A patologia brasileira e seus remédios

Havia algo de misticismo no chienlit brasileiro de 8 de janeiro,  em que uma massa de indivíduos ignaros, à falta física do seu chefe, tentou baixar o seu espírito como num culto religioso a fim de realizar a obra que lhe cabia no sentimento de todos.

Congresso, STF e Palácio do Planalto foram invadidos neste domingo, 8, em atos contra a democracia - Foto: Marcelo Camargo / ABr

Sem doutrina, sem partido e com aversão à política, aí está o fascismo à brasileira dando as caras no infausto 8 de janeiro com seus personagens decaídos, vindos de acampamentos nas proximidades de quartéis militares confiando que contariam com sua adesão ao seu movimento. Convictos em suas crenças mágicas, acreditavam que a promoção do caos com a tomada pela força da praça dos Três Poderes e das instalações físicas do poder republicano bastariam, mesmo que sem plano, aos seus propósitos de instalar um governo de exceção, que lhes cairia nas mãos por efeitos do jogo de dominó em que o caos se difundiria irresistivelmente até a ascensão ao poder do personagem a quem atribuíam qualidades míticas, que, aliás, não deu as caras nesse levante de pátio dos milagres.

Tais eventos, inéditos aqui e em toda parte do mundo conhecido, não duraram mais que poucas horas, contidos os tresloucados, homens e mulheres de todas as idades, vindos de todos os cantos do território nacional, conduzidos à prisão sem maiores resistências, mas deixando em seus rastros uma ação destrutiva que segue doendo na autoestima dos brasileiros com a profanação de obras da sua cultura e da sua civilização.

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Resta desse desastre humano um patrimônio a ser penosamente reconstruído, e bem mais que isso, identificar as raízes imediatas e as profundas a que se prendem a fim de remover a insânia e as marcas e do mal que se abriga em nossa sociedade que ainda conserva as marcas quasímodas da nossa formação a partir da grande propriedade rural escravista. Os acontecimentos extraordinários que nos abalaram, e ainda abalam, devem ser estudados pela ciência social, brasileira e estrangeira, para o que se conta não só com abundante material, mas também por uma detida investigação nas motivações dos autores, boa parte nas prisões, que se enredaram em suas práticas.

Como se diz, não se deve passar um pano nesse tétrico episódio e seguir adiante. A história do país doravante, para seguir seu curso ou decifra corretamente o que acaba de lhe ocorrer ou sucumbirá as flores do mal que germinam em seu ventre. Apuração implacável de suas causas, responsabilização dos que insuflam por palavras e atos a pregação fascista e a recusa da democracia como projeto de país, deve ser o compromisso inegociável de todos os que se opõem à barbárie que ronda a nossa vida em comum.

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As altas cortes do Judiciário têm dado respostas adequadas aos crimes que foram praticados, mas isso não basta, somente da política podem proceder as ações que tenham em mira o ovo da serpente que se esconde numa sociedade de massas fragmentária, desorganizada e com seus integrantes isolados uns dos outros. A ênfase na questão social que tem caracterizado os inicios do governo Lula- Alkmin certamente é positiva, mas não pode, como se tem reparado até aqui, permanecer restrita a intenções reparadoras do Estado diante de uma sociedade absenteísta, esperando de cima que seus direitos lhe sejam concedidos. Sem partidos que a representem, sem sindicatos e movimentos sociais ativos, sem lugar e meios por onde possa experimentar seus atos de fala, arriscamo-nos a reiterar o perverso itinerário que foi a base de partida para a tragédia política que ora temos de superar.

Durante quatro anos, dia a dia, fomos testemunhas de ações liberticidas que intencionavam abater quaisquer laços orgânicos em nossa vida comum, negando-se realidade fática à existência dessa coisa chamada de sociedade. O fascismo e sua pregação neoliberal das hostes bolsonaristas só admitiam o indivíduo isolado, mônada de interesses privados somente postos em ordem pela intervenção mítica do chefe da nação. Nesse sentido, havia algo de misticismo no chienlit brasileiro de 8 de janeiro,  em que uma massa de indivíduos ignaros, à falta física do seu chefe, tentou baixar o seu espírito como num culto religioso a fim de realizar a obra que lhe cabia no sentimento de todos. Bolsonaro encarnou, assim em unção mística, a depredação em que cada manifestante em êxtase destruía um ícone nacional.

Os alemães, depois de 1945, solenemente prometeram que sua tragédia nacional não mais se repetiria, e conseguiram. Seremos capazes do mesmo?

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