A privatização da Petrobrás e a farsa de Inês Pereira

As privatizações da Petrobrás, da Caixa Econômica Federal (CEF) e do Banco do Brasil (BB), se Geraldo Alckmin ganhar as eleições presidenciais, não são boatos. Elas constam do seu programa de governo desde 1500.

A “Farsa de Inês Pereira” é um clássico do teatro vicentino, bem conhecido nas aulas de literatura. A história desfiada na peça — do casamento por interesse, da ascensão social por meio do oportunismo e da falta de escrúpulos — é emblemática de como a elite faz as coisas no Brasil desde 1500. O dramaturgo português Gil Vicente (1465-1536) escreveu o texto, desafiado pelos invejosos da época, para comprovar o provérbio ''Mais quero um asno que me leve do que um cavalo que me derrube''. A desfaçatez expressa na peça é quase obscena. Ela diz muito, politicamente, sobre o que pensavam os 15 desbravadores que chegaram aqui há pouco mais de 500 anos com uma capitania hereditária à sua disposição e perpetuaram seus usos e costumes. Eles estão aí, por exemplo, na forma como Alckmin está agindo nesta sucessão presidencial. Como diz o povo, para conhecer um vilão basta entregar-lhe o bastão.



 


São usos e costumes que ficaram bem demonstrados na “era FHC”, inimiga mortal da “era Vargas”. Assim como faz Alckmin nesta campanha, o ataque às estatais era dissimulado. Dizia-se que seria necessário privatizar para “abater” a dívida pública e liberar “bilhões de dólares” das despesas com juros para financiar investimentos sociais. O mitomaníaco FHC dizia que a taxa de retorno social seria substancialmente mais elevada do que a que o governo obteria em seus investimentos na mineração, na telefonia e na tecnologia industrial. “Cada um que prega contra as privatizações deveria ser obrigado a escrever mil vezes por dia, enquanto houver uma empresa estatal, um analfabeto ou uma criança mal nutrida no país: a democracia exige as privatizações para reduzir a dívida e liberar as despesas com os juros para gastos nas áreas sociais”, disse FHC.


 


Tratado de Tordesilhas


 


Como se sabe, o dinheiro das privatizações desapareceu, a dívida pública explodiu e a taxa de juros continua estratosférica. Por tudo isso, as reações dos conservadores às informações de que Alckmin na Presidência da República representa a volta das privatizações selvagens são absolutamente patéticas. “Se eu estivesse no próximo governo, trabalharia forte na privatização da Petrobras. Esse não é um projeto simples. Tem de ser muito bem estudado, muito bem planejado. Mas acho que deveríamos quebrar esse monopólio que hoje não se justifica. Privatizar ou não é uma questão que tem de ser avaliada de maneira objetiva, não ideológica”, disse recentemente o assessor de Alckmin Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-ministro das Comunicações e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) na “era FHC” — um daqueles baluartes da tribo que ajudava a manter no exílio gente como FHC e José Serra.



 


Na torre de comando da campanha do candidato Geraldo Alckmin, o painel de controle revela abertamente os fios condutores que ligam as práticas de hoje com as daquela época. E mais: revela os mesmos ideais desde que o Tratado de Tordesilhas, de 1494, reconheceu a posse da coroa portuguesa sobre gorda porção da América recém-descoberta, com seus direitos reconhecidos pela vizinha e poderosa Castela. A maior obra do El-Rei dom Manuel foi realizada três décadas depois pelo filho João, que repartiu todas as terras que lhe couberam na partilha do Ocidente entre súditos fiéis. Por esse plano, a metrópole doou 3 milhões de quilômetros quadrados a quinze particulares e forjou um país de relações sociais complexas. Por extensão, o que foi incorporado a oeste do meridiano primevo também foi registrado em nome de particulares, numa operação de grilagem sem paralelo. A imensa maioria do solo brasileiro tem dono desde o descobrimento — ao contrário dos Estados Unidos, por exemplo, onde o Estado detém 60% das terras próprias para agricultura e as aluga em contratos de longo prazo.


 


A dívida que o país acumulou com seu povo que ainda vive as seqüelas da escravidão e de outras modalidades de servidão adotadas nas capitanias hereditárias pelos donatários de dom João I e mantidas por gerações de sucessores só poderá ser paga numa intervenção movida por espírito político radicalmente novo. Seria algo capaz de mexer na estrutura de poder que foi erigida para mandar no Brasil. Por isso, para garantir seus privilégios a elite brasileira prefere um presidente medíocre a um presidente que representa um ponto de vista social bem definido — um asno que a leve a um cavalo que a derrube. Ela sabe que para o conjunto dos brasileiros Luis Inácio Lula da Silva é infinitamente superior a Alckmin. Daí a persistência do noticiário em promover um verdadeiro festival de hipocrisia.



Emprego semi-escravista



Travestidos em questões de princípio, são apresentados argumentos os mais estapafúrdios na discussão sobre a reeleição do presidente Lula. A verdade é que se o Brasil galgar uns poucos degraus na escada do progresso social a vida dessa elite sofrerá um grande abalo. Em poucos outros lugares do mundo, por exemplo, é tão fácil manter uma empregada doméstica cativa. O próprio emprego doméstico, com todo seu teor semi-escravagista, terá que ser eliminado tão logo subamos mais um ou dois degraus em direção ao desenvolvimento econômico e social. Isso quer dizer que essa gente teria, entre outras coisas, de limpar seus próprios banheiros e passar suas próprias roupas — ou, então, pagar um dinheiro considerável a profissionais especializados pelo capricho de não o fazerem. Com imperativos desta ordem, que implicam a perda de privilégios há muito estabelecidos, não tem lógica para essa elite ajudar o país a galgar a escada do progresso social.



 


Recentemente, FHC voltou a invocar o “ideal republicano” para atacar o governo Lula. Com suas habituais confusões filosóficas, ele disse que a “concepção de Estado” separa os candidatos Lula e Alckmin. Em uma entrevista ao jornal suíço Le Temps, FHC disse que o PT não tem uma “visão democrática'', pois ''ainda pensa que precisa ocupar a máquina estatal para reformar a sociedade”. “É exatamente por causa dessa promiscuidade que nasceram os escândalos em que (o PT) está implicado'', afirmou. Na avaliação do ex-presidente, a “sociedade” deve ser independente do Estado. “O PSDB faz menos retórica e tem uma visão mais republicana na relação entre partido e Estado'', disse. Um breve exame da história revela muito sobre o que a direita quer dizer com seu “ideal republicano”. A falta de rigor e de integridade se justifica pelo fato de ela existir unicamente para preservar seus próprios privilégios.


 



Movimento revolucionário


 


Lula tem recorrido à figura de Tiradentes (Joaquim José da Silva Xavier, 1746-1789) para explicar o atual momento do Brasil. Em maio, durante a inauguração de uma locomotiva que liga Mariana a Ouro Preto, em Minas Gerais, o presidente disse que está na hora de Tiradentes não ser mais chamado de ''inconfidente'', mas sim de ''revolucionário''. ''Vejo muita gente falar o seguinte: aqui nasceram, aqui moraram os inconfidentes. Inconfidentes para quem, cara pálida? Para quem Tiradentes era inconfidente? Ele era inconfidente para a Coroa portuguesa. Na verdade, eles eram revolucionários, que lutavam pela independência do Brasil, para que as riquezas produzidas nesta região ficassem aqui'', disse. ''Acho que quem sabe seja um bom tema para que os nossos historiadores comecem a discutir daqui para a frente. Porque, veja, ele foi um homem que pensou na independência do Brasil. Foi morto. Esquartejado, salgaram a sua carne. Mas as idéias dele continuaram”, afirmou.



 


Não é possível negar que havia um movimento pré-revolucionário nas Minas Gerais. Tanto que os “inconfidentes” aguardavam a “derrama” para iniciar a insurreição. Aquela seria o ponto culminante da crise que atravessava a capitania e que iria aumentar a indignação do povo, facilitando o levante. Basta recordar a feroz repressão das autoridades coloniais ao movimento liderado por Tiradentes para reconhecer o que ele representava. A República a que aspiravam os partícipes daquele ato patriótico era um símbolo de independência e progresso. Eles planejavam industrializar o país, acabar com os monopólios coloniais, cessar a exportação do ouro e aproveitar as riquezas minerais do país.


 


Espaços aos conservadores


 


Certamente, as autoridades coloniais — como os donos do poder hoje em dia — não eram imbecis. Sabiam perfeitamente o que faziam. E ao punir com tamanho rigor a “inconfidência mineira”, ao arrastar seu processo por três longos anos, ao fazer a execução de Tiradentes uma vasta encenação pública — como uma severa advertência aos sonhadores da liberdade — tinham perfeita consciência que aquele movimento havia conquistado a simpatia do povo. E a melhor prova disso é que entre ele e a independência política do país medeiam pouco mais de três décadas. Proclamada a República, o país continuou a conviver com a disputa entre o progresso e o atraso.



 


A tentativa inicial de conciliar aspirações das forças conservadoras e progressistas, traduzida nas vacilações do marechal Deodoro da Fonseca, encontrou réplica enérgica em Floriano Peixoto. Os florianistas se consideravam, com razão, os revolucionários do novo regime. Foram eles que deram base para iniciativas como a tarifa protecionista de Rui Barbosa para favorecer a fundação da indústria brasileira (taxava entre 45% e 60% cerca de 300 artigos de importação). E, segundo o historiador Pedro Calmon, chegaram a sonhar com a expulsão do capital estrangeiro do país. Logo depois houve um recuo — ao impulsivo Floriano Peixoto substitui o chamado “homem moderado”, Prudente de Morais. Ele é o retrato escandaloso da história de concessão de espaços aos conservadores na República.


 


A verdade é revolucionária


 


Hoje, agrupados em torno do candidato Alckmin, eles continuam com o mesmo pensamento. Um exemplo eloqüente disso é a recente manifestação do presidente nacional do PFL, Jorge Bornhausen, que repetiu o raciocínio do barão de Cotegipe quando, contrariado com a Abolição, ele disse que dom Pedro II havia ''redimido uma raça”. Pode-se dizer também que as candidaturas de Lula e de Alckmin, guardadas as diferenças impostas pelo tempo, representam os ideais de florianistas e prudentinos. A primeira defende a idéia de que o Brasil entrou firme em sua fase moderna quando o Estado deu prioridade à acumulação de capital físico (máquinas, equipamentos e instalações industriais) — política adotada sobretudo pela “era Vargas” basicamente por meio do BNDES, da Telebrás, da Eletrobrás, da Siderbrás, da Nuclebrás e da Petrobrás. A segunda é abertamente contrária à participação do Estado na economia. Para os conservadores, as estatais se chocam com as capitanias hereditários dos dias atuais — ou seja, os monopólios privados — e por isso devem ser eliminadas.


 


Não há problema em defender publicamente essa plataforma política. O problema aparece quando ela se esconde em argumentos hipócritas e em mediocridade profissional. Para os ideólogos de Alckmin — principalmente certos prelados da mídia —, com suas torpezas e inarredável incompatibilidade com a inteligência, é fácil provar que o país está mesmo entregue aos “corruptos” e aos “incompetentes”. Eles fazem e desfazem, sem dar satisfações a ninguém, como se fossem reis do mundo, e por isso podem difundir suas torpezas a torto e a direito. Se acham os donos do país, os árbitros da vida e do destino dos brasileiros. Umas gracinhas! Na verdade, são peças chaves para camuflar as bandeiras da direita. Isso tem sua lógica, obviamente. A verdade não é apenas concreta, como disse um mestre — ela é sempre revolucionária. Logo, progressista.


       

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