A presença do imperialismo na História (“Impérios em declínio: causas e controvérsias”)

Contornando complexidades, o texto chama a atenção das particularidades centrais que determinaram a alternância do poder global das principais potências imperiais

1) Considerando contributivo ao debate atual acerca da decadência do império americano, o artigo, datado de abril de 2008, portanto há exatos 15 anos  (original no Caderno Saber, Gazeta de Alagoas), é republicado de maneira integral, sem nenhuma alteração, suprimida uma breve introdução.

2) Contornando complexidades, o texto chama a atenção das particularidades centrais que determinaram a alternância do poder global das principais potências imperiais. Teve como centro a crítica das posições que afirmavam, então, o “colapso iminente” do dólar, em função do declínio norte-americano.

3) Devemos acrescentar, entretanto: quinze anos depois, plasmadas hoje as tendências à multipolaridade global, os obstáculos para uma nova ordem mundial estabelecem dupla dinâmica: a) tensões geopolíticas violentas e guerreiras da parte da potência hegemônica: os EUA e seus aliados subalternos; b) fortes determinações estruturais geoeconômicas, que recomendam hoje reler bem mais Fernand Braudel do que Karl Marx, para a interpretação da decadência explícita dos EUA.

4) A configuração crescente de um campo econômico-político em torno da China Socialista, a posição geoestratégica e militar da Rússia devem não validar a Teoria da Estabilidade Hegemônica-TEH (Edward Carr; Charles Klinderberger; Robert Gilpin), advogando essencialmente o imperativo do comando de uma só potência mundial.

5) Várias pesquisas demonstram que, efetivamente, a ascensão do dólar data de aproximadamente 1925, portanto bem antes dos Acordos de Bretton-Woods (1944). De outra parte, a Libra britânica, no entanto, só perdeu sua força real por volta dos anos 1970.

6)Parece-nos, portanto, que hoje caminhamos para um sistema internacional plurimonetário – este é o sentido correto à palavra “desdolarização”. Contudo, a ideia de “irreversibilidade” das transformações em curso precisa separar o improviso mudancista, da “marcha lenta da história profunda” (Braudel).

Razões da débâcle do Império Romano

Montesquieu, nas “Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência” (1734) – Capítulo de seu famoso “O espírito das leis” (1748) -, revela-se um historiador das ideias essenciais e simultaneamente um grande filósofo. Conforme ali assinala o pensador universal, tribos germânicas, bárbaros godos, visigodos, hunos e vândalos, depois persas, gregos, árabes, turcos, se cruzaram nas invasões e ocupações a fragmentar a tetrarquia (quatro imperadores) instituída no reinado de Diocleciano (284-305 d.C.), nos dois polos do Império romano (Ocidente e Oriente).

A grandeza do Império corrompera a República – o principado dos Césares assim travestia a monarquia -, igualmente corrompida pela grandeza de Roma; riqueza depois pobreza; apesar da valentia heroica, da dedicação à guerra, em meio à opulência e à volúpia – interpretara Montesquieu. Já para Gibbon, entre várias causas importantes assumiu enorme relevância na queda Império o que denominou de “extensão militar estratégica excessiva”: Roma subjugara o mundo e suas fronteiras imperiais foram desacorrentadas.

O Império romano durou efetivamente por volta de seis séculos; o Ocidente ruiu em 476. No reino de Constantino (306 a 337 d.C.) transferiu-se o centro político ao polo oriental, denominando-o Constantinopla; foi quando se selou a aliança entre Igreja e Estado, institucionalizando e liberando a força do cristianismo. Império que sofreu última reunificação sob Teodósio (379 a 395 d.C.), cuja morte ensejou nova e letal divisão: logo o Oriente passou a ser dito Bizantino, retomando o nome citadino original.

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Sem embargo, é preciso afirmar além: a) o império romano foi desestruturado por rebeliões escravas internamente, e após, revoltas camponesas, desde o século I estendendo-se ao III d.C.; b) a desintegração da base econômica da sociedade romana é forjada também pela emergência do colonato (arrendamento, em geral por homens livres de lotes de terras); c) a crise da consciência social dominante do Império – ou ideológica – tem na expansão inicial do cristianismo uma crescente contestação à crueldade e à devassidão de imperadores.

Noutras palavras, ao solapamento do extensivo domínio militar romano somaram-se a senilidade econômica do regime monárquico escravocrata e suas relações sociais de produção, as sublevações internas e invasões sangrentas.

Por que a Holanda?

A captura da Constantinopla bizantina pelos turcos (1453), quase mil anos após a derrocada da parte ocidental do Império romano, marca a expansão turco-otomana. Império que brota no século XIII, acompanha a crise geral do sistema feudal e a ascensão do capitalismo, embora resquícios dele cheguem até o século XX. A queda do Império Turco-Otomano é o fim do domínio e da união dos Estados muçulmanos, iniciados pelos persas.

Além de bloqueios dos acessos à Veneza e Gênova – parte mais desenvolvida da Península itálica –, Portugal e Espanha tiveram então excepcional protagonismo na corrida marítima, beneficiados, além, pela posição geográfica. No caso de Portugal, a centralização política (estatal) precoce constitui o principal fator para o sucesso e o pioneirismo de sua empreitada colonial. E, na medida em que Colombo alcançara a América, as descobertas de novas terras impulsionam para fazer confluir o desenvolvimento das trocas provocando expansão do regime mercantil-capitalista.

Na impulsão da “chamada acumulação originária” capitalista é a Holanda (Províncias Unidas), tornada potência financeira, quem antecede ao poderio colonial da Grã-Bretanha. Por quê?  Após a Revolta dos Países Baixos, Amsterdã se transforma progressivamente na ponta do sistema internacional; domina o rico comércio do arenque, recupera terras tomadas em mar e sua grande marinha mercante e seus fortes cargueiros transformaram a Holanda nos principais transportadores do comércio europeu, em 1600.

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Mercantilista ativa, inclusive com seu inimigo mortal à época (Espanha), a Holanda simultaneamente internalizava matérias-primas que possibilitaram a construção de indústrias como as de refino do açúcar, fundição, destilaria, fabricação de cerveja, preparo do fumo, fiação da seda, a cerâmica, vidraçaria, manufatura de armas, a impressão e a fabricação de papel. O florescimento de burguesias mercantil e bancária agressivas – alavancadoras de empréstimos, do crédito comercial e mantenedoras confiáveis do crédito do governo nos mercados financeiros – implicou numa hegemonia social destas perante outras forças, resultando numa Amsterdã que atinge a posição de principal centro financeiro da Europa, até o início do século XVIII; contudo, “a esfera da produção nacional mostrou-se incapaz de acompanhar o ritmo de desenvolvimento comercial”. [1] Ou seja, ocorreu uma “cristalização do capital comercial”: junto a seu grande desenvolvimento comercial provedora da fortuna financeira a incapacidade deste capital em revolucionar as bases da estrutura produtiva em direção à grande indústria.

Inglaterra capitalista: outro padrão imperial

A Inglaterra, com as transformações impulsionadas pela força do capital industrial, catapultadas pela revolução burguesa (1640-88), entra para valer na corrida colonial, ampliando a captura dos circuitos mercantis frente à concorrência europeia, atingindo a posição dominante no comércio internacional, notadamente a partir do gigantesco impulso promovido pela I Revolução Industrial (1760-1840).

Note-se que, já em 1670 colônias inglesas estabeleciam-se na América do Norte (Nova Inglaterra, Virgínia, Carolina); também em Jamaica, Belize, Antígua, Barbados, bem como realiza uma penetração comercial na Índia desde 1600. Funda desde 1660, em África, bases para traficar escravos para as plantações americanas. No século XVIII o colonialismo britânico se afirma. O século XIX marca o auge do Império colonial Britânico, cuja expansão é favorecida principalmente pelo desenvolvimento do capitalismo financeiro e industrial.

Nesse trânsito se esboça o primeiro padrão monetário internacional, o clássico padrão ouro, sustentado na força da economia britânica e em sua moeda, a libra. E, com o fim das guerras napoleônicas (1815), o padrão ouro é adotado legalmente na Inglaterra (1819), se internacionalizando a partir de 1870 – expressão da hegemonia inglesa. Desse modo, o capitalismo industrial inglês, seu império e a moeda constituem também um outro padrão de Império.

Conforme o economista Marcelo DE CECCO, entre 1870 e 1890 Londres exercia um incontrastável poderio enquanto centro de intermediação financeira, contestada a seguir por Paris e Berlim, nas décadas que antecederam à 1ª Guerra mundial. Tal posição de “financiadora do mundo” implicava em a libra ser moeda reputada e mais sólida, liderando a intermediação mercantil e instrumento de legitimação dos contratos financeiros.

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O padrão ouro-libra exerce grande dominância entre 1815-1914. Ao final da 1ª Grande Guerra a Inglaterra passa de credor a devedor internacional, particularmente aos EUA! O Império britânico entrara em declínio?

O capitalismo industrial, originário na Inglaterra, configura a estruturação de forças produtivas especificas a este sistema. O imperialismo veio por se sustentar, pela primeira vez, no capitalismo industrial propriamente dito. Que passa a ter seu substantivo na dinâmica de um regime de economia monetária – o dinheiro como “equivalente universal”, escreveu MARX. Nele há superação da preponderância do escambo, das trocas comerciais, portanto da dominância progressiva do capital comercial. E a constituição de um sistema verdadeiramente internacional baseado no ouro, vai se conformando do final do século XIX ao início do século XX, quando se firma a ordem dos padrões monetários.

Determinantes da bancarrota do império britânico

Assim, as características principais do padrão ouro-libra (1870-1914), na evolução e declínio da hegemonia do Império britânico, compreendem: a) no início, a Inglaterra, a grande potência colonial do século XIX, sustenta a paridade de sua moeda em relação ao ouro, apresentando déficits comerciais, mas não em conta corrente (balança comercial + de serviços + transferências unilaterais) – há superávit, e déficit só a partir de 1914; b) ela financia seu déficit na balança de pagamentos por saída de capital de longo prazo, com o ingresso de aplicações de curto prazo do restante do mundo; c) quando se inicia a I Guerra Mundial o esquema que suporta a hegemonia britânica já não funciona adequadamente: há déficits em conta corrente e a Inglaterra sai da Guerra como país devedor, enquanto os EUA passam credores; d) o novo quadro geopolítico gerado pelos resultados da Guerra e suas dívidas externas, a perda da competitividade inglesa motivam o fracasso do retorno à velha paridade monetária, nos anos 20.

O que esteve subjacente ao declínio britânico foi o a ascensão vertiginosa das industrializações e das economias da França, Alemanha e em especial a dos EUA, determinando o longo período de estagnação vivido pela Inglaterra, na segunda metade do século 19. Para os EUA, a nova potência em ascensão econômica, desde os fins do século XIX, o ouro continuou a fluir nas décadas de 1920 e 1930. Por quê?

Numa complementaridade “restrita” com a Inglaterra (mais o mercado mundial), os EUA desenvolvem seus capitais industriais individuais impulsionados pelo “ciclo ferroviário”; são fartos os seus recursos naturais. A rápida integração de seu mercado nacional também exigiu a construção da indústria de bens de produção, ultrapassando o ciclo têxtil inglês. Em 1861, ainda atrás da Inglaterra, os EUA já superavam a produção manufatureira da Alemanha e da Rússia; construíram uma malha ferroviária 30 vezes maior que a da Rússia e três vezes a da Grã-Bretanha! A fusão do capital bancário com o industrial transforma magnatas das ferrovias em banqueiros etc.

Portanto, são duas as questões centrais motivadoras do declínio imperial britânico: 1) a existência da restrição à solvência do balanço de pagamentos (quantidade de ouro para suportar a moeda hegemônica, a libra), na medida em que o imperativo das reservas em ouro paulatinamente sofre erosão, notadamente a partir da Guerra, com o rombo nas transações correntes; 2) a Inglaterra, especialmente a partir de 1890, passa a sofrer o cerco implacável da concorrência intercapitalista (EUA, Alemanha, França, depois Japão, Rússia e Itália), ou do estágio de desenvolvimento capitalista policêntrico relativo – vez que sua hegemonia apenas se esboçava.

Fracassaram, por tais razões, então, as tentativas de retorno ao padrão ouro-libra, do fim da primeira Guerra Mundial até os anos 30. A dominância do padrão ouro-dólar vai desde o fim da Segunda Guerra até 1971, quando os EUA, unilateralmente, ordenam a dissolução definitiva do lastro do dólar ao ouro.

É ilusório igualar processos históricos de impérios em declínio

Tal qual um fantasma, o Império britânico ainda soçobra no simbolismo da rainha Elizabeth II, sob o regime parlamentar-monárquico da Inglaterra de hoje. Ainda hoje, a moeda inglesa (a libra esterlina) e o centro financeiro londrino (a City), são visivelmente poderosos, a partir de uma aliança estratégica vigente há décadas entre a Grã-Bretanha e os EUA. O que lhe possibilitou também o domínio da tecnologia nuclear – a Inglaterra possui a bomba atômica.

Não é à toa ter sido intitulado de “EUA: a curta marcha para a hegemonia” [2] – um importante ensaio do economista Aloísio TEIXEIRA. A ideia central se assenta na distinção entre a “longa duração” do poder imperial britânico e a rapidez com que os Estados Unidos desenham seu mapa da dominância econômica, militar e político-ideológica global.

Noutro viés, é fulminante a ascensão dos Estados Unidos: céleres, especialmente após a 1ª Grande Depressão (1873-96), de impulso a seus monopólios, logo se omitem como “estabilizador hegemônico” global, finda a 1ª Guerra (1914-1918); emerge um novo Império.

Frederico MAZZUCCHELli sublinhou que os anos 20 nos EUA foram marcados pela explosão do consumo de massas, fascínio pelos automóveis, facilidades do crédito, expansão dos subúrbios, renovação dos imóveis, multiplicação das rodovias, difusão da energia elétrica, crescimento do emprego, elevação dos salários reais, liberação dos costumes, a revolução do jazz, etc. [3]

Exuberância e Grande Depressão, uma antinomia de resultado lógico: os EUA em 1929 controlavam 42% da produção mundial total, enquanto que Alemanha, Grã-Bretanha e França, juntos, detinham a fatia de menos de 28% da mesma; daí o impacto fulminante da crise. A recuperação vem apenas com o New Deal, de F. Roosevelt, mas persiste a crise internacional e advém a ascensão do nazismo, até 1939; daí à 2ª Guerra Mundial.

Assumida como superpotência, apressa a construção de nova estrutura do sistema financeiro internacional (acordos de Bretton-Woods, 1944). Os EUA encabeçam – contra o avanço do socialismo na URSS, no Leste europeu, depois na China e Coréia do Norte – a reconstrução europeia, particularmente da Alemanha e do Japão, através do Plano Marshall.

Entre 1945-73 (The Golden Age), projeta-se a onda de internacionalização do grande capital e a abertura econômica “consentida” pelos EUA; forma-se o euromercado ou mercado de eurodólares. Uma taxa de 4,9% crescimento médio na economia mundial (1945-73), termina por se desdobrar na ampliação dos déficits no balanço de pagamentos dos EUA; há desequilíbrio na balança comercial (financiando exportações europeia e japonesa). O Império balança, e isto, há 38 anos, implicou na deterioração do poder da moeda norte-americana e na decretação unilateral do fim do lastro dólar/ouro. A elevação dos preços do petróleo (1974 e 1979) apenas é sinérgica à crise que se expressava em estagnação e inflação.

Imperialismo e “financeirização” da riqueza

Observemos: o poder do Estado e do dólar respondem com uma sequência que leva à erosão das bases do sistema monetário internacional: 1971, dólar sem lastro e depois chamado “flexível”; 1973, flutuação cambial; 1979-81, brutal elevação das taxas de juros. Espécie de programa, opera a supremacia crescente do grande capital financeiro norte-americano.

A moeda-chave sustentou-se então no poderio de seu mercado financeiro, vasto e profundo, associado à sua agressiva diplomacia e o uso de seu poder militar.

Alavancou-se a globalização financeira. Globalizam-se as operações internacionais dos Fundos de Pensão, Mútuos e das Seguradoras. Os EUA voltam a crescer durante toda a década de 1980, apesar da crise de 1981-82; sobreveio um crash financeiro violento em 1987.

A globalização neoliberal se apresenta como um padrão de fabricação de riqueza, afiançado pela plutocracia americana, alargando-se por todo capitalismo central, que se generaliza. Entroniza-se a ilusão de um regresso à utopia do capitalismo liberal, na era da ditadura do “supermonopólio” das finanças, suportada pelas grandes operações de seus bancos centrais e de seus Estados nacionais, fusões e aquisições, centralizando massas gigantescas de capital. Esses fenômenos, tendo por epicentro os EUA ampliou-se pelo mundo bipolar vigente, colapsando a URSS e todo o Leste europeu socialista (o “socialismo real”), trazendo-os ao capitalismo neoliberal. Assim, todo o antigo Leste europeu socialista regressou ao capitalismo da globalização neoliberal.

De outra parte, quando completou cinco anos de existência (2004), o euro apresentou, nesse curso, uma desvalorização de 30%, para logo após alcançar uma valorização de 40%, decorrentes do movimento dos fluxos de capitais. Na desvalorização do euro, capitais internacionais se moveram imediatamente para o mercado financeiro americano. Ademais, em 2003, quando houve uma valorização de 25% do índice Dow Jones, traduziu-se então um ganho de apenas 3% em euro, uma vez descontada a desvalorização de 22% do dólar.

Por sua vez, o Tesouro dos EUA passou então a estimular uma política de desvalorização da sua moeda, em relação às principais moedas internacionais, tentando diminuir o alto déficit comercial e reduzir as pressões deflacionistas em preços de bens e serviços, em função da capacidade ociosa em alguns setores da economia. No entanto – e nada surpreendente – o sistema monetário internacional caminha ainda lentamente para a formação de uma polarização entre o dólar e o euro. Quer dizer, além dos avanços do euro em matéria de estoque de crédito bancário internacional, e em relação ao mercado internacional de securities (bônus, notas, comercial papers); também o mercado de capitais em euro vai ganhando profundidade. No entanto, às limitações estruturais do mercado financeiro da área do euro se somam um processo de valorização da moeda que implica na corrosão do valor de suas exportações e redução da competitividade econômica da União Europeia.

Embora ainda de forma inconclusiva, pensamos que o cenário geoeconômico, hoje, não prescinde do país central na hierarquia de poder, mesmo que com limitação crescente de seu atributo de “estabilizador hegemônico”; usando aqui termos escolásticos adocicados. E a tendência à multipolaridade mundial (China, Rússia, Índia) ainda não se impõe, irreversivelmente, como desestabilizadora de tal hegemonia. Apesar da ascensão avassaladora da China.

A decadência histórica dos EUA. E os analistas “neuróticos”

“O que não significa que os EUA se tornarão um país mais fraco, ou que estejam em declínio ou colapso” (HOBSBAWM, 2007). [4]

Por conseguinte, a ideia do declínio de padrões monetários das potências tem que ser historicizada; não tem qualquer significado jogá-la ao léu, ao sabor do acontecer “quando Deus quiser”; ou do uso da falácia “no médio prazo”, deixando desinformados olhando as nuvens, à espera de uma hecatombe monetária. Sem dúvidas, é simplificação ver em horizonte próximo o “colapso” – o tal “colapso iminente” que há décadas se propala, reciclando a hegemonia da moeda e do poder estadunidenses. De imediato, não há quem substitua os EUA no atual sistema de poder nas relações internacionais: moeda, armas, força diplomática e doutrinária.

A propósito, a formulação de Paul Kennedy, em sua obra clássica “Ascensão e queda das grandes potências. Transformação Econômica e conflito militar de 1500 a 2000”, feita há quase 20 anos (1988), acerca do “problema no n° 1 em declínio relativo”, se mostrou acertadíssima, em minha opinião, inclusive no terreno militar. [5]

De outra parte, por enquanto a economia dos EUA continua a ser (isoladamente) a mais importante, com enormes impulsos públicos e privados à inovação tecnológica. A propósito, conforme o relatório de dezembro (2007) do Banco Mundial (Bird), a economia dos EUA seria de quase Us$ 14 trilhões, seguida pela China, com um PIB de US$ 5 trilhões. O dólar permaneceria sendo, de longe e individualmente, a moeda que comporia 65% das reservas assim denominadas, em todos os bancos centrais do mundo, exceto o Fed (BC dos EUA). [6]

Sua moeda tem seu valor arbitrado pelo Fed, na medida em que é ele quem define a taxa de juros da moeda principal, tornando, por enquanto, seus títulos públicos o “porto seguro”. Para o ex-economista chefe do FMI Keneth Rogoff, por exemplo, depois de uma desvalorização de 31% desde 2002, o dólar ainda teria espaço para cair mais 8 a 10%, “para uma redução do déficit em transações correntes de 6% para aproximadamente 3% do PIB” (Produto Interno Bruto); diante de uma cesta de moedas dos parceiros comerciais dos EUA. [7]

Com forças e fraquezas (déficits, dívidas, perda relativa da participação da indústria no PIB), observa-se que os EUA (superpotência em decadência histórica) e sua moeda [8] começam – apenas começam – a sofrer a implacável concorrência da lei do desenvolvimento desigual dos países. Como vimos acima, a história ensina que o poderio econômico dos impérios é apenas um (indispensável) dos determinantes ao seu domínio. Bem como é relativa sua (exclusiva) supremacia militar. Similarmente ao exemplo aludido de que, com os cofres entupidos de florins, a potência holandesa teve que se curvar à ascensão vertiginosa do capitalismo industrial inglês ao colonialismo. E que especialmente a emergência dos EUA, também da Alemanha e da França, na passagem do século XIX ao XX, é que foi o fator decisivo para a 1ª Guerra Mundial e o consequente deslocamento da Grã-Bretanha do cenário internacional como potência unívoca.

A evolução política no sistema de alianças internacionais, e mesmo a existência daquilo que chamo de “relação de complementaridade econômica relativa” entre os EUA e a China ocuparão o epicentro das tendências geopolíticas dos próximos anos. É unilateral e frágil a interpretação de que a China é “a última fronteira de expansão do capitalismo”: preliminarmente porque os EUA acumulam um rombo anual de cerca de US$300 bilhões de dólares na balança de comércio frente à China. E movimentos recentes na arena internacional reclamam atenção, podendo servir de espécie de moldura ao desenho de algumas das principais tendências geopolíticas projetadas na passagem a 2008.

2008: alguns focos de tensão na instabilidade global

O ano que entra surge com novos fatos que tensionam ainda mais o cenário da concorrência global interpaíses. Alguns deles seriam:

Primeiro, no último dia 5 de novembro foi anunciada a criação da empresa mais valorizada do mercado mundial: a PetroChina. Com 86% de capital estatal chinês, apesar de ser empresa de capital aberto, a gigante petroleira é estimada em mais de US$ 1 trilhão, sendo quase três vezes maior que a segunda, a norte-americana Exxon Mobil. De outra parte, segundo o (insuspeito) economista L. C. Mendonça de Barros, ao longo de quase três décadas, taxas de crescimento próximas a 10% ao ano gerou uma situação suficiente para “tornar a China o novo polo dinâmico global” (“As três cabeças do dragão”, Valor Econômico, 12/11/2007).

Segundo a aprovação (7/11/2007) pela Câmara baixa da Rússia, a Duma, do projeto de lei enviado pelo presidente V. Putin, decretando moratória ao cumprimento do Tratado sobre as Forças Armadas Convencionais na Europa. Isto significa, de um lado, que há recusa do comando da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), manietado pelos EUA, em ratificá-lo; de outro, que ao decretar moratória daquele Tratado, a Rússia se posiciona explicitamente – noutro movimento – em oposição às novas bases antimísseis propostas pelos EUA para serem fixadas na Europa Oriental. Rússia e China são alvos evidentes da manobra estratégica norte-americana.

Terceiro, divulgados neste ano, que antecede às eleições presidenciais dos EUA (2008), a plataforma programática dos candidatos democratas e republicanos mais fortes está longe de alterar a ambição da posição imperialista norte-americana no sistema de relações internacionais. Aliás, como bem anota o professor J. Fiori (“Eleições e escolhas estratégicas”, Valor Econômico, 7/11/2007), Hilary Clinton, Barack Obama, Mitt Romney, John Edwards, John MacCain e Ruldoph Giuliani defendem “integralmente” a velha estratégia imperial. Noutra palavras, todos os candidatos declaram publicamente a defesa do “multilateralismo” na política externa dos EUA; ao tempo em que defendem ainda aumentar mais ainda os gastos militares, expandir as tropas mundo afora, ampliar investimentos em pesquisa e inovações tecnológicas para usá-los no que denominam “guerras assimétricas”.

Quarto, economias capitalistas “em desenvolvimento” vêm mantendo superávits na conta corrente do balanço de pagamentos – saíram dos déficits sistemáticos que levavam, a exemplo, o Brasil a crises cambiais demolidoras. Uma nova situação lhes provê grande acúmulo de reservas internacionais; na grande maioria dos casos denominadas em dólar (Títulos do Tesouro americano ou moeda); formaram-se os fundos de riqueza soberanos (“sovereign wealth funds”). Logo acusados de ressuscitarem um temível “capitalismo de Estado”, de rápido crescimento, vários países controlam hoje cerca de US$ 2,2 trilhões. Os seis maiores (em tamanho estimado) pertencem a Abu Dhabi (US$ 625 bilhões), Noruega (US$ 322 bilhões), Cingapura-GIC (US$ 215 bilhões), Kuait (US$ 213 bilhões), China (US$ 200 bilhões), e Rússia (US$ 128 bilhões).

Quinto, o presidente do Fed (Banco Central dos EUA), Ben Bernanke oficializou o que já se sabia: a desaceleração da economia norte-americana se acentuará no quarto trimestre de 2007 – apesar de ter anunciado um PIB revisado (Produto Interno Bruto) 4,9%, no terceiro trimestre; um crescimento de 16% no valor das exportações no trimestre; e, assim, um recuo expressivo no déficit das transações correntes. Disse ele ainda: o crescimento deve ser “lento” na primeira parte de 2008, e ganhar força conforme os efeitos do aperto no crédito e da correção no mercado imobiliário forem desaparecendo.

Esse quadro pintado por Bernanke vem levando até analistas insuspeitos (e espertalhões) a vaticinarem perspectivas de agravamento da crise financeira, já séria. Segundo a expressão de Tony James, presidente da Blackstone (megafundo de investimentos), formou-se um “buraco negro” a partir da crise americana dos “subprime” (2007).

Alguns pesquisadores apontam várias causas que poderiam levar a uma crise financeira global [9], de grandes proporções – que em verdade não pode ser afastada do horizonte. Entre elas estariam: a) a queda drástica das receitas dos bancos que operam nos EUA (forte aperto no crédito); b) registra-se uma redução expressiva do valor dos ativos em posse desses mesmos bancos nos Estados Unidos; c) aparece uma fragilização crescente na confiança das grandes seguradoras; e, d) o que o economista liberal Martin Wolf denominou de inevitável, a partir de 2008, na economia estadunidense: uma “recessão do crescimento”; ou seja, doravante um crescimento econômico abaixo da média das últimas duas décadas.

Nada disso autoriza a escatologia do “colapso iminente” [10], seja de sua moeda, seja da economia norte-americana – como no decênio que transcorre repetiram à exaustão os catastrofistas do marxismo vulgar.

NOTAS

[1] Ver: “Processo de industrialização. Do capitalismo originário ao atrasado”, de C. A. Barbosa de Oliveira, p. 122, Unesp/Unicamp, 2003.

[2] In: “Estados e moedas no desenvolvimento das Nações”, J.L. Fiori (org.), Vozes, 1999.

[3] Ver, do autor: “Os anos de chumbo. Notas sobre a economia internacional nos entreguerras”, mimeo. 2007, prelo.

[4] Na última entrevista que concedeu à imprensa brasileira, o historiador E.. Hobsbawm desenvolveu o seguinte raciocínio, distinguindo o fracasso militar dos EUA no Iraque e sua economia, o que tem sido omitido por analistas vários:

“A Guerra do Iraque está demonstrando que exercer influência no mundo todo não será possível. Ela está demonstrando que mesmo uma grande concentração de poder militar não pode controlar um Estado relativamente fraco sem certa aprovação ou consenso deste. Defendo no livro que o projeto norte-americano está falindo. O que não significa que os EUA se tornarão um país mais fraco, ou que estejam em declínio ou colapso. Mesmo que percam os seus soldados, continuarão sendo uma nação importante, econômica e politicamente” (in: “Hobsbawm prevê fim do império americano”, Folha de S. Paulo, 30/9/2007; negritos nossos).

[5] Escreveu Kennedy: “Em consequência, os Estados Unidos correm hoje o risco, tão conhecidos dos historiadores da ascensão e queda de grandes potências anteriores, do que se poderia chamar de ‘excessiva extensão imperial’” (Campus, 1989, p. 488).

[6] Até o momento (fevereiro de 2008), a desvalorização do dólar provocou desgaste relativamente pequeno no papel da moeda como divisa-padrão para as transações internacionais: ainda é usada em 86% das transações cambiais diárias no mundo (US$ 3,2 trilhões). Em 2001 essa percentagem era 90%; quase dois terços das reservas internacionais dos bancos centrais dos países continuam em dólares. O euro corresponde a cerca de 25% (quando foi lançado eram 18%) e todas as outras divisas a 10%. Tal supremacia é sustentada em fatores não só econômicos, mas também políticos, estratégicos, militares. Por outro lado, somando os 15 países da União Europeia que adotam o euro, com a recente adesão das ilhas de Chipre e Malta – em janeiro de 2009 será a vez da Eslováquia -, vê-se que o mundo ruma a uma diversificação gradual, com maior presença do euro bem como de algumas moedas asiáticas. “Mas o dólar ainda terá, por muito tempo, a supremacia”, analisou C. Langoni, diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getúlio Vargas (ver: “Dólar perde referência em negociações”, em O Globo, 16/01/2008).

[7] Ver: “Dólar perdeu 31% desde 2002. E o fundo poço ainda está longe”, in: O Estado de S. Paulo, 11/11/2007, p. B14.

[8] O assunto do dólar e da decadência histórica dos EUA foi por mim examinado com certo detalhe em “Anotações sobre o dólar e o sistema monetário internacional”, in: Revista Princípios, n° 89, abril/maio São Paulo, Anita Garibaldi, 2007.

[9] Não adianta tagarelar – aliás, algo que pouquíssimos hoje têm coragem de assim agir – que o quadro é corriqueiro. A situação atual é inédita, desde o final da 2ª Guerra Mundial. Por mais que injetem bilhões de euros ou dólares, a “sangria” não só não estanca, como não consegue aliviar o aperto no crédito (credit crunch): o BCE introduz quase 350 bilhões de euros no sistema bancário, agora, no último dia 18/12/2007; em 16/11/2007 foi a vez do Fed, que enfiou outros US$ 47,25 bilhões. (Informações do jornal Valor Econômico, on line, nas datas assinaladas).

[10] Sobre a questão da hegemonia dos EUA, pensando diferentemente, assim se posicionou dias atrás a professora Conceição Tavares:

“Eu já não gosto dessa hipótese porque já se falou dela há mais de 30 anos, quando todo mundo começou a dizer que os Estados Unidos tinham capotado, a indústria deles tinha acabado, o Made in América tinha ido para o diabo. A indústria deles, realmente, a não ser a indústria top, não concorre hoje com as indústrias do mundo. Só que eles têm os setores muito pesados, não só os financeiros como os de tecnologia. Então, não vão quebrar. Ah, mas tem um déficit de transações correntes, dizem. Isso aí é ignorância, porque o déficit de transações correntes é à custa do mundo, que manda sua poupança para eles. É o que acontece, inclusive, com os chineses, japoneses e nós, a América Latina inteira, todos que têm saldo de balanço de pagamentos que está em dólar estão mandando para eles” (ver: Entrevista de Maria da Conceição Tavares, “Crescimento deveria ser meta do Banco Central”, in: Desafios do Desenvolvimento, dezembro de 2007; negritos nossos).

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