como The Spanish Earth trouxeram poderosamente as imagens da luta da Frente Popular.

Em outros países também, os artistas tentaram fazer soar o alarme contra o fascismo. As corajosas artes gráficas do período atestam os apelos generalizados ao financiamento de ambulâncias, armas, ajuda aos refugiados e outras causas relacionadas com a guerra. Guernica, a pintura mural do artista espanhol Pablo Picasso pode ser a resposta artística mais identificável contra o terror fascista, e é certamente uma das maiores obras de arte do século XX. O acadêmico Paul Preston estima que os livros sobre vários aspectos da Guerra Civil Espanhola “são em torno de trinta mil”.

Em toda essa produção artística e histórica, quase não se fala da resposta da vizinha Portugal à Guerra Civil Espanhola. Isso é estranho uma vez que Portugal já sofria sob o regime fascista de Antônio Salazar há uma década e estava demasiado familiarizado com o que o povo espanhol teria pela frente – e o mundo – caso vencessem as forças do Generalísimo Francisco Franco. Era a esperança do autor Manuel Tiago, e agora minha com o lançamento do seu romance em inglês, que a Casa de Eulália ajudasse a preencher essa lacuna.

Autobiografia ficcionalizada

No início da década de 1930 Álvaro Cunhal (1913-2005) era um líder em ascensão no Partido Comunista Português. A partir de 1935, é o secretário-geral da Federação da Juventude Comunista Portuguesa. Em julho do ano seguinte, com quase 23 anos de idade, foi enviado à Espanha numa missão especial, para libertar de uma prisão em Cáceres dois camaradas portugueses, Manuel Guedes e Pires Jorge. Ajudaria também a trazer de Moscou para casa o camarada Francisco Paula de Oliveira.

Nas próprias palavras de Álvaro Cunhal (conforme a minha tradução de um discurso seu publicado em 1996): “Alguns dias depois da minha chegada à Espanha, Franco desencadeou o golpe fascista, e a fronteira com Portugal foi ocupada pelos fascistas poucos dias depois disso. Entretanto, tive ocasião de contactar a Internacional Comunista, e transmitir-lhes a decisão do Partido de que Francisco Paula de Oliveira regressasse a Portugal. Com a fronteira sob controlo fascista, fui para a França via Catalunha. Francisco Paula de Oliveira juntou-se a mim em Paris e juntos planejamos a nossa viagem marítima clandestina, chegando a Lisboa no início de 1937”.

Ilustração de José Luis Rey Vila

Em “A Casa de Eulália”, o leitor ficará imediatamente impressionado com a proximidade com que o protagonista Antônio se harmoniza com a experiência de Álvaro Cunhal. Inquestionavelmente, ele lutava nos seus últimos anos com a memória dos acontecimentos que tinha vivido pessoalmente, tentando consolidar o seu significado duradouro de forma fictícia. É claro por que ele escolheu escrever sob um pseudónimo, pois uma grande quantidade de dados autobiográficos vaza na sua ficção, como em outras obras. Ao mesmo tempo, o formato ficcional permitiu-lhe incorporar incidentes e pessoas representativas que ele próprio conhecia ou cujas histórias tinha sabido, e reviver, ou reinventar, pelo menos ficcionalmente, partes da sua própria vida. As pessoas falam hoje em dia de multiversos, de todo a rota dos acontecimentos que se teriam desenvolvido se tivessem tomado uma decisão e não outra. Parece que Manuel Tiago faz isso aqui.

Personagens redondos

De todos os livros de Manuel Tiago até agora, este é o primeiro verdadeiro romance. A Estrela de Seis Pontas, sobre a vida numa prisão fascista, está na minha opinião, também entre os seus melhores livros. Mas A Estrela de Seis Pontas é uma solta série de retratos coletivos dos homens encontrados em detenção de alta segurança – as personagens, as suas histórias, os seus comportamentos e interações. Alguns poderão nem sequer chama-lo um romance: ali, não existe um enredo como tal, nem qualquer desfecho.

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Assim, a minha terceira razão para elevar Eulália tão alto na minha lista é que Manuel Tiago está na sua melhor forma como escritor, aqui desenvolvendo as suas personagens a partir das suas ações específicas, fazendo-as passar pelos seus passos à medida que evoluem para pessoas que poucos poderiam imaginar que elas se tornariam. Como de fato, tantos espanhóis evoluíram sob as mais horríveis das circunstâncias. Uma característica notável neste livro é o seu retrato de várias mulheres, tanto na frente militar como na frente doméstica, em muitos casos tão corajosas e heroicas quanto os homens que as rodeiam. A libertação das mulheres do patriarcado tradicional foi, afinal, um dos principais objetivos da Frente Popular contra o fascismo. Para além das personagens principais, Manuel Tiago também coloca o leitor entre as massas espanholas, desenraizado, sofrido, oprimido e aterrorizado pela guerra. O seu retrato coletivo é tão pungente quanto tudo que acontece com as principais figuras do romance.

Ilustração de José Luis Rey Vila

Como escritor, Manuel Tiago gosta da estética do Realismo Socialista. Alguns dos seus escritos pretendem ser francamente ilustrativos e didáticos. Raramente ele põe diante do leitor personagens com profundos conflitos interiores que confrontem suas inseguranças e medos: Há mais disso na obra-prima que será minha última tradução de Manuel Tiago para o inglês, “Até Amanhã, Camaradas”. Mas o leitor encontra aqui, especialmente na personagem principal, tal como no próprio Cunhal, verdadeira luta com o que significa ser um herói, o que significa enfrentar a morte, o que significa ser um homem. E na própria personagem de Eulália, que talvez menos se questione, os problemas são semelhantes.

Os leitores serão constantemente desafiados a perguntarem-se a si próprios o que poderiam fazer em tais circunstâncias. Ao mesmo tempo, há um profundo gosto pela vida que se ergue frequentemente em pessoas que vivem de modo tão precário, e uma inclinação irreprimível, no autor, para encontrar o engraçado e irónico em quase todas as situações. Embora este romance seja escrito de um ponto de vista comunista, há momentos em que Antônio pergunta se o seu partido tem todas as respostas corretas para toda situação difícil.

Quatro: as ilustrações

As ilustrações que incluímos em “A Casa de Eulália” vêm de um portfólio espiralado de Estampas de la Revolución Española, 19 Julio de 1936. Elas foram escolhidas entre as 30 pinturas em aquarela coloridas incluídas na publicação. O artista assina seu nome como “Sim XXXVI”, mas não é identificado, exceto na breve introdução como “um filho do povo”. Desde então, foi estabelecido que o artista era José Luis Rey Vila (1900-1983), que deixou a Espanha em 1937, instalou-se em Paris e aparentemente nunca mais voltou à sua pátria. Ele usava um pseudônimo para proteger sua família.

Este portfólio foi publicado em 1936 para levantar fundos para a Confederação Nacional do Trabalho (CNT), a Federação Anarquista Ibérica (FAI), a Federação Nacional dos Trabalhadores e a Federação Anarquista Ibérica. O próprio fato de o álbum falar de “Revolução Espanhola”, ao invés do que poderiam ser formulações mais familiares, como a “Guerra Civil Espanhola”, “defesa da democracia”, “defesa da República Espanhola” ou “fim do fascismo”, pode já ter alertado o leitor que, politicamente falando, estas ilustrações vêm de uma diferente orientação política.

Eu me lembro claramente do dia e do lugar em que comprei este volume, que permaneceu em minha posse desde então. Foi no prédio do Partido Comunista na Rua 23 Oeste, na cidade de Nova York, onde eu morava nos anos 80. O prédio possuía uma biblioteca e uma livraria no nível da rua, e de tempos em tempos eram feitas vendas de livros usados para os quais não havia espaço ou desejo de reter em sua coleção. Sem dúvida por razões de diferença política, este livro estava na mesa de venda, em condições bem conservadas. Lembro que paguei 2 dólares por ele.

Ilustração de José Luis Rey Vila

“Quando a arte se torna o intérprete de algum grande sentimento nacional, ela é sublime”, diz a introdução do volume artístico. “É como se algum grande cantor das sagas estivesse relacionando os feitos heroicos do seu povo, numa mistura de carne e espírito. E isto é o que está representado aqui. Este álbum é a essência artística de um grande e puro movimento de massas. Um movimento para a emancipação de um tipo digno da raça, no qual o heroísmo é desenvolvido, e aqui é mostrada a generosidade daqueles ideais com os quais um povo é movido”.

E esse é o espírito com o qual escolhemos lembrar ao mundo essas expressões artísticas mais esquecidas da Guerra Civil Espanhola. Elas captam poderosamente a energia e o movimento, o entusiasmo e o desespero que Manuel Tiago descreve em seu romance. O leitor verá que, quando surgiram as formações espontâneas de milícias, pouca atenção foi dada à orientação política. Comunistas, republicanos, socialistas, trabalhadores, sindicalistas e anarquistas, todos lutaram lado a lado nas batalhas históricas dos primeiros meses da guerra. Foi uma verdadeira frente popular do povo, embora as fissuras nela fossem certamente aparentes.

Não para dizer que Manuel Tiago é alheio a essas políticas divergentes. Em mais de um ponto deste romance, ele é explicitamente crítico aos anarquistas, embora também admire sua coragem, heroísmo e contribuições positivas. E quem pode dizer que qualquer partido naqueles momentos mais difíceis agiu nobre e corretamente 100% do tempo? Os historiadores ainda questionam e debatem o fato de que embora a União Soviética estivesse entre as nações do mundo que enviaram assistência substantiva para o lado republicano, ela terminou seu apoio em 1938, antes do fim da guerra, e com isso as famosas Brigadas Internacionais que vieram para a Espanha de muitas terras voltaram para casa.

Digo tudo isso na esperança de que nenhum leitor ou crítico reclame que o editor esteja “se apropriando” das imagens do álbum artístico como suas. Pelo contrário. Sua fonte é identificada de forma clara e honrosa. Essas pinturas de mais de 80 anos são reimpressas no livro (infelizmente somente em preto e branco) em solidariedade, como um voto por mais e maior unidade de ação para derrotar os fascistas de nossos próprios dias. Mas aqui, on-line, somos capazes de compartilhar as versões coloridas originais destas imagens poderosas. Eu gostaria de sugerir que se o leitor tiver uma impressora colorida, imprima as ilustrações para inserir como seu próprio adendo ao livro publicado.

Manuel Tiago (Álvaro Cunhal)
A Casa de Eulália
Traduzido do Português por Eric A. Gordon
New York: International Publishers, 2022
152 pp., $15.99
ISBN: 9780717808786
Encomende seu exemplar à International Publishers.

Notas

*Tradução a partir de https://live-peoples-world.pantheonsite.io/article/manuel-tiagos-eulalias-house-translator-reflects-on-one-of-his-best-books/
** Eric A. Gordon é escritor, tradutor e jornalista norte-americano. Em seu mais recente projeto, traduz os nove livros de ficção de Manuel Tiago, do português para a língua inglesa.

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