Brasil precisa de uma estratégia comercial clara e objetiva

É na grande economia centrada na China, no próprio BRICS e nos países membros da Organização para a Cooperação de Xangai que moram as possibilidades de futuro

Como de praxe volto a discutir um pouco sobre o lugar do Brasil neste mundo em profundas transformações. No essencial minha opinião pouco mudou em relação ao que tenho escrito e falado em apresentações e palestras. Em resumo, abre-se diante do Brasil uma grande possibilidade de nos reorganizarmos em duas mãos. A primeira, transformando nossas commodities em ativos estratégicos; a transformando em força para negociar imensos projetos com a República Popular da China, núcleo da “Nova Economia do Projetamento”, formação econômico-social orientada ao socialismo, exportadora de bens públicos e novo centro de gravidade do mundo. É aí que entra a segunda mão: precificar nossa volta ao mundo, usando uma estratégia clara de reindustrialização como conceito-chave desta “volta”. Daí entra uma necessidade nodal de nossa época na planificação do comércio exterior.

O que a mim é óbvio, ainda padece de compreensão entre os “formadores de opinião” e mesmo dentro do governo. Não, somente a questão da reindustrialização que tem comparecido de forma difusa em discursos aqui e acolá e que ainda não se manifesta sob forma de um grande plano. Neste sentido, importamos de forma acrítica noções como “transição energética” e “mudança climática” e isso tem servido para obliterar questões mais de fundo de soberania nacional. Aqui mora a grande questão: as noções de “transição energética” e “mudança climática” devem ser parte de uma totalidade e não partes que se confundem com o todo.

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A nossa soberania nacional está em questão desde o momento em que nossas infraestruturas físicas passaram a ser um ponto de estrangulamento profundo ao nosso desenvolvimento. Ao observarmos a volta de um chamado “regionalismo” (política de incentivos fiscais, por exemplo), que deveria estar na lata de lixo da história desde a década de 1950, veremos isso parte como resultado de uma saída econômica que as unidades da federação perceberam desde a destruição de nosso pacto federativo (FHC), a transformação do governo central em um emprestador tão cruel como o FMI e a incapacidade de surgimento de novos esquemas de divisão social do trabalho no Brasil como consequência de nossas infraestruturas destruídas. A revolução burguesa no Brasil deverá ser reconstituída e a reunificação de nosso território econômico deve ser o marco zero (como foi na história do capitalismo desde a revolução industrial e suas “vias prussianas”) deste processo e pré-condição a uma abordagem brasileira, não importada, sobre as noções de “transição energética” e “mudança climática”.

O imbróglio brasileiro – fruto de um profundo retrocesso que se inicia com uma tempestade semiótica (profunda guerra híbrida) que tem questionado nossa coesão nacional, elevado ao grau máximo a fragmentação de nosso tecido social desde 2013, destrói as joias da coroa de nossa indústria pelas mãos do Departamento de Estado e de Justiça dos EUA e da famigerada Operação Lava-Jato e que ganha força com o golpe de 2016 – passa pela apreensão da fragilidade de nossa situação e o risco de nosso desintegração caso uma resposta rápida não seja dada e uma leitura sofisticada das mudanças em curso no mundo desde a invasão dos EUA ao Iraque em 2003, a crise de 2008 e o presente conflito na Ucrânia. Existe uma totalidade pouco percebida entre o “interno” e o “externo”.

Nos últimos 20 anos a unificação do território econômico chinês sacudiu a economia internacional, pois dela derivou um intenso processo de urbanização e consolidação deste país como uma potência industrial (maior parque manufatureiro do mundo), comercial (maior parceiro comercial de 140 países) e financeira (maior credor líquido do mundo e operadora de uma globalização alternativa à financeira – “Iniciativa Cinturão e Rota). Isso por si já é suficiente para uma necessária comparação com o impacto ao mundo do surgimento de uma imensa economia nacional unificada na América do Norte no último quarto do século XIX. Não podemos falar em capitalismo no mundo sem atentarmos a este processo. Mas o conflito na Ucrânia força um imenso reposicionamento de posições no mundo que envolve desde a periferização da Europa até a incorporação da Rússia ao território econômico chinês, sendo este último movimento o mais profundo deslocamento de placas tectônicas no mundo nas últimas décadas. Talvez, conforme Xi Jinping a Putin, “nos últimos 100 anos”. Há pouco mais de 100 anos explodia a Revolução Russa, mãe da Revolução que está transformando a China e o mundo até hoje…

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Uma imensa economia nucleada pela China e composta, além da Rússia, pelos países que compõem a Organização para a Cooperação de Xangai. Esta organização que conta com 26 países teve em 2021 um comércio “entre si” a ordem de US$ 6,6 trilhões. Seus seis membros plenos são responsáveis ​​por 60% da massa de terra da Eurásia e sua população é de um quarto do mundo. Com os Estados Observadores incluídos, suas afiliadas respondem por cerca de metade da população do mundo. O fenômeno recente de “desdolarização” tem entre os membros desta organização seu núcleo, incluindo a Arábia Saudita e a República Islãmica do Irã – países estes que retomaram relações diplomáticas sob o patrocínio da China, aumentando o isolamento dos EUA no Oriente Médio. Eis o novo núcleo da economia internacional e é para essa região do mundo para onde o Brasil deve dispender energia, criatividade e pensamento estratégico.

Uma estratégia comercial clara e objetiva deve estar no escopo de nosso país para essa região. Ao lado disso, a chamada “greenfield strategy” é fundamental e as condições geopolíticas especiais que o Brasil goza deve servir de parâmetro a uma entrada negociada na “Iniciativa Cinturão e Rota”. O propósito fundamental desta “entrada negociada” deve ser o objetivo estratégico de reindustrialização via troca de commodities por infraestruturas com transferência de tecnologias com os chineses, o que exigirá a construção de uma complexa plasticidade institucional, demandando da inteligência nacional brasileira seu limite máximo de elaboração intelectual. A substituição do dólar pelo yuan e o real nas relações comerciais com a China (que poderá ser via moeda única dos BRICS, por exemplo) é um imperativo à planificação do nosso comércio exterior, porto seguro dos perigos cada vez maiores em torno do dólar. Sobre a reação dos EUA a esses possíveis movimentos estratégicos, nada além do convencional. Eles não ficarão esperando sentado o capítulo final desta ordem de acontecimentos: patrocinaram o golpe de 2016, colocaram Lula na cadeia e poderão ir mais longe.

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Por fim, fala-se muito na diplomacia na necessidade de uma equidistância brasileira em relação à China e EUA. Não concordo. Fundamental alimentar ótimas relações com os EUA, inclusive de cooperação em diversas áreas. Mas a realidade demonstra que é nessa grande economia centrada na China, no próprio BRICS e nos países membros da Organização para a Cooperação de Xangai que moram as possibilidades de futuro. Um futuro onde caberá ao Brasil um lugar de destaque ao lado – nem abaixo, nem acima – da China. A visita última de Lula à China e, principalmente, a posse de Dilma Roussef como presidenta do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) são fortes sinais. O futuro do Brasil também passa por um rearranjo da ordem financeira internacional e o Sul Global deve ter seu próprio plano para esse processo. O NDB, como foi e são, o FMI e o Banco Mundial, deve ser o núcleo estratégico da criação de ideias sobre esse novo arranjo financeiro internacional. Emmanual Macron está se adiantando a isso o que pode provocar uma terceira onda colonial mundo afora (1)

Referência:

(1) Summit for a new global financial pact: towards more commitments to meet the 2030 agenda? Focus 2030. 02/02/2030. Disponível em: https://focus2030.org/Summit-for-a-New-Global-Financial-Pact-towards-more-commitments-to-meet-the-1030

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