100 anos de “A doença infantil do esquerdismo no comunismo”,* de Lênin

A teoria n’o “Esquerdismo” transpassou o impacto, e o sentido dos descobrimentos teóricos científicos na caracterização dos novos estágios alcançados pelo capitalismo dos monopólios, confluindo à 1ª Guerra Mundial.

Esse formidável escrito de Lênin se dá nos marcos do pleno amadurecimento político e combates inéditos da situação pós-revolucionária da Rússia de 1917. As ideias ali contidas revolvem, principalmente, os dramáticos episódios do “Tratado de Brest-Litovski” (1918), e aparece antes do principal período de desfecho da “Guerra Civil” (1917-1921).

Noutras palavras, seu livro é peça central na constituição da teoria leninista da transformação revolucionária do capitalismo, em particular na elaboração da arte da estratégia e da tática. Não à toa sua primeira edição tinha o seguinte subtítulo de Lênin: “Tentativas de uma exposição popular da estratégia e da tática marxistas” – aclaramento este excluído da segunda edição.

Escrito entre abril e maio, mas publicado em junho de 1920, tendo sido sua composição e impressão acompanhado na tipografia pelo próprio autor, “O esquerdismo”, como é conhecido, saiu em julho simultaneamente em francês e inglês, em Moscou.

O principal objetivo da temática abordada por Lênin se voltava para fundamentar aos delegados (169 com direito a voto, de 37 países) sobre o pano de fundo das discussões do II Congresso de Internacional Comunista realizado entre 19 de julho e 7 de agosto. Como lembrou Luciano Gruppi, [1] o II Congresso da IC se debruçou sobre três linhas gerais:

1) efetivar a compreensão de que a ditadura do proletariado era um princípio, incompatível com ideias conciliadoras de classe na defesa do projeto socialista. 2) Compreender a questão colonial como Central, fruto mesmo dos desdobramentos da 1ª Guerra Mundial, da enorme concentração monopolista determinadora das disputas pela dominação imperialista global.

3) Derrotar a concepção do esquerdismo, contraria à participação na luta parlamentar e nas instituições do capitalismo, assim como a recusa da utilização dos espaços legais da ordem burguesa para atuação.

Portanto – arremata Gruppi – a luta contra os extremos do oportunismo, se articula com questões estratégicas do poder de Estado e contra o colonialismo (idem, p. 280).

Dialética e política

A teoria n’o “Esquerdismo” transpassou o impacto, e o sentido dos descobrimentos teóricos científicos na caracterização dos novos estágios alcançados pelo capitalismo dos monopólios, confluindo à 1ª Guerra Mundial. As agruras da Revolução de Outubro de 1917 se espraiaram com as derrotas da esperada revolução internacional. Urgia, portanto, com centralidade, vasculhar descobertas dos caminhos táticos à construção dos movimentos e viragens estratégicas para a revolução; remover obstáculos.

A quase ‘obsessão’ – interpretara Nadeja Krupskaia, sua companheira – de Lênin para a busca da revolução o instigava a encontrar soluções, resoluções, digamos, no sentido dos aportes teórico e político prático mais avançados. Por isso necessitava-se alargar as dimensões da ciência social marxiana: como Engels, foi a vida inteira avesso e travou intenso combate à petrificação da teoria marxista. Marxismo como “Guia para ação”, simplificava Engels.

Um exemplo marcante: num dos momentos cruciais antecedentes à Revolução de Outubro, ensinou-nos, por exemplo, Vladimir Lênin:

“O erro maior que podem cometer os revolucionários é olhar para trás, para as revoluções do passado, enquanto a vida nos oferece toda uma longa série de elementos novos, que é necessário incorporar ao quadro geral dos acontecimentos”. [2]

A visão política leninista é a da recusa explícita do “retrovisor” histórico, em sua versão congelante das leis de movimento das lutas de classes. É crítica severa da aceitação formal das novas situações criadas, entretanto autosatisfeitas em slogans, clichês principistas. A propósito, conforme interpretação – uma lição, ademais – brilhante de Lênin, [3] bem após 1917 e em meio à guerra civil,

“Os princípios não são um objetivo, nem programa, nem tática, nem teoria. A tática e a teoria não são princípios”, afirmando a seguir que princípios do comunismo, efetivamente, são “a ditadura do proletariado e a usar a coerção estatal” durante a transição – mas “não seu objetivo”.

Crítica do revolucionarismo: duas dimensões

Observe-se, en passant, que a elaboração leninista sobre a temática do “esquerdismo” é anterior a publicação do livro aqui analisado. Notadamente em “Acerca do infantilismo ‘de esquerda’ e do espírito pequeno-burguês’” (maio de 1918), Lênin pôs no centro de sua crítica as posições doutrinaristas de N. Bukharin e a turma dos “comunistas de esquerda”, agrupados em torno da revista “Kommunist”. [4]

Por isso também, Domenico Losurdo revisitou recentemente a luta constante de Lênin contra as proclamações enrijecidas, pretextando princípios. Trata-se da “frase revolucionária”, dizia-o Lênin, altissonante e oca. Todo movimento que queira pensar e agir politicamente, sem “embalar-se nas palavras, nas declamações e nas exclamações”, deveria desvencilhar-se de tal fraseologia e permanecer em constante vigilância contra ele, completa o filósofo marxista italiano. [5]

Assim, numa primeira dimensão, enfrentando problemas políticos de grande envergadura, a temática do livro “Esquerdismo” foi sintetizada com clareza no estudo de Renato Rabelo “O tempo, a finalidade e o alcance da obra Esquerdismo, doença infantil do comunismo” (2004). Onde cinco questões ganham destaque.

1.Lênin concebia rigorosamente a diferenciação dos processos revolucionários (período histórico, circunstâncias, lugar determinado), “sublinhado sua originalidade, e considerando suas mediações históricas”. Referia-se aos traços fundamentais da revolução bolchevique, sendo “erro gravíssimo” (Lênin) generalizar ou extrapolar seus traços. [6]

2. É condição indispensável para a definição precisa da tática política a correlação concreta de forças nos determinados momentos da luta de classes, e só assim se pode desvelar o nível da batalha em seu movimento (Rabelo, idem, p. 20). G. Luckács examinara essa questão. [7]

3. As alianças são imperativas ao êxito da luta revolucionária, em especial por haver grande diversificação entre as frações classes na sociedade capitalista, estratificação que se modificam em diferentes países (natureza, cultura, tradição de lutas, consciência social). Os conflitos inter-burgueses precisam ser explorados, reforçando a ideia de Lênin de que as alianças são “extremamente preciosas” por mais “precárias” que sejam (Rabelo, idem, p.21).

4. As formas de organização e luta não estão pré-definidas nos processos das lutas políticas e revolucionárias; várias formas precisam ser dominadas. É explícito o vaticínio de Lênin: a história das revoluções, em particular, “é mais viva e mais astuta do que imaginaram os melhores partidos”. (Rabelo, idem, p.22).

5. A revolução torna-se impossível sem uma crise nacional e geral, mobilizadora de suas classes sociais principais; sem uma rápida e imensa ampliação da atividade política, imersa numa conjuntura mundial de fortes desequilíbrios (Rabelo, idem, p.23). [8]

E como bem interpreta – e desenvolve – Rabelo,

“(…) é preciso distinguir entre o compromisso que é capitulação diante da hegemonia adversária, renúncia da própria autonomia política, e o compromisso que se tornou indispensável em função do nível de forças em luta, a fim de preservar as fileiras e conseguir avançar, apoiando-se nas forças possíveis de serem unidas” (Ibidem).

Mas há uma segunda dimensão crucial que se expressa naquela obra de Lênin. O “Esquerdismo” não somente impactou o II Congresso da Terceira Internacional, como desdobrou-se em orientação aos III (1921) e IV (1922) congressos, por inspirar as ideias da política de “frente única”.

De fato, em 1921, num episódio revelador, outro partido comunista alemão, o Partido Comunista Unificado da Alemanha lançara uma “Carta Aberta” convocando às duas correntes socialdemocratas, ao citado (e sectário) POCA e aos sindicatos, à unidade em torno de abrangente plataforma democrática e por direitos. Enquanto G. Zinoviev (presidente do Comitê Executivo Internacional da IC) e N. Bukharin, especialmente, se manifestaram contra a “Carta”, Lênin a apoiou francamente. Para Lênin, a tática exposta na “Carta” era “completamente correta”, um “passo político exemplar”, e “um método prático para atrair a maioria da classe operária”. [9]

Foi ainda no II Congresso da IC que a tática da “frente única operária” foi consagrada, diretamente dirigida pelas ideias leninistas. Segundo Lênin, [10]

“O objetivo e sentido da tática de frente única, assim como os métodos para conseguir a unidade de ação da classe operária consiste em incorporar na luta contra o capital uma massa operária cada vez maior, sem negar-se a propor reiteradamente travar em comum esta luta aos próprios chefes das Internacional II e II e1/2” [Socialdemocratas].

O que se fortaleceu mais ainda no IV Congresso (1922), numa reafirmação, desta feita com a ascensão do fascismo na Itália. Como sublinha G. Fresu, [11] a viragem da situação internacional levou à “guinada” para a política de “frente única” entre as discussões “essenciais” do III ao IV congresso da Internacional Comunista.

Heranças do leninismo

Como se disse, os 100 anos do “Esquerdismo”, de Vladimir Lênin integram o rico legado do leninismo. Uma teoria da revolução social, seus elementos centrais são convergentes a quatro dimensões teóricas estruturais: a) contribuições ao desenvolvimento do materialismo dialético de Marx-Engels; b) sistematização de novas leis de movimento do regime do capital (e teoria do imperialismo, e do desenvolvimento desigual); c) aportes a novas sínteses da teoria de partido, notadamente a desafios organizativos, da tática e da estratégia revolucionárias; d) uma nova teoria da transição ao socialismo.

No terreno particular da ciência política, as lições do “Esquerdismo, portanto, revelam que o leninismo se obriga a ser contemporâneo: do contrário nada teria a ver com sólidos fundamentos teóricos de uma ciência social – em meio a um crescente aparecimento de inúmeras outras e ramos nessa esfera –, e em permanente captura dos novos fenômenos históricos, em todos os terrenos. Teoria para desvencilhar-se do escolasticismo de todo o tipo, limpando “estrebarias” teóricas confusionistas ao movimento revolucionário. Desafios multiplicados nos dias que correm.

O título da tradução das Obras Completas de V. I. Lénine, da 5ª edição em russo, tomo 41.

NOTAS

[1] Ver: “O pensamento de Lênin”, L. Gruppi, São Paulo, Graal, 19679, p.276.

[2] Em: “Conferencia del POSDR (b) de la ciudad de Petrogrado, 27 de Abril-5 de Mayo de 1917”, V. Lenin, Obras Completas, Akal, Tomo XXV, p. 65.
[3] Ver: “Discurso en defensa de la táctica de la Internacional Comunista (1 de julio de 1921), in: Obras Completas, Tomo XXXV, Akal, p. 372.

[4] A imperiosa questão da Paz em Brest-Litovsky, a NEP (“Nova Política Econômica”), e a transição para o socialismo motivaram as contundentes respostas e críticas de Lênin a artigos da revista. Lênin cita, por exemplo:

“No decurso da Primavera e Verão próximos – escrevem os ‘esquerdas’ nas suas teses – deve começar a derrocada do sistema imperialista que, no caso de vitória do imperialismo alemão na atual fase da guerra, só poderá ser adiada e se exprimirá ainda em formas mais agudas”.

Responde Lênin: “É próprio de criança ‘compreender’ a ciência como se ela pudesse determinar em que ano, Primavera e no Verão ou no Outono e no Inverno, ‘deve começar a derrocada’” (Op. cit. Em: O.E. v.2., Lisboa, Avante!, 1981, p. 393).

[5] Ver: “A luta contra a ‘frase revolucionária’ e a refundação marxista e comunista”, D. Losurdo, em: Crítica Marxista, nº12, 2001.

[6] Em: “Lênin: presença da revolução”, Barroso. A.Sérgio (org.), São Paulo, Fundação Mauricio Grabois/Anita Garibaldi/SAL (Sociedade dos Amigos de Lênin), 2017, p.18.

[7] Num Posfácio de 1967, de “Lenin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento” (Boitempo, 2012, p. 106), acerca da unidade do pensamento do revolucionário russo, Luckács retoma uma ideia crucial para o marxista Lênin: a análise concreta da situação concreta não constitui nenhuma oposição “à teoria pura”, mas ao contrário, o ponto culminante da autêntica teoria, o ponto em que a teoria “é verdadeiramente realizada”, transformando-se por esta razão “em práxis”.

[8] É famosa a enfática afirmação de Lênin, exatamente nos Capítulo “Nenhuns compromissos?”, dirigida diretamente ao Partido Operário Comunista da Alemanha:

“Não é possível que os esquerdas alemães ignorem que toda a história do bolchevismo, antes e depois da Revolução de Outubro, está cheia de casos de manobra, de conciliação e de compromissos com outros partidos, incluindo os partidos burgueses!” (“A doença infantil do esquerdismo’ no comunismo”, Lisboa, Avante!, 1977, p. 30).

[9] Informações e opinião de Lênin em: “A Internacional Comunista – I Volume”, Lisboa, Avante! 1976, pp. 136-145. Os “esquerdistas” (alemães, checos, italianos, franceses, húngaros e austríacos) propuseram uma tática chamada de “teoria da ofensiva”. Em Março de 1921 a derrota da insurreição alemã demonstrara, entre outros, o erro trágico das posições da tal “teoria da ofensiva”.

[10] Ver: “A Internacional Comunista – I Volume”, idem, p.191.

[11] Ver: “Antonio Gramsci, o homem filósofo”, São Paulo, Boitempo, 2020, p.138.

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