2013 – Qual gigante acordou?

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Manifestantes no Congresso Nacional | Foto: Paula Cinquetti/Agência Senado

Hobsbaw em um curto ensaio sobre a Revolução Francesa, três séculos depois do fato, nos dizia que aquele evento ainda estava em análise. Quem sou eu pra questionar o mestre. Sobre 2013 no Brasil – este, microscópico, perto daquela revolução –, é justo dizer que o fenômeno está ainda em seus inícios. A história irá dando suas sentenças. Acredito, porém, que entender o Brasil conjuntural de hoje passa por compreendermos o melhor possível o que aconteceu naquele pico de 2013, suas causas e consequências visíveis. Erros grosseiros ou insuficiências nesta análise causam danos também grosseiros no posicionamento político para tratar as questões do hoje e do futuro breve, no mínimo.

Tenho lido e ouvido alguns intelectuais que influenciam posições políticas no campo da esquerda a respeito. Há muita confusão a meu ver e, pior, muitas certezas com fortes indícios de fragilidade. Tudo é muito recente e é normal mesmo tanta confusão. Mas como o mundo gira e a conjuntura está em construção rápida e permanente, e o caos já está instalado entre nós, errar demais não é uma opção.

Uma das fragilidades que percebo deriva de um talvez preconceito com pensamentos e premissas próximas do que se convencionou chamar de pós modernidade. E abstraio aqui um antipetismo que reside nas esquerdas mais radicais e que constrói hipóteses que sempre desembocam na culpabilidade do PT no poder.

Um certo marxismo tem preconceito ainda com tudo que passe perto de pós modernidade. Confesso que eu também tinha, e via as explicações para os fenômenos sociais e políticos sempre a partir de uma lógica quase exclusivamente econômica, das condições materiais de vida das pessoas. Resolvi isso quando finalmente consegui mergulhar numa obra do David Harvey, A Condição Pós Moderna, que trata do fenômeno da compressão do tempo e do espaço como algo que se desenvolve concomitantemente com as forças produtivas, com a ciência e as tecnologias, e comprime assim também o tempo de síntese do pensamento, do conhecimento e da consciência social. O passar do tempo é uma máquina de intensificação cada vez mais rápida da nossa comunicação.

Me parece que se isso não for levado em conta pra 2013 podemos acabar superdimensionando a culpa da presidenta Dilma e do PT naquele processo. Erraram muito e tudo que podiam, é inegável. Mas os desdobramentos que percebemos hoje, quase uma década depois, mostram que o buraco era e é bem mais embaixo. O PT no poder tem responsabilidade solidária no processo, não mais do que isso.

Num outro “extremo”, há uma linha de argumentação que culpa a “elite do atraso”, um golpe que foi construído, misturando guerras híbridas, Lava Jato, o papel golpista da grande mídia empresarial. Teve isso também, me parece inquestionável. Quem faz política e disputa poder, não vai deixar de disputar qualquer desequilíbrio no status quo, no tatame da luta política, e vai buscar influenciar os resultados.

Mas de onde vejo, não se leva em consideração, nesses dois polos de análise, que a antessala daquela conjuntura de 2013 foi uma revolução na comunicação entre as pessoas. Tanto assim que pode-se dizer que o fenômeno de movimentações similares se deu em todos os quadrantes do planeta.

Os vinte centavos no Brasil, estopim daqueles atos, foi um pobre na Tunísia a imolar-se numa praça e dando início ao que se passou a chamar de primavera árabe. O fenômeno do fortalecimento da extrema direita em todo o mundo, em quase todos os países da Europa, a própria vitória de Trump nos EUA, falam em favor da hipótese de que uma consciência social atrasada e de pouca relevância política, e até então soterrada por séculos de esforço civilizatório, se sobressaiu e se organizou politicamente.

2013 no Brasil, há fortíssimos indícios, foi o grito de um senso comum residente em uma maioria de anônimos até então dispersos e cuidadores de suas demandas individuais e egocêntricas, no melhor estilo liberal tosco. Quem foi às ruas naqueles atos viveu e percebeu o que unificava aqueles espíritos em maior número: sem bandeiras, sem faixas, sem partidos, sem organizações, sem políticos, sem nada que expressasse coletividade organizada. As papelarias esgotaram seus estoques de cartolina. Todos queriam “tuitar” sua posição individual no seu “post” autoral nas ruas. Tinha gente rica, muita classe média, pessoas do povo, até pessoas progressistas gritando “sem partido, sem bandeiras”, pois a coletividade organizada na política significava roubar-lhes o direito de progredir com suas individualidades.

Então, acredito que, sem prejuízo das muitas análises honestas que circulam, que acho que ajudam a ir desvendando o que de fato aconteceu, precisamos trabalhar seriamente com a hipótese de que naqueles eventos de 2013 realmente “o gigante acordou”, como muitos diziam. E o gigante era um senso comum adormecido, preconceituoso, homofóbico, racista, misógino, violento, avesso a direitos humanos, à ecologia, individualista, que quer ficar rico e se dar bem e está convicto que a soma desses egoísmos gera um bem comum.

Esse senso comum é como um “gênio da lâmpada” que foi liberto e está por aí a fazer peripécias, indomável, e se encontrou e se materializou naquilo que temos hoje na presidência da República. Bolsonaro é o representante legítimo desta base social.

Isso nos impõe a reafirmar o que antes era óbvio. Estamos numa luta civilizacional no campo político, institucional e no campo ideológico. Botar este gigante pra dormir de novo exigirá muita unidade, paciência e administração de aparentes contradições. O céu não está perto, e o inferno está bem aqui debaixo dos nossos pés.

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