Portugal celebra Revolução dos Cravos para não esquecer a miséria fascista

O 25 de abril ganha um forte simbolismo para os portugueses, enquanto o presidente Lula, que derrotou o golpismo bolsonarista, visita o país europeu acompanhado do premiado compositor Chico Buarque.

Como em outras partes do mundo, os portugueses que celebram os 49 anos da Revolução dos Cravos, neste 25 de abril de 2023, lutam, mais do que antes, contra a mentira. No mundo da pós-verdade e das plataformas de fake news, o revisionismo que menospreza o significado da Revolução de Abril e abranda a gravidade do fascismo é o tema mais atacado na política progressista portuguesa.

Frente à Assembleia portuguesa, havia quem viesse aplaudir o presidente brasileiro Luis Inácio Lula da Silva, e os partidários da extrema-direita do Chega, que protestaram contra sua presença. Mas o que falou mais alto foi a celebração do dia da liberdade em Portugal, passados 49 anos do 25 de Abril.

“Chega de degradarem as instituições! Chega de porem vergonha no nome de Portugal”, declarou o presidente da Assembleia, Augusto Santos Silva, contra a gritaria dos deputados do Chega.

Chico Buarque

O compositor e escritor Chico Buarque também teve seu papel na semana do 25 de Abril. Ao receber finalmente, três anos depois, no Palácio Nacional de Queluz, o Prêmio Camões por suas obras literárias. Um símbolo pelo orgulho que os lusitanos têm de falarem a mesma língua cantada e proseada por Chico. 

O autor de Tanto Mar, com seus versos de celebração pela Revolução do outro lado do oceano, não podia deixar de tratar das ameaças da atualidade. Aproveitando a turnê por Portugal, Chico é aguardado nos palcos do 25 de Abril.

No seu discurso, em véspera do aniversário do fim da ditadura em Portugal, Buarque agradeceu aos presentes e disse se sentir reconfortado pelo ex-chefe de Estado brasileiro, Jair Bolsonaro, não ter “sujado” o diploma com a sua assinatura. E deixou ainda um alerta: “a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda a parte”.

A ameaça da guerra é vocalizada por Lula como uma ameaça a todos os trabalhadores do mundo. A despeito do silêncio em torno do esforço pela paz, e do estímulo para o fomento da guerra, ele não podia deixar de ressaltar o caráter pacifista da Revolução dos Cravos.

Para que não restem dúvidas, Lula ressalvou também que o Brasil condena a invasão russa da Ucrânia, mas procura reunir países em nome de convencer as partes a sentar-se à mesa de negociação.

“Nunca igualei os dois países porque sei o que é uma invasão e o que é integridade territorial. Todos nós achamos que a Rússia errou e já condenámos isso em todas as decisões da ONU, mas penso que a guerra já começou e agora precisa parar. Para isso, é preciso haver alguém disposto a conversar”, disse.

Marcha pela Liberdade

A tarde do Dia da Liberdade começou para muitos na rotatória do Marquês de Pombal, em Lisboa. “Somos muito, muitos mil para continuar Abril!”, ouve-se em toda a avenida. No Porto, no Largo Soares dos Reis (em frente à antiga sede da polícia política da ditadura), a marcha também reúne milhares com palavras de ordem que ressoam até à Avenida dos Aliados. Em ambos os palcos de manifestação, se ouve Chico Buarque e a inevitável Tanto Mar, como também o Fado Tropical.

O desfile, que acontece todos os anos para celebrar os valores de Abril, conta com a participação de várias estruturas da sociedade civil, como a Associação 25 de Abril, a União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), o Movimento Vida Justa, o Movimento Democrático de Mulheres (MDM), o Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e Pela Paz no Médio Oriente (MPPM), bem como as centrais sindicais – CGTP e UGT.

O Chega, que sempre recebe muita atenção da imprensa, certamente não participou. Mas são vários os partidos com representação parlamentar a marcar presença na marcha: o Partido Comunista Português, o Bloco de Esquerda, o PS, o BE, PAN e Iniciativa Liberal (que se volta a juntar à marcha depois de dois anos a descer a avenida num desfile à parte).

Disputa pela história

Portugal enfrenta a austeridade econômica às custas do sofrimento do trabalhador, sob a alegação de que não há alternativa possível. A mesma retórica neoliberal derrotada em tantos momentos pela luta popular. Isto está refletido nas marchas do 25 de abril.

Para que se convença o povo da falácia do pensamento único dos ajustes fiscais intermináveis, é preciso que esqueçam o sonho de Abril. Por isso, a marcha e seus discursos estão sempre relembrando os valores da Revolução dos Cravos. 

Em sua intervenção no almoço comemorativo, Paulo Raimundo, secretário-geral do Partido Comunista Português (PCP), enfatizou a celebração do “ato libertador que pôs fim à longa noite fascista, de 48 anos de miséria, analfabetismo, prisões, torturas, morte, colonialismo, guerra”.

Ele destacou que foi este regime fascista do Salazarismo, que esteve alinhado com o fascismo internacional, deu as mãos ao imperialismo, “e foi por essa mão que Portugal se tornou membro fundador da OTAN”, disse, em crítica à guerra na Ucrânia.

“Hoje, tal como ontem, é fundamental saber e dar a conhecer o que foi o fascismo, numa altura em que não falta quem o tente apagar, adulterar ou adocicar, reescrevendo a História com a maior desfaçatez e sem qualquer pudor”, enfatizou.

Para ele, o 25 de Abril não é daqueles que o atacaram e atacam, que se empenharam e empenham para que a Revolução não se cumpra. “Abril não é dos que limpam a imagem do fascismo”, afirmou.

Ele lembrou que as comemorações de Abril são frequentemente atacadas pela direita, que “não se cansa de tentar condicionar”. “Este ano não é excepção. Pois só torna ainda mais claro o que já era evidente: que lidam mal com a democracia, lidam mal com um País soberano e com voz própria, lidam mal com quem defende a causa da paz, e sim, lidam mal com o 25 de Abril”, declarou, enfatizando esta como a questão central.

Ele pontuou os enormes avanços da revolução para o povo português, assim como os retrocessos da contrarrevolução. “O 25 de Abril é dos seus construtores e tal é a sua força e a da validade do seu projeto, a profundidade das suas conquistas, que décadas de contra-revolução e de política de direita ainda não conseguiram, nem vão conseguir destruir”, salientou.

Na atualidade, Paulo criticou o Governo por tentar revisar a Constituição de 1976, em vez de cumpri-la. Também criticou retrocessos como as privatizações, o apoio à guerra, a precarização dos serviços públicos, os baixos salários, a especulação imobiliária, a inflação de alimentos, e o programa de estabilidade (ajuste fiscal). Mas lembrou, também, como a pressão popular sobre o governo foi capaz de desmentir o argumento da austeridade e garantir aumento das pensões e dos salários.

Ontem, na Assembleia da República, o deputado do PCP, Manuel Loff também reafirmou a atualidade da Revolução portuguesa. Para ele, ela não é feita simplesmente de memória. “Muito pelo contrário: quando dizemos 25 de Abril sempre! estamos a dizer que não renunciaremos em cada dia que passa ao que se conquistou em Abril – direitos, liberdades e garantias cívicas que não aceitaremos nunca mais ver restringidas. O direito a defender publicamente os nossos direitos enquanto cidadãos e trabalhadores, a nos manifestarmos livremente para o fazer. O direito a defender a paz contra a guerra, hoje como há 50 anos. O direito a dizer, hoje como então, Fascismo nunca mais!”

De acordo com o deputado comunista, a democracia está novamente ameaçada pelo fascismo, “de cuja sombra nos julgávamos ter libertado por todo o mundo há 80 anos, ou, justamente, há 49 anos em Portugal”. 

“É ilusório julgarmos que o assalto da extrema-direita fascista está a fazer ao poder deixa incólume a democracia. O exemplo da luta que os democratas brasileiros tiveram de travar para, graças à extraordinária persistência humana do Presidente Lula da Silva que aqui esteve presente esta manhã, derrotar o que foi a maior ameaça, absolutamente real, contra a democracia brasileira desde o fim da ditadura civil-militar, diz bem dos perigos que a extrema-direita representa”, concluiu. 

No Parlamento Europeu, a deputada comunista Sandra Pereira também destacou o caráter antifascista da Revolução de Abril. Pois, foi na madrugada do dia 25 de Abril de 1974, “que se pôs fim à longa noite fascista que durante 48 anos oprimiu Portugal e os portugueses”.

“Uma ditadura criminosa que reprimiu, censurou, prendeu, torturou e assassinou muitos daqueles que a ela ousaram opor-se, particularmente os comunistas”, discursou.

Ela também reafirmou os gritos da luta que marcha pelas ruas de Portugal. “Igualdade, liberdade, democracia, não são palavras vãs: são o presente e o futuro para cumprir e defender. 25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!”

Apesar dos motivos de contestação, evidentes nas faixas que se espalham pelas avenidas das metrópoles portuguesas, vive-se um ambiente de festa nos desfiles. Muitos são os que saíram à rua com família e amigos, com cravos na mão ou ao peito, para celebrar a liberdade. Alguns erguem cartazes onde se pode ler mensagens como “Viva o poder popular”, “Fascismo nunca mais” e “Menos ódio, muito mais fraternidade”. 

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