A teologia da intolerância

“Eu conheço o Brasil, aquilo que vocês fazem nas Comunidades Eclesiais de Base não é verdade, o Brasil não tem a pobreza que vocês imaginam, isso é a construção da leitura sociológica, ideológica que a vertente marxista faz. Vocês estão transformando

Não, esse requisitório não foi pronunciado em alguma delegacia de “ordem política e social”, nem em nenhum DOI-CODI ou estabelecimento parecido. Foi dirigido, em setembro de 1984, ao teólogo Leonardo Boff, pelo cardeal alemão Joseph Ratzinger, hoje papa Bento (ou Benedito) XVI, na ocasião prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, novo nome dado ao velho tribunal da Inquisição. Nessa temível condição, conduziu o interrogatório que culminou na condenação de Boff a um ano de “silêncio obsequioso”. Por ter retomado a palavra após esse ano, novo castigo lhe foi imposto: proibição de todo e qualquer atividade. Preferiu então deixar o sacerdócio e continuar a partilhar os combates do povo.


 


 


Em entrevistas posteriores a sua exclusão, Boff  evocou, sem rancor, mas tampouco sem complacência, sua passagem pela Inquisição. Fizeram-no sentar-se na mesma cadeira em que Galileu sentara quatrocentos anos antes. Lá escutou o requisitório que já referimos. Cabe reconhecer que corria riscos bem menores do que os do astrônomo, obrigado, para não o levarem à fogueira, a renegar a descoberta de que a terra não estava imóvel no centro do universo. Hoje hereges, bruxas, cismáticos e outros inimigos da doutrina comunicada aos papas pelo Espírito Santo não são mais açoitados, nem atados à roda ou ao cavalete para lhes moerem os ossos etc., como eram há alguns séculos. Não se queima mais a extremidade dos membros dos recalcitrantes, não mais se introduzem cunhas para esmagar progressivamente os pés e pernas das vítimas, encaixadas em madeira dura. (Falam de tortura chinesa, mas a fertilidade dos carrascos do Santo Ofício em inventar alguns dos mais terríveis instrumentos da crueldade humana desafia a imaginação). Os métodos se tornaram incomparavelmente mais brandos. Sorte de Boff!


 


O catolicismo, entretanto, não se compõe apenas de ratzingers, embora sejam eles quem mandam. Erasmo dizia que todo o ensinamento de Cristo podia se resumir numa frase curta: Amai-vos uns aos outros. (Talvez por isso mesmo nunca tenha sido canonizado). Não sou cristão, não penso que devamos amar os inimigos da humanidade, mas admiro sobremaneira, além do legado de sua estupenda erudição renascentista, a militância de Erasmo a favor da tolerância e da paz. A Teologia da Libertação retomou, nas condições de nossa época, essa inspiração fraterna e generosa. Seu grande mérito, sobretudo na Igreja latino-americana, foi ter posto os pobres, que constituem a grande maioria da humanidade, no centro de suas preocupações e de sua militância. Respondeu assim, na prática à questão que preocupava todos os católicos que não vêem em sua religião apenas o meio de adquirir cadeira cativa no Paraíso: como anunciar Deus como o pai de um mundo de miséria? “Esse anúncio só terá sentido se formos capazes de tirar os pobres da miséria, se transformamos essa realidade do mal para o bem”.


 


O cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, cuja estatura moral e intelectual impõe respeito a todos, acompanhou Boff ao tribunal do Santo Ofício. Indignado com o documento que o condenava, protestou: “Cardeal Ratzinger, lemos o documento e ele é muito ruim. Não o aceitamos porque não vemos os nossos teólogos dizendo e pensando o que o senhor diz da Teologia da Libertação. Se quero construir uma ponte, chamo um engenheiro, e o senhor, para construir a ponte, chamou um gramático, que não entende nada de engenharia”.


 


 


Antes mesmo de ser promovido a papa, em abril de 2005, Ratzinger já tinha mostrado que entende principalmente de provocação. Sem querer entrar nos meandros sombrios de sua subjetividade, causa espanto a desenvoltura com que, do alto de  sua arrogância, agrediu as luzes da inteligência e o espírito de justiça quando recebeu, no dia 31 de janeiro de 1998, o título de doutor “honoris causa” da Universidade de Navarra (controlada pela Opus Dei e conhecida por fabricar jornalistas reacionários em escala industrial). Em entrevista coletiva naquela ocasião, o homenageado, que continuava prefeito da tenebrosa Congregação, ousou sustentar que “A Inquisição não era tão obscura quanto se crê”(1). Disse isso no país onde a odiosa instituição atormentou, aterrorizou e assassinou com requintes de crueldade, durante mais de três séculos, hereges, judeus conversos acusados de “judaizar em segredo” (isto é, praticar às escondidas o culto de seus antepassados), livre-pensadores, além de praticantes de “bruxarias”, sodomitas e outros pecadores crônicos.


 


 


Tendo ascendido no aparelho eclesiástico na base do combate intransigente por uma Igreja submissa, firmemente orientada à direita e teologicamente intolerante, seria surpreendente que, sentando-se no trono papal, Ratzinger abrandasse o rigor inquisitorial e abrisse algumas janelas de seu espírito. Não houve surpresa. Ele é um João Paulo II piorado. O polonês podia ser cruel, como quando, em sua visita à América Central, em março de 1983, humiliou publicamente Ernesto Cardenal, religioso, poeta e combatente, que se tornara  ministro do governo da Frente Sandinista de Libertação National (FSLN). Mas foi capaz também de pedir perdão pelos “excessos” cometidos em nome da fé na conquista européia do Novo Mundo.


 


 


Bento XVI, até agora pelo menos, não pediu nem concedeu perdão. Pelo contrário: em setembro de 2006, com menos de ano e meio no novo cargo, dirigiu à religião islâmica uma provocação gratuita e grotesca, indo buscar nos escritos do imperador bizantino Manuel II (1391-1425), da família oligárquica Paleólogo, a afirmação de que o profeta Maomé só trouxe o mal, mandando “disseminar pela espada a fé que ele pregava”. Não quero ser indelicado com o Sumo Pontífice, mas é preciso muita cara de pau, como se diz coloquialmente, para um chefe e defensor da Inquisição censurar violências da religião alheia. Historicamente, de resto, Manuel II não chega a ser um observador minimamente imparcial. Devia nutrir forte ressentimento em relação ao poder emergente dos turcos otomanos, aos quais era obrigado a pagar tributo… 


 


 


Sempre com o dedo no gatilho, Ratzinger/Bento escolheu a cerimônia de abertura, em Aparecida, da Vº Assembléia da Conferência Episcopal Latino-america (Celam), no dia 13 de maio, último de sua visita ao Brasil, para disparar contra a memória histórica dos indígenas do Novo Mundo. Segundo ele, “o anúncio de Jesus e de seu Evangelho não supôs, em nenhum momento, uma alienação das culturas pré-colombianas, nem foi uma imposição de uma cultura estrangeira. O Cristo era o salvador que (os indígenas da América) esperavam  silenciosamente”. Um especialista em assuntos do Vaticano observou, comentando a mensagem do Sumo Pontífice, que “ele começou dizendo que o Brasil nasceu cristão e terminou afirmando que nunca existiu um ataque à cultura pré-colombiana na América Latina. A história do genocídio dos indígenas parece completamente desconhecida por ele”. Há uma hipótese que a nós parece mais plausível e bem mais preocupante: Ratzinger está perfeitamente a par não somente desse genocídio, mas também daquele promovido pela Inquisição contra os judeus na Espanha e em Portugal dos séculos 15 e 16. Mas, como disse  na Universidade de Navarra em 1998, a instituição de que foi prefeito “não era tão obscura quanto se crê”.


 


Nota


1- Citado em El País de 3 de fevereiro de 1998. 



 

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