Como a “mão visível” do Estado livrou o capitalismo de mais uma crise

Cidadãos suíços foram forçados a descobrir como funciona o sistema financeiro – e como a conta da crise cai quase sempre nas costas dos trabalhadores

Manifestantes suíços protestam contra o apoio do governo à compra do Credit Suisse

A maioria dos cidadãos ainda pode dormir em paz por não saber como são feitas as salsichas e as leis. Mas, nos últimos dias, os cidadãos suíços foram forçados a descobrir como funciona o sistema financeiro – e como a conta da crise cai quase sempre nas costas dos trabalhadores.

Deu-se que o Credit Suisse Group AG, uma dessas instituições bancárias “grandes demais para quebrar”, vislumbrou a falência. Após uma série de escândalos e perdas – que vinham exaurindo sua credibilidade –, o segundo maior banco internacional suíço foi avisado de que estava nas cordas: seu maior acionista, o Saudi National Bank, declarou em 15 de março que não aumentaria o investimento no banco, algo visto como indispensável para garantiria sua liquidez.

Resultado: as ações do Credit Suisse despencarem 24,24% num único dia – e não se tratava da primeira quebra. “Somente em 2022, as ações do Credit Suisse negociadas em Nova York desabaram 30%; em cinco anos, essa queda é de 80%”, lembra o Money Times.

O mundo das finanças já cogitava um “risco sistêmico” desde o início do mês, com o anúncio da falência do Silicon Valley Bank (SVB), nos Estados Unidos. Em apenas 24 horas, os saques em depósito chegaram a US$ 42 bilhões. O governo norte-americano interveio com rapidez e ajudou a blindar o sistema. A ameaça de uma nova crise financeira global, similar à de 2007/2008, parecia descartada.

Mal deu tempo de “madrugar na bodeguita”. A explosão do caso Credit Suisse obrigou a banca a continuar “chamando pra luta, aflita”. O Banco Nacional da Suíça (espécie de Banco Central) divulgou uma declaração de confiança e aventou um empréstimo de 50 bilhões de francos suíços (US$ 53,7 bilhões). Mas o fantasma do “risco sistêmico” continuava a assombrar.

No domingo (19), veio a público uma reviravolta surpreendente – e relativamente célere para o porte da operação: por US$ 3,2 bilhões, o Credit Suisse foi adquirido por seu rival, o UBS. Em comunicado à imprensa, o Banco Nacional da Suíça classificou a venda como “uma solução para garantir a estabilidade financeira e proteger a economia suíça nesta situação excepcional”.

Conforme a nota da autoridade monetária, o governo da Suíça e a Autoridade de Supervisão do Mercado Financeiro Suíço tinham participado diretamente das negociações. No caso do governo, porém, é pouco falar numa mera “participação”. A exemplo do que ocorreu diante da quebra do Silicon Valley Bank, não houve “mão invisível” a autorregular o mercado e livrar o capitalismo de mais uma crise.

“Um colapso descontrolado do Credit Suisse levaria a consequências incalculáveis para o país e para o sistema financeiro internacional”, correu para se explicar o presidente suíço, Alain Berset. Desta vez, era mesmo provável que a crise, uma vez espalhada pela Suíça, logo contaminaria a Europa.

Mesmo com a intervenção, os danos são imensuráveis. O vexame do Credit Suisse abala, antes de tudo, a longeva reputação dos bancos suíços, tidos como historicamente sólidos e seguros. Como as autoridades do país ficaram cegas por tanto tempo e deixaram o sistema bancário local “ir às cordas”, a ponto de quase “beijar a lona”? Não que os agentes financeiros levassem essa fama a sério, mas a Suíça sempre explorou a boa imagem que agora está em xeque.

(Vale lembrar que Orson Welles já desdenhava do prestígio dos bancos e dos chocolates suíços quando, em O Terceiro Homem, soltou o deboche mais conhecido – e arrasador sobre o país europeu: “Na Itália, depois de 30 anos sob os Borgias, com guerras, terror e assassinatos, eles produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e a Renascença. Já na Suíça, onde havia amor fraterno, 500 anos de democracia e paz, o que eles produziram? O relógio cuco”.)

Os trabalhadores suíços também sofrerão – e muito – os impactos da turbulência. Com a união UBS-Credit Suisse, é inevitável o fechamento de centenas de agências e a demissão de milhares de funcionários. Mas, por se tratar de aporte de dinheiro público no negócio, quem paga a conta é cada cidadão suíço.

“A fatura deve ficar em 12.500 francos ou cerca de US$ 13.500 por cabeça”, calculou a agência Bloomberg. “Para que a venda de emergência do Credit Suisse para o seu maior concorrente, o banco UBS, acontecesse, o governo suíço prometeu disponibilizar 109 bilhões de francos – um peso relevante para num país de 8,7 milhões de pessoas.”

Continuamos sem saber direito de onde vêm as salsichas. Mas não faltam mais exemplos para deduzirmos sozinhos que, sem a “mão visível” do Estado, o capitalismo não fica de pé.

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