A mais digna das profissões

Existem profissões de tempos imemoriais. Ofícios teoricamente simples, em geral manuais, que carregam em si o pouco que resta da dignidade humana. Em comum, a grande maioria delas está em vias de extinção, quase mortas, mas com alguma sorte ainda se pode encontrá-las definhando elegantemente nos centros velhos e bairros mais antigos dos subúrbios.

Alfaiate, ourives, carpinteiro, sapateiro, relojoeiro, retratista, caixeiro-viajante, barbeiro. Essas e outras são profissões que cheiram a naftalina e, por isso mesmo, moram no meu coração. Especialmente esse brasileiro de tipo singular, o barbeiro.

Um bom barbeiro transpira integridade – afinal, você entregaria seu pescoço a um facínora? – e, por mais pé de chinelo que seja, mantém uma elegância de quem ainda vive a Belle Époque.

Sempre que posso, ajeito o telhado numa barbearia de mais de 60 anos, o Salão Pereira, no Jaçanã. Mas, outro dia, já com o cabelo em estado de Bozo, entrei numa que me pareceu simpática, na Rua Basílio da Gama, Praça da República. "É só passar a 3 e baixar em cima mesmo".

Enquanto espero, folheio o "Agora", leitura obrigatória e única de todas as barbearias e pontos de táxi de São Paulo. Depois da página de esportes, deixo de lado o periódico e passo em revista a decoração do mausoléu: um quadro de linha e uma flâmula da Portuguesa de Desportos, um relógio de parede de ponteiro, uma caixa registradora e um telefone de disco ao final do balcão – isso, claro, sem contar as indefectíveis cadeiras Ferrante e demais aparatos de um profissional digno.

Meia hora depois, sou chamado por um tapa na cadeira: "Vamos lá". Um senhor de ao menos uns (18) 85 anos – a pele fina e craquelando denuncia a idade mais que tudo -, óculos pesados e olhar de poucos amigos no rosto. "Boa tarde. Qual o nome do senhor?". Sem direito a reciprocidade de saudação, depois de eloquentes 5 segundos de silêncio, a resposta seca: "Borges" (pronunciando em português de Portugal fica Bôrrrgis).

Explico o corte e ele começa. Cada movimento custa. Girar ao redor da cadeira, trocar da máquina pela tesoura, nada sai por menos de 30 segundos. Fico lendo no celular, mas ciente que as fases da máquina 3 e da navalha no pesinho já foram ultrapassadas.

"Há quanto tempo o senhor está aqui?", arrisco para criar proximidade. Soco no estômago: "Mais tempo que você". Não me dou por achado e manobro até arrancar que o "Salão Genial" tem muitas décadas e que seo Borges já funcionou em outro ponto (não sei se a barbearia tinha o mesmo nome). "Parece-me que até um italiano agora trabalha por lá", deixa escapar, naquele misto de rivalidade e preconceito que um velho tem o direito de ostentar.

Talco e pincel indicam que o trabalho vai chegando ao fim. Apresento, em tom de sugestão: "Não seria o caso de cortar um pouco mais em cima?" "Já cortei, o senhor que ficou entretido ao telefone". Administro o golpe com alguma dificuldade, pensando ainda em convencê-lo a aparar mais um pouco minha samambaia.

Seo Borges saca, então, o pente Flamengo e enrosca fiapos de algodão nos dentes, numa técnica milenar de pentear tirando as pontas sobrantes do corte.

Apresenta-me o espelho. Atrás, dos lados, tudo normal. Aceno com a cabeça, miro o espelho da frente e ajeito o cabelo com os dedos – o normal, já que nunca penteei – e observo: "ficou um pouco alto". O velho barbeiro, como quem defende a honra ancestral da classe, fulmina com o olhar e encerra o assunto: "Fica bom penteado; despenteado fica ruim".

Se ficou bom ou ruim, pra dizer a verdade, no meu tipo de cabelo tanto faz. Mas, desde então, tenho voltado todo mês, religiosamente, no Salão Genial.

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