A democracia x totalitarismo moderno

Como apresentado no texto “A estrutura repressora” a ideia de que o desenvolvimento do Estado democrático está na mão de todos é forjada, já que o poder é delegado a grupos de interesse e as instituições garantem a burocratização da vida, o que permite a formação de uma sociedade desigual, exploradora, repressora, violenta, hipócrita e cínica.

O Estado moderno vem se desenvolvendo dentro dessa lógica, uma estrutura/estruturante (Althusser), que desenvolve o aparato através dos intelectuais que pensam o Estado (Bourdieu), a burocracia que executa e os dispositivos de vigilância (Foucault) que promovem o controle – não apenas por um esquema de ordenamento centralizado, mas operando através de um “conjunto que engloba discurso, instituições, arquitetura, decisões regulamentares, leis e medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas” (Matelart).

Em meados do século passado, paralelamente aos esforços promovidos pelos regimes comunista na Rússia, fascista na Itália e nazista na Alemanha, os esquemas de dominação avançam muito nos EUA, com as eleições de Roosevelt em 1932, inaugurando o New Deal, projeto político no qual se instalam tanto políticas sociais e econômicas de intervenção e investimento em infraestrutura, liberação de crédito popular, aumento de gastos do Estado para geração de empregos, quanto o desenvolvimento dos meios de comunicação de massas e a formação de opinião pública.

Conforme Bobbio (2007. p.705-706), a origem desse pensamento está nas ideias do liberal-socialismo de John Stuart Mill, posteriormente de Eduard Berndtein que procuraram conciliar os princípios socialistas (Marxista Ortodoxa), e a práxis do movimento operário organizado na sociedade capitalista. O economista John Maynard Keynes expôs suas teorias sobre o Estado Interventor e gerador de bem estar social “Welfare State”, como uma alternativa capitalista e democrática (Cf. O Capital Contra a História, de Oswaldo Coggiola, 2002, p. 237) ao comunismo via ampliação de benefícios, crédito e por consequência aumento no padrão de consumo e novos direitos civis. A democracia moderna incorpora as lutas sociais e forças econômicas ao liberalismo, como forma de garantir a supremacia desses regimes no ocidente, controlados pelo poder do Estado em suas intenções de acumulação (Offe e Ronge), configurando assim o capitalismo, devido a ilusão que cria como o ponto cego da democracia.

Os valores centrais da sociedade atual são antigos, e não apenas ultrapassados, mas superados teoricamente há mais de um século, ainda assim, são influentes: o pensamento utilitarista de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, o positivismo de Comte, o darwinismo social de Herbert Spencer, o pragmatismo de Willian James. Tais teóricos foram precursores de valores de um mundo controlado, dentro do delírio da teoria do equilíbrio da natureza, que gerou a ecologia social (Park; Burgess). Outros discutem a psicologia das massas (ou multidões), como Scipio Sighele, qualificando muitas vezes as massas como criminosas, além dos teóricos da dominação das mentes, administração racional, formação de opinião pública e controle das massas, como Gustave Le Bon, Edward Bernays e Harold Lasswell.

Teorias que somadas ao beheiviorismo resultaram em uma nova forma de dominação, mais sutil, de controle social, ao estimular nas pessoas a busca por recompensas, ao saciarem os desejos hedonistas, característica da nova sociedade emergente de consumo, proporcionada pelo capitalismo, que no fundo é apenas outra forma de dominação, ainda mais perversa do que as outras formas citadas.

Enquanto as técnicas de dominação subjetivas, controle e identificação dos cidadãos avançaram, através do que Foucault chamou mais tarde de “dispositivos de vigilância”, anos antes, ocorreriam as críticas aos Estados totalitários (ir)racionais que emergiram no século 20, resultando no reconhecimento da crise de humanidade em curso, e da necessidade de valorização dos direitos humanos.

Rapidamente, desenvolveram-se aparelhos burocráticos cada vez mais eficientes, em regimes que não eram democráticos, o que foi entendido por parte substancial dos intelectuais da época que, ante Estados totalitários e hiper-burocráticos, a democracia e a liberdade estariam em uma posição dotada de verdade, como modelo de regime, na qual nunca esteve anteriormente.

As críticas de Robert Merton ocorrem nesse sentido, ao revelarem os equívocos proporcionados pelo excessivo formalismo, mecanicismo e desumanização dos processos, impessoais e irreais, o que tem de certa forma diálogo com a crítica de Walter Benjamin sobre a sociedade eminentemente técnica. Sartre, em sua obra mais conhecida, “O Ser e O Nada”, renova a preocupação do sentido da vida, inaugurando o “Existencialismo” em meio a uma guerra violenta, quando, um ano antes, seria divulgado ao mundo a existência de um Holocausto em curso na Europa, provocando o extermínio sistemático de Judeus, Poloneses, Ciganos, Comunistas e outros inimigos declarados pelo regime nazista alemão. Seguindo a mesma linha, Hannah Arendt, no livro “Sob a Condição Humana”, trouxe reflexão sobre os efeitos do homem reificado diante do mundo do trabalho, transformando-se em “coisa”, que somente tem valor enquanto trabalhador, o que chamou de homolaborans. Arendt, ao questionar a máquina de guerra moderna, a metralhadora, a guerra com aviões que podem atacar os civis atrás das linhas inimigas, campos de concentração, a bomba atômica, demonstra o medo da crescente desumanização do mundo.

Ao fim da segunda guerra, acaba sendo criada a Organização das Nações Unidas e lançada a Carta dos Direitos Humanos, demonstrando que o mundo não aceitava (?) mais as atrocidades cometidas na segunda grande guerra mundial em nome de sonhos delirantes da construção de superpotências.

A democracia, após longa jornada, iniciada no pensamento dos filósofos gregos onde era tida como uma forma de governo degenerada, passa a ter um valor positivo, reconhecimento que somente ocorreu diante do avanço do totalitarismo e da racionalização do estado que, somado a Estados totalitários, revelou-se capaz de gerar “mortes burocráticas”, antes imaginadas pela literatura das distopias (Admirável Mundo Novo, de Huxley, O Processo, de Kafka, 1984 e Revolução dos Bichos, de Orwell), mas que não foram apenas pesadelos ou narrativas fantásticas, ao contrário, apontaram o lado obscuro, frio e desumano dos tempos modernos.

Portanto, a democracia como conhecemos, mundialmente aceita como o modelo de governo, em que se acredita ser o melhor para a humanidade, ainda que tenha sido descrito como degenerado há quase 3.000 anos, não teria sido considerado, respeitado ou entendido como um sistema universal, até pouco mais que algumas décadas atrás. A democracia vem sendo desenvolvida, na maior parte do mundo, não antes que no tempo de nossos avós.

E ainda que tenha sido instalada de forma urgente, considerada uma exigência crescente após as atrocidades de regimes totalitários que caíram com a segunda grande guerra, não passou nem 15 anos para que os primeiros artigos científicos questionassem a essência e efetividade das democracias representativas.

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