A globalização está morrendo?

A forma exata da futura ordem econômica pós-neoliberal ainda não está clara, mas provavelmente será muito mais local, heterodoxa, complicada e multipolar do que o que veio antes.

Morte do Avarento, pintura de Hieronymus Bosch, (Países Baixos, 1450-1516)

ma série de acontecimentos adversos neste início de século 21, tais como a crise financeira de 2008, a crescente rivalidade entre Estados Unidos e China, a pandemia da Covid-19 e a guerra na Ucrânia, colocou em xeque a ideia de que a globalização era um caminho sem volta para a humanidade.

Inúmeras medidas tomadas por governos e empresas com o objetivo de protegerem-se dos efeitos adversos desses acontecimentos levantaram suspeitas de que o movimento de globalização, que teve seu auge nos primeiros anos do século 21, estaria morrendo. Pode-se destacar entre elas a adoção de práticas de salvaguarda  com o objetivo de preservar o emprego e o mercado local, a implementação de políticas industriais visando estimular a produção local de bens finais e insumos para reduzir a dependência do fornecimento externo por meio de extensas cadeias globais de suprimento, a proibição da exportação de bens de alta tecnologia para inviabilizar a ascensão de potenciais concorrentes no mercado global, a adoção cada vez mais frequente de sanções econômicas como armas de guerra, o encurtamento das cadeias de suprimento visando depender menos de longos trajetos de transporte com a relocalização de fornecedores em áreas mais próximas, o aumento da xenofobia e da rejeição aos imigrantes, a participação declinante do valor do comércio internacional em relação ao PIB global, a retórica anti-globalização adotada por correntes políticas conservadoras, entre outras.

Martin Wolf, comentarista econômico do Financial Times, contesta essa ideia. Em artigo publicado em 13/09 ele afirma que “A globalização não está morta. Pode nem estar morrendo. Mas está mudando. Entre as formas mais importantes pelas quais está mudando está o crescimento dos serviços prestados à distância”. Fazendo referência à tese defendida por Richard Baldwin, no livro The Great Convergence, Wolf afirma que desde a revolução industrial vimos três ondas de globalização. Primeiro, a industrialização e a revolução nos transportes geraram oportunidades para o comércio de mercadorias. Mais recentemente, novas tecnologias de informação permitiram o “comércio de fábricas”: tornou-se lucrativo mover fábricas inteiras para onde a mão-de-obra era barata. Hoje, porém, a internet banda larga permite o “comércio de escritórios”: se alguém pode trabalhar para o empregador de casa, alguém na Índia também pode fazer isso. Afirma, ainda, que uma diferença importante entre a primeira e a segunda ondas, que precisam de movimentação de objetos, e a terceira, que movimenta informações virtualmente, é que os obstáculos ao comércio físico são muito mais fáceis de impor do que os do comércio virtual. Conclui afirmando que, ao todo, as evidências sugerem que as forças econômicas naturais foram amplamente responsáveis por mudanças passadas no padrão do comércio mundial. A crescente preocupação com a segurança das cadeias de suprimentos sem dúvida aumentará essas mudanças, embora seja duvidoso se o resultado será “reshoring” (passar a produzir nos próprios países) ou “friendshoring” (importar de países mais próximos física e politicamente). O mais provável é um padrão complexo de diversificação. Enquanto isso, a tecnologia está abrindo novas áreas de crescimento em serviços”.

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Poderíamos apontar outros fatos que podem levar à falsa impressão de que o comércio mundial esteja encolhendo relativamente ao PIB global de forma generalizada, quando na verdade não é bem isso o que ocorre. O primeiro é que a China, muito antes da pandemia e da piora das relações com os Estados Unidos, já vinha fazendo um grande esforço para aumentar o conteúdo local de sua produção manufatureira. Um caso clássico, sempre lembrado, é dos iPhones da Apple montados na China. Como se sabe, 95% desses aparelhos vendidos no mundo são montados na China, mas 95% dos seus componentes são importados de outros países, de modo que o valor agregado na China ao produto final é apenas uma pequena fração do valor final do produto. Como se vê nos gráficos abaixo, no início dos anos 2000, menos de 50% do valor das manufaturas exportadas pela China era adicionado localmente, situação que a China vem tentando reverter nas últimas duas décadas por meio do esforço para produzir localmente insumos tecnologicamente mais sofisticados. Um outro fator a acrescentar é que os Estados Unidos, por razões diferentes, também vêm tentando trazer de volta ao território norte-americano a produção de insumos cuja produção as próprias multinacionais americanas haviam transferido para a China no auge do processo de globalização. Entre os motivos que têm levado os Estados Unidos a fazer esse movimento de “reshoring” podemos citar a tentativa de reverter a tendência de diminuição dos empregos industriais nos Estados Unidos, os problemas de desabastecimento que vieram à tona com a interrupção parcial do transporte internacional por causa da pandemia da Covid-19 e, principalmente, o esforço norte-americano de desacoplar sua economia da China. Essa tendência pode ser vista no gráfico abaixo, no qual tanto China quanto Estados Unidos vêm aumentando o conteúdo local de sua produção manufatureira, fenômeno que não ocorre na Europa.

  Fonte: http://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=TIVA-2016-C1# (Wall Street Journal, 08/12/2021)

Ao discutir a mesma questão, Rana Foroohar, editora associada do Financial Times, em artigo publicado na edição novembro/dezembro da revista Foreign Affairs (After Neoliberalism All Economics Is Local), aponta para a crescente importância da questão local na reconfiguração da ordem global pós-neoliberal.  A suposição de que o que era bom para as multinacionais era bom para seu país de origem, ideia que esteve por trás do forte apoio dos governos dos países industrializados à internacionalização de suas empresas e ao movimento de globalização produtiva promovido pelas grandes empresas multinacionais em busca da redução de custos, tem se mostrado duvidosa mesmo para os países que mais se beneficiaram do processo de globalização, na forma de acesso a produtos de consumo final mais baratos para sua população, como foi o caso dos Estados Unidos.

Com o passar do tempo foi ficando claro que a contrapartida desse fluxo de mercadorias baratas vindas de países com mão-de-obra pouco qualificada para onde as multinacionais americanas haviam transferido suas linhas de produção intensivas em mão-de-obra foi o aumento do fosso entre pobres e ricos, mesmo nos Estados Unidos. Segundo Foroohar, “Além disso, as políticas neoliberais fizeram com que a economia global se tornasse perigosamente desvinculada da política nacional. Durante grande parte da década de 1990, essas mudanças tectônicas foram parcialmente obscurecidas nos Estados Unidos pela queda dos preços, aumento da dívida do consumidor e baixas taxas de juros. No ano 2000, no entanto, as desigualdades regionais forjadas pelo neoliberalismo tornaram-se impossíveis de ignorar”.

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Ainda segundo ela, “Em uma pesquisa de 2021 da consultoria McKinsey & Company, 92% dos executivos globais da cadeia de suprimentos entrevistados disseram que já haviam começado a mudar suas cadeias de suprimentos para torná-las mais locais ou regionais, aumentar sua redundância ou garantir que não dependam de um único país para suprimentos cruciais. Os governos incentivaram muitas dessas mudanças, seja por meio de legislação como o projeto de lei de política industrial do governo Biden ou de orientações como a Nova Estratégia Industrial da União Europeia, ambas com o objetivo de reestruturar as cadeias de abastecimento para que sejam menos distantes. A forma exata da futura ordem econômica pós-neoliberal ainda não está clara, mas provavelmente será muito mais local, heterodoxa, complicada e multipolar do que o que veio antes. Isso não quer dizer, contudo, que a globalização esteja morrendo.

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