Ainda sobre a dialética e a retórica do “novo normal”

Os elementos principais do método dialético são: a contradição, o choque dos contrários e a negação da negação.

Recentemente pude realizar uma web-conferência sobre dialética em meu canal do You Tube, com a presença do músico e filósofo Laércio Correntina. Nosso mote partiu de uma das frases da música de Nelson Mota e Lulu Santos, “Nada do que foi será, de novo do jeito que já foi um dia”. Extraída da bela música “Como uma onda”, apelidada por mim de “melô da dialética”.

A discussão foi ótima, demonstrando a partir da exposição de Laércio Correntina, a necessidade de conhecermos o significado da dialética, e como por meio desse conhecimento nós podemos ter uma compreensão maior da realidade. Naturalmente, quanto mais nos aprofundarmos no estudo da dialética, mais dúvidas e questionamentos surgirão em nossas cabeças. Por que essa é a essência desse método do conhecimento do mundo real.

A base do conhecimento adquirido pela dialética é a contradição. É por meio da contradição, no embate entre a ideia exposta inicialmente (tese) e da sua negação (antítese), que se pode chegar a uma nova formulação (síntese). Por isso, esses são os elementos principais do método dialético: a contradição, o choque dos contrários e a negação da negação.

Por esses princípios baseados na dialética não há absolutamente nada que não carregue em si a sua própria contradição. Ou que, uma vida sempre traz juntamente consigo os germes de sua própria destruição. É o embate entre a vida e a morte, entre o velho e o novo, entre o ser e o não ser… em uma persistente e eterna mudança. Pelo viés da dialética nada está estático, tudo está em permanente movimento. Por isso a mudança, o movimento, é sempre uma constante. O que não nos permite dizer que “nada muda”, como popularmente ouvimos sempre. Ou, e neste ponto quero polemizar mais adiante, que ao sairmos dessa pandemia que nos aflige iremos lidar com “um novo normal”. Ao afirmar isso negamos a própria maneira como se dá a vida, em nós seres humanos, na natureza em sua plenitude, e na sociedade. O que se chama de “normal” é um olhar estático de uma realidade que está sempre em movimento.

Aí reside a diferença com a lógica formal. Nesta se compreende que as coisas existem cada uma em sua individualidade, de forma que as relações se dão por meio de movimentos externos, e os acontecimentos são na verdade meras ações que obedecem a um princípio lógico em que se exclui a contradição, e que leva a busca do conhecimento por meio da indução e dedução.

A lógica dialética nos conduz à necessidade do entendimento do mundo como num processo contínuo de interligação entre as coisas. Nada se explica isoladamente, e não há acaso, existem causas que se sucedem num movimento cíclico, e isso acontece porque cada coisa carrega em si elementos que a levarão ao envelhecimento, e no choque entre o velho e o novo as mudanças advirão inevitavelmente. Tanto internamente, quanto externamente. Em um processo em que ao mesmo tempo em que as coisas se afirmam, contém em si os elementos de sua própria negação.

Isso pode parecer um olhar pessimista da realidade. Mas é simplesmente o estudo das evidências demonstradas no próprio ciclo da vida, em que se sucedem o nascimento, a infância, a adolescência, o amadurecimento, envelhecimento e morte. Isso no caso dos seres humanos. Mas o ciclo da vida acompanha todos os seres vivos. E se externamente nos deparamos com situações graves que nos levam à morte, às vezes de maneira repentina, fugindo desse ciclo natural, internamente isso se dá de forma incessante. Carregamos em cada um de nós, seres vivos, os germes de nossa própria destruição. Ou seja, existem dentro de nós um número inquantificável de células. São trilhões que nascem por dia, e um tanto aproximado que morrem. Essa relação vai se invertendo à medida em que envelhecemos e que vamos perdemos nossas defesas imunológicas, os anticorpos. Pouco a pouco esses anticorpos vão perdendo a luta que nos imuniza, e inevitavelmente envelhecemos e morremos.

Ao longo do tempo os seres humanos foram criando narrativas com base em crenças que visam justificar algo que não existe, a nossa imortalidade, para além das nossas condições terrenas. De acordo com cada cultura, em cada canto do mundo, foram surgindo seitas, mitos, divindades, religiões… com o intuito de amenizar nossas angústias em torno de algo para o qual nunca estamos preparados: a morte.

Essas angústias, em muitos casos transformadas em medos, surgiram de tentativas de amenizar nossas dúvidas quanto ao limite da vida, ou a inevitabilidade da morte, em buscas de respostas que visavam aliviar esses anseios. Mas essas tensões naturais em nossas vidas foram sendo aproveitadas por oportunistas, charlatões, que conduziram as pessoas pelo medo a aventuras terríveis, e perversões feitas em nome dessas divindades. Esse comportamento provocou genocídios, suicídios coletivos e diversas tragédias, consequências da manipulação decorrente da maneira como as pessoas lidam com a realidade.

Ao não compreender a dimensão da vida, em sua essência, e na sua materialidade, entregam-se às ilusões e se veem presas em crenças fundamentalistas que se escoram nos temores da morte e na esperança da vida para além dela. Nesses casos, perde-se a sensibilidade com o outro, e abdica-se da própria maneira de ser e se viver em sociedade. Os que agem assim fecham-se em redomas onde as verdades são afirmação dogmáticas de ideias, de crenças elaboradas no intuito de manipulação e de construção de poderes. A cegueira diante dessas visões fechadas levaram a esses resultados terríveis, quase sempre explicados em nome de suas divindades.

Ora, quando saímos do campo das questões filosóficas, em relação ao entendimento da vida e como lidamos com as realidades concretas, e resolvemos aplicar o método dialético para compreendermos como as sociedades surgem, se transformam e entram em declínio, veremos que esse método dialético nos permite entender que o sistema no qual vivemos não é eterno, porque nada é eterno, tudo tem começo, meio e fim.

Marx e Engels – Ilustração: Cássio Loredano

Foi assim que Karl Marx e Friedrich Engels buscaram entender o processo de transformação social, desde os tempos primitivos. Com a aplicação do método dialético no estudo das sociedades, e com uma visão sobre a materialidade da vida, transposta para a história das sociedades humanas, eles formaram um entendimento de que as contradições são os elementos fundamentais que levam às transformações sociais. E que cada sistema carrega dentro de si, por meio dessas contradições, os elementos de sua própria destruição.

A evolução de cada sociedade, é o momento da afirmação de um modo de produção. Com o passar do tempo, o choque entre os contrários, entendendo-se como existente classes sociais antagônicas que entram em contradições, esse sistema entra em declínio e caminha para sua destruição, sendo inevitavelmente substituído por outra formação econômica e social, com outros elementos que lhes darão sustentação.

Ao analisarem assim eles compreenderam que desde as sociedades primitivas, todas as sociedades que surgiram fundaram-se numa luta de classes, entre senhores de escravos e escravos; nobres e servos; burgueses e proletários. E, por assim ser, o capitalismo também chegará ao seu limite, na medida da intensificação de suas crises que acentuarão as suas contradições. Por isso eles propuseram a construção de um sistema onde as classes sociais não mais existissem, onde a estrutura social se baseasse na organização coletiva, na cooperação, e na distribuição da produção com base nas condições individuais e na capacidade de trabalho de cada um.

Mas isso não significa o fim das contradições. Mas tão somente a redução de condições sociais degradantes, e desigualdades vergonhosas entre quem possui o controle dos meios de produção e os que só possuem suas forças de trabalho. Jamais, enquanto houver vida, as contradições desaparecerão, seja na natureza ou na sociedade. Nesses dois casos o que sempre existirá, ao mesmo tempo, é um equilíbrio e um desequilíbrio, que decorre na existência de diferenças naturais, no caso da natureza, e sociais, quando falamos de sociedades humanas. Quando essas diferenças, ou contradições, atingem um determinado limite, forçam necessárias mudanças, o que torna esse processo uma das chamadas leis da dialética: da transformação quantitativa em qualitativa.

Portanto, as mudanças acontecem o tempo inteiro. Muito embora a rotina de nossas vidas deixe a percepção de que “as coisas não mudam”. O que ocorre é que nossas vidas, individualmente, são um sopro na comparação com o tempo de existência das sociedades e civilizações humanas, e menos ainda, quando nos referimos ao tempo geológico, de existência da terra. Por isso muitos, que não possuem a percepção dialética da realidade, imaginam que as coisas não mudam. Ou, em outro extremo, e também absolutamente equivocado, de que a história se repete. Não pode existir repetição na história, por que essa se conta no tempo, e este é irreversível. O que passou jamais pode vir a acontecer novamente.

Por tudo isso a discussão sobre se teremos um “novo normal” é puramente estimulada por uma retórica que advém da maneira como se dissemina, dentro de uma lógica formal, a compreensão que as coisas só mudam como decorrência de um fato espetacular, ou um fenômeno da natureza, ou de guerras. Mas é claro que haverá mudanças. Sim, poderá ser algo novo. Mas a dialética explica exatamente isso: o novo sempre vem, como canta o poeta Belchior.

A questão é a ausência da percepção de que as coisas estão mudando permanentemente. Porque a maneira de ver e sentir o que acontece no mundo, e em suas vidas, da maioria das pessoas, segue essa lógica formal. Evidentemente, dentro das características que marcam o sistema capitalista, após cada catástrofe, ou crises profundas, há um processo de reacomodação. O sistema se retroalimenta dessas crises e, seja por necessidade ou por conveniência dos interesses dos que controlam a riqueza e os meios de produção, as mudanças, principalmente tecnológicas, irão acontecer e o que se convencionou chamar de “novo normal” advém, na verdade, das necessárias transformações no âmbito do próprio sistema. Isso é bem descrito no livro de Naomi Klein, “A Doutrina do Choque – A ascensão do capitalismo de desastre”.

Em muitos casos, como o que vivemos atualmente, já havia uma crise sistêmica, que se estende desde o final do século XX e se acentuou a partir de 2001 e explodiu com força em 2008, quando o sistema financeiro quase quebrou, o que causaria uma forte depressão mundial. De lá para cá, a recessão econômica atingiu diversos países, variando de continente para continente, mas não havia se recuperado quando a OMS declarou situação de pandemia. Como a quarentena forçada, ou o distanciamento físico/social, era a melhor maneira de se proteger do vírus “sars cov-2”, isso paralisou a maioria das cadeias produtivas, causando uma estagnação da economia. O quadro, que era de recessão, pode chegar a tornar-se depressivo economicamente, tornando as mudanças absolutamente necessárias.

Mas isso não significa modificar as condições pelas quais o sistema capitalista organiza sua superestrutura, ou seus valores morais, culturais, jurídicos e o estilo de vida que impõe às pessoas hábitos consumistas. Pelo menos não de forma radical. No entanto, seguramente muitas mudanças ocorrerão, e mais do que isso, já estão ocorrendo, nesses poucos meses de um tempo absolutamente estranho nas vidas dos que vivem essa época.

O que vai acontecer, a partir do que virá, é impossível indicar com precisão. Os prováveis cenários, sob diversos aspectos, sociais, econômicos ou geopolíticos são de difíceis previsões. No entanto as mudanças, de fato, são inevitáveis. Só que o chamado “novo normal” não será nada mais do que uma adaptação sistêmica, capitalista, principalmente com o advento de novas tecnologias e funcionalidades, mas com as mesmas desigualdades sociais inerentes a esse modelo de formação econômica. São mudanças que se encaixarão no estilo consumista frio e desigual, com novas funções, empregos destruídos, elites perversas e ampliação da pobreza. Também não será o velho normal, mas o mesmo sistema injusto, fragmentado e segregacionista.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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