A causa de Milosevich também é nossa (7)

Os porões e o palco

Talvez algum leitor se lembre da série de três artigos que consagrei, em meados de 2004, ao poeta comunista armênio Missak Manuchian. Não conheço a língua armênia, li apenas alguns de seus poemas em francês. Como a grande maioria dos de minha geração da anterior), soube quem ele tinha sido através de “L’affiche rouge” (O cartaz vermelho), um dos mais belos e entranháveis poemas da literatura francesa do século 20, em que outro poeta, o comunista francês Louis Aragon, pôs em versos, onze anos depois, a carta-testamento pungente escrita por Manuchian na manhã de 24 de fevereiro de 1944, dirigida a Melinê, sua amiga, mulher e camarada, logo antes de ser conduzido, junto com vinte e dois companheiros de seu grupo de combate, ao Mont Valérien, onde a Gestapo, coadjuvada por colaboradores locais, fuzilava os militantes da resistência anti-nazista.


 


 


Dimitrov não era poeta, mas tinha dois pontos importantes em comum com Manuchian e Aragon: era comunista e militante anti-fascista. Com Manuchian, ademais, teve em comum a experiência de ser réu num tribunal nazista. Notei, a propósito do processo da “rede Manuchian”, que os nazistas a tal ponto gostavam de grandes espetáculos, que mesmo num país ocupado e já com a guerra praticamente perdida no Leste (onde recuavam em passo acelerado diante da vitoriosa contra-ofensiva do Exército Vermelho), não quiseram perder a ocasião de montar uma peça de propaganda contra a Resistência, apresentando-a como obra de terroristas estrangeiros. Diferentemente do que ocorria nos “interrogatórios” no fundo dos porões da Gestapo, o comando nazista conferiu inusitada publicidade às audiências, transformando o procedimento judicial, que durou três dias, em grande espetáculo. A imprensa foi convidada: cerca de trinta jornais franceses e estrangeiros estavam representados. Os serviços de propaganda alemães enviaram uma equipe de cinema. Estimulando a xenofobia, o anti-semitismo e o anti-comunismo da opinião pública, a rádio e os jornais do governo fantoche pró-nazista instalado em Vichy retomaram o tema do “judeu-bolchevismo, agente do banditismo”. O objetivo, evidente, foi enfatizado pelo presidente da corte marcial: “expor à opinião francesa a que ponto sua pátria está em perigo”.


 


 


Onze anos antes, os nazistas, que haviam então acabado de chegar ao governo, mas ainda não tinham tomado todo o poder, deram também grande publicidade ao processo de Dimitrov. Hitler explicou porquê, quando, acompanhado de sócios do alto comando nazista, veio contemplar o Reichstag em chamas, na noite de 27 de fevereiro de 1933. Logo ao chegar diante do incêndio, comentou: “-Ein Zeichen von Himmel!” (um dom do céu). Ele próprio, com efeito, com autorização do marechal Hindenburg, último presidente da República de Weimar, que vinha de nomeá-lo chanceler, havia convocado eleições gerais para o dia 5 de março. Os nazistas e seus aliados da direita precisavam de maioria de dois terços para  reformar radicalmente a Constituição. Durante a campanha eleitoral os partidos de esquerda foram constantemente agredidos pelas tropas de choque da cruz gamada, além de terem sido prejudicados por medidas discriminatórias tomadas pelo governo, notadamente suspendendo por uma ou duas semanas jornais social-democratas e comunistas (Vorwärts, Rote Fahne) e até o liberal Berliner Tageblatt.


 


 


Graças ao dom trazido pelo céu na noite de 27 de fevereiro, Hermann Goering pôde usar todos os recursos policiais que seu cargo de presidente do Conselho da Prússia punha-lhe à disposição para criar, por meio de uma vaga de prisões de dirigentes da oposição (a começar de Ernst Torgler, dirigente da bancada comunista no Reichstag), o ambiente eleitoral propício aos nazistas. Mesmo assim, estes não obtiveram mais do que 43,9% dos votos, os quais, somados aos da direita tradicional, chegavam a 52%, o que não bastava para reformar radicalmente a Constituição. Apesar do terrorismo de Estado, dos assassinatos de militantes operários, cujos cadáveres, como os de Rosa Luxemburgo e Liebknecht, apareciam boiando nos rios, os comunistas elegeram 81 deputados. Mas os celerados da cruz gamada já estavam fortes o suficiente para reformar a Constituição por meio de seus métodos preferidos, notadamente quebrando ossos (uma especialidade da Gestapo) ou atirando à queima-roupa para matar.


 


 


Os deputados comunistas não chegaram a exercer seus mandatos. Foram presos à medida que se apresentavam para assumi-los. Os sindicatos social-democratas, que sempre lançavam manifestos a favor dos candidatos de seu partido, tinham resolvido, desta vez, agir “prudentemente”, “liberando” o voto dos militantes. Esperando conseguir melhor tratamento do que o reservado aos comunistas, chegaram a reproduzir em sua imprensa trechos dos discursos de Hitler, para mostrar que era possível chegar a algum acordo. Tiveram logo de perder as ilusões. Após anunciar, no dia 1º de maio, que “a revolução nacional” tinha começado, o Führer mostrou aos cordeiros que é inútil querer negociar com os lobos: no dia 2 de maio, em ação simultânea em todo o território alemão, suas tropas de choque se apoderaram dos bens de todas as organizações operárias; no dia 10, foi a vez dos bens do Partido social-democrata: prédios, gráficas, fundos etc. e, no dia 18, enfim, o da “formidável rede de cooperativas de produção e consumo, orgulho do socialismo alemão”, na expressão de Antonio Ramos Oliveira, em sua excelente história da Alemanha (1).  Dirigentes sindicais social-democratas que tinham ocupado altos cargos, nomeadamente Leipart e Grassmann, levados à prisão de Ploetzensee, sofreram humilhações bem no estilo da calhordice hitleriana: foram obrigados a cantar o hino Horst Wessell, a dar vivas a Hitler e a dar pulos de palhaço.


 


 


Ramos Oliveira descreveu concisamente o que ocorria na Alemanha naquele momento: “O terror chegava então a seu ápice. Dois milhões de alemães caminhavam para os campos de concentração e os cárceres. As hordas das SA (2) tinham enfim o domínio das ruas. Judeus, social-democratas, comunistas, liberais, estavam presos nas tenazes dos nazistas, que não respeitavam nem sexo nem idade. O mundo descobriria logo com horror aquilo que deveria saber desde o começo” (3).


 


 


Esse era o sombrio contexto em que Dimitrov foi preso e conduzido a julgamento. Desde o início, lutou obstinadamente por um objetivo que pode parecer desmesurado, mas estava à  altura de sua firmeza de caráter e de sua inteligência política: converter o planejado processo contra o Partido comunista em processo contra o nacional-socialismo. Esse propósito já está evidente em seu depoimento inicial à polícia:


 


 


“Soube da notícia do incêndio do Reichstag pelos jornais, na manhã de 28 de fevereiro, no trem de Munique a Berlim […]. Vi pela primeira vez o nome e a fotografia do “incendiário” nos jornais alemães […]. Jamais o vi ou encontrei em minha vida. Como comunista sou por princípio oposto ao terrorismo individual […] esses atos são incompatíveis com os princípios e métodos comunistas do trabalho de massa […]. Tenho a profunda convicção de que o incêndio do Reichstag só pode ser obra de insensatos ou dos mais ferozes inimigos do comunismo, que, por este ato, quiseram criar uma atmosfera favorável ao esmagamento do movimento operário e do Partido comunista na Alemanha”(4).


 


 


Ao longo do processo, manteve a mesma atitude. Reproduzimos passagens do estenograma da audiência de 26 de setembro de 1933, à qual Dimitrov foi trazido na qualidade de cúmplice do holandês Van der Lubbe. Entende-se sua preocupação em pôr em evidência essa mentira descarada:


 


 


Dimitrov: Queria protestar contra a adulteração de que foram objeto minhas palavras reproduzidas na imprensa fascista.


 


O Presidente: […] O senhor não está com a palavra. Decido eu qual o momento das declarações.


 


[…]


 


Dimitrov: Constato que estou privado da possibilidade… 


 


O Presidente: Silêncio! O senhor não pode constatar nada aqui. Dirija-se a seu defensor!


 


Dimitrov: Assumo minha própria defesa!


 


O Presidente (dirigindo-se a Van der Lubbe) Por que o senhor provocou esses três incêndios?


 


Van der Lubbe (após um longo silêncio, responde através do intérprete): Por razões pessoais.


 


O Presidente: O que o senhor quer dizer com isso?


 


Van der Lubbe: Eu mesmo não o sabia. (No entanto, esclarece o editor das Oeuvres Choisies de Dimitrov, consta no processo que Van der Lubbe declarou ter ateado fogo no Reichstag “para incitar os operários a fazer uma revolução enquanto não fosse tarde demais[…]”). 


 


O Presidente: Esse fato não devia expressar um protesto público contra o capitalismo? (Van der Lubbe permanece em silêncio).


 


Dimitrov: É inexplicável que Van der Lubbe tenha podido fazer deppimentos tão pormenorizados diante do huiz de instrução e  agora, na audiência pública diante do tribunal, ele se cale […]


 


O Procurador supremo e o Presidente (interrompendo-o): O senhor não está aqui para construir nenhuma hipótese […]. (5)


 


 


Notas


 


(1) A. Ramos Oliveira, Historia social y política de Alemania, 1800-1950 Publicado no Mexico, Fondo de Cultura Econômica, 1952, p. 241 


 


(2) As SA (Sturm Abteilung, seção de assalto) eram unidades do braço armado do Partido nazista.  Foram criadas por Ernst Röhm, parceiro de Hitler desde o início dos anos 1920. Röhm levou a sério a demagogia anti-capitalista do Führer, ao qual os grandes trustes (o mais generoso foi o grupo Thyssen) forneciam parte substancial das finanças do Partido. Em 1934, após um ano no poder, Röhm exigiu que se cumprisse o artigo 11 do programa nazista: “supressão das rendas que não procedam diretamente do trabalho intelectual ou manual e abolição completa da servidão dos juros”. No dia 30 de junho, pressionado por seus benfeitores da indústria pesada, Hitler dissolveu as SA, prendeu Röhm pessoalmente e entregou-o à nova guarda pretoriana do poder, as SS (Schutz-Staffel=esquadrões de proteção) que o fuzilaram no ato.


 


(3) A. Ramos Oliveira,ib., p.241.


 


(4) George Dimitrov, Oeuvres Choisies, volume I, Sofia-Presse, 1972, p. 383.


 


(5) Dimitrov, ib., pp. 398-399.

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