“Ajuste mais perverso da economia”, diz presidente da Abdib sobre teto de gastos

Em entrevista ao Estadão, Venilton Tadini defende mudanças na taxa TLP (taxa de longo prazo) e no aumento da participação do BNDES nos financiamentos de infraestrutura

O presidente da Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), Venilton Tadini | Foto: reprodução/Canal Energia

O economista Venilton Tadini, presidente da Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), é um crítico da falta de investimento estatal na infraestrutura brasileira. Em entrevista ao Estadão, ele argumenta que alguns projetos não são viáveis ​​economicamente apenas com a iniciativa privada, e que o avanço do setor depende do investimento público.

Tadini também é contra o teto de gastos, instituído em 2017 pelo então presidente Michel Temer (MDB), que tem prejudicado os investimentos do governo nos últimos anos, afirmando que é “o ajuste mais perverso que existe numa economia, porque você está acabando com seu capital fixo para o potencial de crescimento futuro”. No entanto, ele está otimista com a nova proposta de controle de gastos públicos apresentada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e acredita que será possível voltar a investir.

O executivo também destaca a importância da participação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no financiamento do setor, mas argumenta que é necessário rever a taxa TLP (taxa de longo prazo) adotada nos últimos anos e afirma que a taxa não permite que uma agência de fomento, como o BNDES, tenha um papel anticíclico em momentos de dificuldade.

Esses e outros assuntos serão discutidos na Abdib a partir desta quarta-feira (12), no Fórum 2023 – Avanços na Infraestrutura e Reindustrialização, evento que contará com a presença de representantes do governo e da iniciativa privada.

Leia abaixo trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Como o sr. avalia os primeiros dias do governo em infraestrutura?

Vemos algumas questões positivas. Primeiro é a clareza da forma como é tratada a questão da responsabilidade fiscal, mas sem perder de vista a questão do investimento que havia sido perdido. A gente nunca teve uma queda tão substantiva do investimento público como teve nos últimos cinco anos. Investimento tem de ter caráter de flexibilidade para ser usado como ação anticíclica. E o que nós tínhamos antes era justamente o contrário. Havia um teto onde o investimento era um gasto discricionário e as demais despesas avançavam, corrigida pela inflação, e o investimento era cortado. É o ajuste mais perverso que existe numa economia, porque você tá acabando com seu capital fixo para o potencial de crescimento futuro. Então essa equipe econômica tem a clareza de que investimento é absolutamente fundamental para a infraestrutura e, consequentemente, para a retomada do crescimento.

E o que se pode esperar?

Há uma série de questões que estão sendo avaliadas, principalmente o programa de apoio à transição energética ligada ao processo de reindustrialização. Isso está sendo discutido dentro do BNDES, no Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, no Ministério da Fazenda e no Ministério do Planejamento. O Brasil vai ser um player importante na transição energética, com fontes renováveis e com hidrogênio verde. Isso vai bater na indústria com um novo ciclo de substituição de importações. A Abdib sempre foi a favor de não ter apenas incentivos horizontais para indústria, mas ter incentivos específicos para setores e para produtos. Aliás, nos Estados Unidos, toda parte de eólica e solar está atrelada ao desenvolvimento e industrialização de várias cidades no país, com produtos definidos, como painéis solares. Os Estados Unidos não querem depender da China para ter painéis solares nem da Coreia e Taiwan para ter semicondutores. Política industrial não se faz só pela orientação dos vetores de mercado, principalmente o conceito de indústria nascente, de concorrência internacional. Você tem de ter na partida apoios importantes para desenvolver sua indústria.

O desenho dessa política está em andamento?

Em todas as reuniões em que eu participei com o vice-presidente, que é o ministro de Indústria e Comércio (Geraldo Alckmin), na Fiesp e em todas as reuniões em que eu participei com o presidente do BNDES, isso está absolutamente claro, que essa articulação tem de ser feita. O próprio acordo operacional entre o MDIC e o Ministério de Minas e Energia. Isso está em pleno andamento. Essa leitura da importância de indução do Estado para a articulação de políticas públicas é um resgate fantástico que está sendo feito.

Que infraestrutura esse governo herdou?

Temos coisas e segmentos distintos. No transporte e logística, tivemos um avanço fantástico no programa de participação privada nas estradas federais pavimentada. Só que isso chegou a 20% da malha e dificilmente vai passar de 30%. O que aconteceu com o restante da malha que não foi colocado de forma transparente? É que a malha rodoviária federal pavimentada está depauperada. Se você pegar os dados da CNT sobre qualidade, vai ver que o nível é muito ruim. Então essa questão é que tem de ficar clara, que por mais que você avance e principalmente em questão de rodovias e ferrovias, você tem de contar com a participação do setor público mesmo que seja para induzir PPP. Se você notar, o governo federal não fez PPP porque precisava de contrapartida de recursos do Governo Federal para fazer e não queria colocar dinheiro no orçamento. Então o para fazer PPP você precisa ter recurso do orçamento, você precisa dar a capacidade para o Estado dar essas garantias e colocar recursos nesse projeto.

Isso vale para todos os setores?

Tem alguns segmentos, como saneamento, em que o efeito do novo Marco Regulatório fez a gente ver (concessões) a Cedae no Rio de Janeiro, Alagoas, Pará, Piauí. As coisas acabaram avançando de forma significativa. E ainda tem ainda um grande espaço para o setor privado participar, mas também terá de contar com recursos públicos daqueles segmentos e daquelas empresas Estaduais que não forem de fato avançados para a participação privada. No caso de ferrovia, não dá para fazer projeto estruturante de ferrovia só com setor privado. É um projeto de 12, 15 anos de caixa negativo.

O sr. falou de saneamento, mas na semana passada houve mudança no marco regulatório. Isso não desestimula investimento?

O que é preciso analisar é a peculiaridade do setor de saneamento. Obviamente não foi isso que nós negociamos durante quatro anos. Agora vai depender dessa questão que está sendo regulamentada e da própria iniciativa de governadores estaduais. Alguns governadores independentemente do que ficar estabelecido vão continuar com a participação privada, como Minas e São Paulo. Quando olhar para os índices de qualidade vai ficar fácil comparar. A participação da iniciativa saiu de 6% para 24% e tá chegando a 25%. Vai ficar mais fácil comparar questão de eficiência, índices de perdas, nível de investimento por habitante, nível de coleta e tratamento. Aí é esperar que o bom senso prevaleça.

Hoje o setor tem problemas para contratar empreiteiras?

Tem tido mais problema de engenharia do que de construção. Em construção, mesmo nas grandes empresas, sempre havia o fatiamento e subcontratação das obras. Agora não tenha dúvida de que houve um baque muito grande. Nós tínhamos um segmento com uma inserção internacional forte, que era ponta de lança para exportação de outros bens produzidos aqui no Brasil e isso de fato sofreu. As empresas tiveram realmente muitos problemas e ainda estão tendo. Isso foi um retrocesso na capacidade de inserção internacional dessas empresas. Isso por causa da forma como foram tratadas na Lava Jato. Não houve uma maneira adequada no processo rápido e renegociação, a exemplo do que teve no subprime nos Estados Unidos, onde o Estado entrou e renegociou rapidamente. Lá tem o Chapter 11 (equivalente à recuperação judicial) em que a empresa continua funcionando. Aqui teve um tratamento muito inadequado com o processo produtivo, contra as empresas. Os executivos e acionistas, sem dúvida nenhuma, tinham de ser punidos. Agora a empresa, um patrimônio daquela grandeza, jamais poderia ser prejudicada.

E podemos ter um reflexo disso numa retomada de investimentos?

Eu não vejo tanto isso do ponto de vista de construção, porque as empresas tinham até estruturas internacionais que tiveram de ser desativadas. E, logicamente, há aqui no Brasil outras construtoras que foram se readequando e absorvendo nichos que antes estavam na mão das grande. Então eu acho mais difícil ter impactos na construção. Mas, em função da quantidade de projetos que foram licitados nos Estados, municípios e no governo federal, começa a ter um problema em relação a mão de obra na parte de engenharia do projeto.

Haverá mudanças na participação do BNDES nos projetos?

A primeira coisa é a TLP como indexador geral do BNDES. Isso é um equívoco. Ela não permite que uma agência de fomento, como é o BNDES, tenha um papel anticíclico em momentos de dificuldades, de período de recessão na economia. O Nelson Barbosa tem feito declarações e está atuando no sentido de permitir um leque de indexadores que dê condições de tratamento adequado para projetos de longo prazo e para inovação tecnológica, etc. Para isso, ele está atuando logicamente no segmento de infraestrutura, na reindustrialização. Certamente, vai ter de reduzir a participação no atendimento ao setor agrícola e vai ter de fazer novas captações de recursos para que aumente a participação do banco. Acreditamos que o BNDES deveria, pelo menos, dobrar o tamanho que tem hoje. Ele encolheu demais e essa encolhida realmente não foi boa. Isso é parte do reflexo da própria recessão e parte do reflexo da taxa de juros que a TLP colocou para o banco praticar.

Essa mudança ainda é incipiente?

Não diria isso. Dentro do governo é uma clareza. O BNDES tem de reforçar sua capacidade de financiamento. Eles estão pensando em emitir títulos para fazer essa captação ao mesmo tempo que tem de tornar o custo desses financiamentos viável. Então são dois caminhos que eles têm clareza que têm de seguido. O importante é que a gente ouve isso do Ministério da Fazenda, do BNDES e dos ministérios setoriais. Acho que podemos ter novidade logo. Agora que já definiram alguns pontos importantes, como a questão do controle do gasto público e a importância da reforma tributária. As apresentações dos projetos mostraram que é possível estabelecer condições de flexibilidade, que permita ao País ter condições de investimento não através de um teto geral, que é uma política muito difícil de acreditar numa economia, alguém que possa fixar um teto de gasto independente da composição dele. Nós sancionamos uma estrutura péssima de gastos e ainda deixamos na carteira cerca de R$ 400 milhões de renúncia fiscal. Somos a favor que isso ele termine para vários segmentos. Tem de abrir espaço para investimento novo, para segmentos de atividade que são novos justamente. E isso junto com essa transição energética.

O setor reclama da falta de empréstimo ponto? A retomada disso também está no radar?

Empréstimo ponte para nós era uma coisa equivocada, porque tinha garantia corporativa. Projeto de infraestrutura não tem de ter garantia corporativa. Na realidade, o que a gente tem trabalhado junto com a seguradoras e com o próprio BNDES é para sindicalizar os projetos em que o BNDES entra com a parcela dentro do seu ritmo, mas que se faça a projet finance em que a garantia seja a própria receita derivada do projeto e não garantia corporativa. Essa história de empréstimo ponte é uma questão absolutamente irrelevante. O que é importante é você aprovar o financiamento de longo prazo para o projeto e não deixar o investidor na agonia que aprovar um ponte com garantia corporativa e depois ele não conseguir fazer o longo prazo como ocorreu no ciclo anterior. Eu acho que essa parte tá ultrapassada. Nesse aspecto também houve um avanço grande no tratamento do seguro garantia, na mudança da lei de licitações.

Já tivemos project finance puro no Brasil?

O BNDES já fez dois. E estamos discutindo com eles o avanço disso para que venha a ganhar corpo dentro do banco, com segurança, mitigando toda a estrutura de riscos, aumento da qualidade de avaliação técnica do projeto e isso a gente vem avançando nos últimos anos.

Quais setores devem ter maiores investimentos nos próximos anos?

Saneamento deve continuar em destaque até porque os investimentos das últimas concessões estão começando agora. Então tem muita coisa pela frente ainda. O mesmo ocorre com aeroportos transferidos para a iniciativa privada e rodovias federais e estaduais. A Dutra tem um programa de investimento enorme. Há ainda o programa ferroviário da renovação das concessões das malhas da Rumo e da Vale.

O sr. falou de transição energética. Como fazer para não perdermos esse bonde, sobretudo no hidrogênio verde?

Tem de fazer como foi feito nos outros países, como Alemanha, Estados Unidos e China. O Brasil tem nas fontes renováveis uma base importante para o hidrogênio verde, pois temos energia eólica, solar e biomassa em abundância. Temos de usar essa vantagem comparativa na produção de hidrogênio, inclusive para exportação. Temos de entrar no mercado internacional. Com a nossa estrutura de geração de energia, principalmente elétrica que é mais de 80% renovável, sem dúvida nenhuma, podemos ser um dos principais players do mundo. Para isso não podemos depender das estruturas de cadeias de valor que temos hoje. Na minha visão, vai haver um movimento de recuo no processo de globalização e uma redistribuição dos novos nichos onde a transição energética vai se cruzar com a industrialização. Aí precisa ver quais os produtos e equipamentos serão produzidos aqui. Não podemos ficar dependentes apenas do mercado externo. Se não vai acontecer o mesmo que ocorreu com a vacina. A gente está na ponta para a produção da vacina e não tem o insumo para fazer a vacina, dependemos da China. A mesma coisa com o que aconteceu com a Guerra da Ucrânia e com a paralisação no porto da China em que faltou componentes essenciais para a indústria.

O que é preciso para mudar?

Ter de ter planejamento, estratégia, desenvolvimento, política pública e tem de ter clareza. Esse setor será apoiado para desenvolver esse produto. Tem de ter prazo e metas. O problema que a gente tem no Brasil é que começa um incentivo no setor, não se cobra nada e vai se renovando. Em função de questões macroeconômicas, torna-se uma estratégia de assistencialismo para o setor não sofrer mais. Não uma estratégia de desenvolvimento. Isso a gente precisa mudar. Quanto tempo a gente não ouve falar de política industrial? A última que teve foi o PSI, que foi genérica. O conceito da política industrial está certa, a execução não. E precisa sim de tratamento de conteúdo local. Isso não é palavrão. Isso é feito na Alemanha, na Ásia, nos Estados Unidos. E tem gente que acha que essas coisas o mercado resolve com a eficiência da mão invisível. Não é assim que funciona, principalmente em indústria e setores de alta tecnologia.

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