Estudo resgata papel central dos negros na Guerrilha do Araguaia 

Em entrevista ao Vermelho, historiador Janailson Macêdo Luiz fala de sua tese sobre a importância desses guerrilheiros e do apagamento do povo negro na história do país

Os guerrilheiros negros Antônio de Pádua Costa, Dermeval da Silva Pereira, Dinalva Oliveira Teixeira, Francisco Manoel Chaves, Helenira Resende de Souza Nazareth, Idalísio Soares Aranha Filho, Lúcia Maria de Souza, Osvaldo Orlando da Costa e Rosalindo de Souza. Fotos: reprodução

A busca por memória, verdade e justiça com relação aos atos praticados pelo regime militar e a necessidade de resgatar o papel dos negros na história brasileira e em especial nos anos da ditadura têm levado uma série de pesquisadores a se debruçarem sobre episódios que, como tem sido comum na historiografia oficial, escondem a participação da população negra. 

Um desses estudos foi a tese de doutorado realizada pelo historiador Janailson Macêdo Luiz, intitulada Lutas pela autonomia, sonhos de revolução: Uma história da participação negra na Guerrilha do Araguaia (1972-1974), que teve a orientação da professora Maria Helena Pereira Toledo Machado e foi defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

A obra procura resgatar o papel das mulheres e homens negros que participaram do movimento armado de resistência à ditadura, aniquilado pelos militares nos primeiros anos da década de 1970, e compreender melhor como se deu a interação com a população local. 

Em entrevista ao Portal Vermelho, Janailson Macêdo Luiz fala sobre esses guerrilheiros e sobre como o apagamento da participação dos negros na história brasileira prejudica o desenvolvimento humano, social e cultural do país. “Deixamos de ter contato com experiências muito importantes para entendermos como muitos dos problemas que vivenciamos no presente foram construídos historicamente”, explica. 

Confira os principais trechos da entrevista. 

História apagada

Janailson Macêdo Luiz

“As estratégias de apagamento de informações desenvolvidas pelos militares em relação à Guerrilha do Araguaia como um todo certamente contribuíram para que se tornasse ainda mais difícil a investigação de determinados temas. Além disso, os próprios governos militares investiam na imagem da ‘democracia racial’, muito difundida desde a década de 1930 e reforçada naquele período, o que postergou muito a discussão de temas que hoje estão em maior evidência, graças às décadas de luta dos movimentos negros. Entre elas, está justamente a participação negra na construção da história do Brasil. 

Além do mais, na academia houve, durante muito tempo, o silenciamento em relação ao papel das populações negras na História, e na própria História do Brasil. Em 1990, Clóvis Moura, ele próprio um intelectual negro e comunista, denunciou isso na obra Injustiças de Clio, o Negro na Historiografia Brasileira. Esse quadro vem aos poucos sendo alterado, mas ainda existe muito trabalho a ser feito”. 

“Na construção sobre as memórias sociais a respeito do período da ditadura, ainda são poucas as produções que buscam detalhar sobre a vida de mulheres e homens negros. Porém, nos últimos anos têm surgido trabalhos nesse sentido. Por exemplo, os relatórios finais das Comissões estaduais da Verdade de São Paulo e do Rio de Janeiro deram um importante destaque para a atuação negra no período. Também têm surgido pesquisas sobre temas variados”.

Obras sobre a Guerrilha

“Na discussão sobre a Guerrilha do Araguaia, para citar algumas produções que estiveram centradas na questão negra, podemos elencar a biografia de Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, escrita por Bernardo Jofilly, em 2008; e o próprio documentário Osvaldão, produzido em 2014, com direção de Vandré Fernandes, Ana Petta, André Michiles e Fabio Bardella. O próprio Vandré Fernandes já havia dirigido o documentário Camponeses do Araguaia e ocineasta Evandro Medeiros realizou Araguaia: Campo sagrado; são obras que retrataram muito da diversidade étnico-racial local ao apresentarem depoimentos de muitas mulheres e homens camponeses”.

“Cito ainda, entre outras produções, trabalhos recentes como a dissertação da historiadora Maria Leal Pinto, intitulada Histórias que ouvi contar: a Guerrilha do Araguaia nas narrativas do Povo de Santo da região Araguaia – Tocantins; a tese da historiadora Tauana Silva Mulheres negras nos movimentos de esquerda durante a Ditadura no Brasil (1964-1985);ea tese da psicóloga Áurea Cardoso Mulheres do Araguaia: Labut(ar), uma expressão do viver; entre outros trabalhos com quem buscamos dialogar”. 

Leia também: “O Pastor e o Guerrilheiro” estreia nos cinemas 

Relações locais

“Na região onde ocorreu a Guerrilha, os guerrilheiros buscaram criar estratégias de aproximação junto aos moradores. Entre elas estava, por exemplo, a aproximação com religiosos, fossem eles católicos ou praticantes de outras religiões, dada a importância da religiosidade no cotidiano e cultura locais. Entre essas ‘outras’ religiões estava o Terecô, de caráter afro-indígena e originária do interior do Maranhão”. 

“Boa parte dos migrantes que chegaram à Amazônia Oriental durante a implementação do Plano de Integração Nacional (PIN) por parte dos militares era maranhense. Muitos deles eram terecozeiros e guardavam uma visão de mundo ligada às chamadas ‘encantarias’”. (…)

Respeito a todas as religiões

“No ‘Programa dos 27 Pontos’, documento elaborado pelos guerrilheiros, consta que eles defendiam o ‘respeito a todos os cultos religiosos, não sendo permitida a perseguição de qualquer pessoa por motivo de prática religiosa, inclusiveda que professa a pajelança, o terecô, o espiritismo, desde que esta prática não cause dano ao indivíduo’. Os guerrilheiros se expressaram contrários às perseguições que aqueles religiosos sofriam no seu cotidiano, inclusive por parte das autoridades policiais”. 

Terecô

Cartaz com mortos no Araguaia

“No relatório elaborado pelo guerrilheiro Ângelo Arroyo consta a seguinte informação: “Nas sessões de terecô (candomblé) se faziam cantorias de elogio à guerrilha”. Há vários indícios de contatos no cotidiano, sobretudo por parte de Osvaldão e Francisco Manoel Chaves, dois homens negros, em relação aos terecozeiros. Uma questão que a pesquisa busca fazer é tentar interpretar essa relação do ponto de vista dos terecozeiros”. 

“Nesse sentido, um dos capítulos da tese é dedicado ao Terecô, que é uma religião pouco conhecida nacionalmente, o que só torna ainda mais interessante o fato de os guerrilheiros terem realizado tais tipos de diálogo com aqueles religiosos. E isso apresentou algumas repercussões ainda durante a própria Guerrilha. Por exemplo, ao final do depoimento do indígena Tibaku do Suruí (Etnia Aikewara, sudeste do Pará) à Comissão Nacional da Verdade, em 2012, ele afirmou que foi obrigado pelos militares a agredir uma terecozeira, por ela ter se negado a usar o Terecô como uma armadilha para os guerrilheiros, especialmente os do Destacamento B, liderado por Osvaldão. Tibaku afirmou que fora obrigado a trabalhar como guia para os militares, durante o cerco aos guerrilheiros”. 

Guerrilheiros e encantarias

“Como se sabe hoje, e já foi abordado em algumas pesquisas, muitos dos relatos criados em relação à Dina (Dinalva Conceição Oliveira Teixeira) e Osvaldão, que tratavam da suposta capacidade de ambos se transformarem em criaturas diversas durante as fugas nas matas, tinham ligação com o chamado mundo das ‘encantarias’”.

“A tese busca recuperar esses indícios das atuações dos terecozeiros naquele período, justamente enfrentando a dificuldade de recuperar fontes a respeito disso. No entanto, as fontes apontam que existiram diálogos entre terecozeiros e guerrilheiros, que embora não fossem o elemento central do conflito ou da própria atuação dos guerrilheiros, nos trazem detalhes importantes, abordados na tese dentro do conjunto de interações entre os guerrilheiros e a população local”. 

Contribuição negra dos comunistas no Brasil

“Quando você estuda a história comunista no Brasil, encontra um rol de pessoas negras que apresentaram protagonismo, a partir das lutas de seus tempos. Sem a pretensão de citarmos todos, podemos lembrar de personagens como Minervino de Oliveira (1891-1977), Claudino José da Silva (1902-1985), Édison Carneiro (1912-1972), o já citado Clóvis Moura (1925-2003), e Carlos Marighella (1911-1969), a própria Helenira Resende (1944–1972). Além de personagens ainda um pouco mais antigos, como o tipógrafo Luís da França e Silva, falecido em 1894, que atuou nas mobilizações operárias ainda no século XIX”.

“Também é relevante lembrarmos os debates criados nas décadas iniciais da atuação comunista no país, em torno do que era denominado como a ‘questão negra’, a partir de formulações da Internacional Comunista”. 

“Em 2009, o Governo Federal publicou uma relação com 40 mulheres e homens negros vitimados pela violência de Estado durante o Regime Militar. Esse número não contempla o total de mulheres e homens negros mortos pelo regime, mas traz alguns dados interessantes. Muitos dos listados naquela publicação eram vinculados ao PCdoB, sendo que nove deles tombaram durante a Guerrilha do Araguaia. São citados Antônio de Pádua Costa (1943-1974), Dermeval da Silva Pereira (1945–1973), Dinalva Oliveira Teixeira (1945–1974), Francisco Manoel Chaves (1906 – 1972), Helenira Resende de Souza Nazareth (1944–1972), Idalísio Soares Aranha Filho (1947–1972), Lúcia Maria de Souza (1944–1973), Osvaldo Orlando da Costa (1938–1974) e Rosalindo de Souza (1940–1973)”. 

Leia também: Araguaia: jornal lembra trajetória de cearenses mortos pela ditadura

Diferencial dos guerrilheiros negros

“Muitos deles (guerrilheiros negros) se destacaram na aproximação com os moradores locais. Em seu relatório sobre a luta no Araguaia, Ângelo Arroyo destacou, por exemplo, que por volta do início de 1973, “os guerrilheiros, todos eles, eram bastante estimados pela massa [população local]”. (…)

“Lúcia Maria de Souza, por exemplo, teve muito destaque na saúde. Começou a realizar seus trabalhos no Araguaia sob a coordenação do médico gaúcho João Carlos Haas Sobrinho, o Dr. Juca, responsável principal por essa questão médica da guerrilha”. (…) Muitos dos moradores eram migrantes, não eram assistidos pelo Estado e receberam dos guerrilheiros os primeiros atendimentos médicos tidos em seu novo espaço de morada, em muitos casos situados bem no interior das matas”. 

“Osvaldão passou vários anos interagindo com os moradores locais. (…) Transmitia aos demais informações necessárias não somente para o seu treinamento militar, mas sobretudo para a adaptação aos costumes e formas de vida dos moradores da Amazônia Oriental. Além disso, era visto pelos moradores como um deles”. 

Rosalindo Souza foi autor de um cordel chamado de Romance da Libertação, que traduzia para a população boa parte do Programa dos 27 Pontos, desenvolvido pelos guerrilheiros”. 

Mortes e impunidade

Tropas militares no Araguaia. Foto: reprodução/arquivo

“É importante destacarmos que, como acontece com a maior parte dos guerrilheiros do Araguaia, os corpos dessas mulheres e homens citados acima jamais foram entregues aos seus familiares; e que os responsáveis por suas mortes e desaparecimentos jamais foram punidos. Alguns, inclusive, já faleceram, sem jamais terem respondido por seus crimes. Por isso, é fundamental que as apurações das violações aos Direitos Humanos cometidas por agentes de Estado durante a Guerrilha do Araguaia sejam apuradas, os responsáveis sejam punidos e sejam aprofundadas as medidas de reparação”.

Justiça histórica

“O apagamento dos negros e negras na história brasileira foi rotineiro, mas vem se ampliando o número de pesquisas que têm buscado reverter esse quadro. Durante muito tempo a dita ‘história oficial’ foi escrita sob bases eurocêntricas e que traziam heranças advindas do nosso processo de colonização, no qual indígenas e negros eram vistos como seres inferiores”. 

“Finda a colonização, foram criadas formas para que os personagens centrais da escrita da história continuassem sendo os homens brancos, deixando-se menos espaço para o estudo de experiências vivenciadas por negros, indígenas, mulheres e outros sujeitos, que ainda hoje ocupam a parte mais pobre e desassistida da nossa sociedade. Por isso, é importante observarmos a nossa história levando em conta os elementos raça, classe e gênero”.

Leia também: Araras Vermelhas está entre melhores livros de 2022

As perdas desse apagamento

“O que as brasileiras e brasileiros perdem (com esse apagamento) é que deixamos de ter contato com experiências muito importantes para entendermos como muitos dos problemas que vivenciamos no presente foram construídos historicamente, seja em relação à permanência do racismo no país; seja quanto à falta de acesso das populações negras, indígenas e pobres aos direitos básicos e à própria cidadania”. 

“É importante compreendermos como, apesar desse quadro, muitas mulheres e homens negros participaram das lutas do seu tempo, buscando modificar a realidade do país. Nesse sentido, crianças negras e não negras, por exemplo, podem beneficiar-se ao ter contato com a história de personagens negros que colaboraram com a construção da nossa história, bem como através do estudo de processos históricos em que as populações negras estiveram envolvidas. Tomar maior consciência desses processos é um passo fundamental — embora não o único — para alterarmos grande parte das desigualdades sociais vigentes hoje no país. Não é um objetivo fácil, mas é importante caminharmos em direção a ele”.