A casa-grande de Palocci e o caseiro

Palocci foi derrubado não pelo que fez à frente do Ministério da Fazenda mas pelo que representava para o presidente Lula

O livro Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre — assim como obras de Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Nelson Werneck Sodré e outros — é sempre invocado quando se quer discorrer sobre a chamada ''alma'' brasileira. Freyre foi um dos principais ''explicadores do Brasil'', isto é, alguém que, por meio de uma respeitável obra, procurou tornar o país mais inteligível aos próprios brasileiros. Casa Grande e Senzala explica, em boa medida, porque existem fortes pressões contra mudanças no país. Explica, por exemplo, porque muitos partidos políticos ainda funcionam como redes de interesses cuidadosamente preenchidas por donos obtusos, líderes conservadores e práticas retrógradas. E isso cria inércia suficiente para barrar qualquer mudança.

Esses partidos refletem a estrutura social brasileira. Eles são o retrato de uma parte poderosa do Brasil onde prevalece o velho modelo fundado na "ética" da "casa-grande e senzala", com papéis bem definidos e lema bem estabelecido: "Manda quem pode, obedece quem tem juízo". Curiosamente, esse arcabouço ideológico une desde a direita mais arcaica até a esquerda mais míope. E ata pontas tão díspares quanto Fernando Henrique Cardoso (FHC), ditadura militar, velha oligarquia feudal, PPS, PSTU e PSOL. No caso Francenildo, isso ficou bem demonstrado. Para a "casa-grande", ele é um "simples caseiro", vítima do "poder" — o que evidencia a fragilidade da "democracia" sob a responsabilidade de um governo majoritariamente de esquerda.

Um mal que, pode-se dizer, veio para bem

Mas, antes de ser atingido, o "humilde caseiro" — outra variação fartamente utilizada pela "casa-grande" — derrubou ninguém menos que o todo-poderoso ministro da Fazenda Antônio Palocci. Qualquer pessoa medianamente sã — e medianamente honesta — sabe que Palocci não caiu pela "coragem" de Francenildo. O ex-ministro pensa como os donos da "casa-grande" — tanto que, segundo dizem, pessoas próximas a ele mantinham uma luxuosa casa em Brasília — e foi derrubado não pelo que fez à frente do Ministério da Fazenda mas pelo que representava para o presidente Lula. Ou seja: ele caiu pelos motivos errados. O alvo certamente não era Palocci e sim o presidente da República. A luta de classes às vezes se desenvolve por caminhos inesperados.

Mas esse é um mal que, pode-se dizer, veio para bem. A simples demissão de Palocci e seus cupinchas já é um grande avanço para o país. Eles representavam um setor da sociedade que colocava o governo em tensão permanente. Eram verdadeiros entraves aos projetos desenvolvimentistas e dificultavam a viabilidade das políticas sociais. Não eram, definitivamente, do campo progressista e nem mesmo do espectro centro-esquerda. Praticavam uma política que só interessava à elite — os "fundamentos" de nossa economia têm a consistência de uma bolha de sabão —, embora, como todos os liberais, dissessem que trabalhavam para a "sociedade". Não era verdade. Não dá, evidentemente, para imaginar no Brasil uma coletividade na qual todos se reconheçam e se respeitem como iguais. E isso decorre de uma lógica simples: a quase totalidade dos privilégios e do status da elite advém da exclusão social.

Essa gente passou a vida trocando favores
 
De novo: simplesmente não interessa, para eles, que os processos no Brasil funcionem melhor. Se o sistema de transporte público fosse eficiente, o significado de ter um carro de luxo mudaria no país. Se os serviços de saúde funcionassem, o fato de haver hospitais cinco estrelas seria irrelevante. Essa gente passou a vida, de geração em geração, trocando favores, construindo atalhos, traficando influência. Se todos os cidadãos tivessem assegurados os mesmos direitos, por meio de sistemas sólidos e funcionais, toda essa rede de relações obscuras, essa indústria da maracutaia, perderia o sentido. Por que essa gente toparia, na boa, a mudança de paradigma? Eles até falam em mudança, mas sempre preferem deixar o assunto para outro dia.

Enquanto isso, permanece a lógica de que é normal destituir um sujeito de tudo, a ponto de ele ir para debaixo da ponte ou de um coqueiro que, como diz a canção, dá coco. Essa lógica é cristalina, por exemplo, nas CPIs — que representam um encontro entre o estardalhaço e a inutilidade. Do ponto de vista moral, elas não significam rigorosamente nada. Servem, no máximo, para manipular os incautos — como parece ser o caso de Francenildo — com vistas a desgastar a imagem do governo e levar de volta ao poder os especialistas em distribuir prebendas em benefício de uma minoria. O que essas CPIs fizeram o tempo todo é chantagem política. É essa, unicamente, a leitura honesta que se pode ter delas. 

O tipo de país que o Brasil almeja ser no futuro

O governo Lula deu forma definida a um anseio difuso que vinha ganhando corpo no país. Transformou-o num projeto político e nele engajou boa parte da sociedade. E qual será, afinal, a cara desse novo país se Lula for reeleito? Imaginar que teremos superado, daqui a quatro anos, todas as seqüelas do patrimonialismo é patente exagero. Mas é razoável supor que teremos atingido um patamar irreversível rumo a uma sociedade mais dinâmica e democrática. Culturalmente, por mais que os historiadores e antropólogos digam — corretamente, registre-se — que nossas antigas raízes coloniais e escravistas continuam crescendo, o fato é que já mudamos muito. Somos hoje um povo empreendedor e criativo (às vezes até demais!) na vida cotidiana; um povo informal, iconoclasta, sempre propenso a diluir hierarquias rígidas de status ou de função.

O que está em jogo, em suma, é o tipo de país que o Brasil almeja ser no futuro. Vamos continuar sendo uma economia que pega pneumonia ao menor espirro lá fora ou vamos, finalmente, fazer o que precisa ser feito e que há tanto tempo vem sendo adiado: retomar o projeto de delegar ao Estado o papel de principal agente do desenvolvimento? Enquanto esse problema não for resolvido, ele continuará espalhando veneno na sociedade. Se a oposição ganhar, as dificuldades irão se tornar cada vez piores, pois o programa geral de seu governo — pelo menos o que se sabe até agora — prescreve exatamente aquilo que se recomendaria para colocar em desordem qualquer país. Fora disso, todo o resto é conversa fiada.

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