Ler verbo Ser

Alexandria se caracterizava como lugar de aceitação, tanto religiosa, quanto cultural, e também como centro intelectual de sua época para onde convergiam pensadores e pesquisadores de inúmeras culturas e, por isso, era constantemente visitada por pessoas do mundo inteiro.

Uma civilização se apresenta pelo seu acervo cultural. Entre os povos ágrafos as primeiras manifestações de contato apresentavam danças, músicas, pinturas, oferendas gastronômicas e variados artesanatos. As relações consolidadas estabeleciam negócios, buscavam entendimentos ideológicos mais profundos para fortalecer laços. As dissidências, antes pactuadas em favor da boa amizade,  recrudesciam quando a ambição de uma das partes queria subjugar a outra. Daí a principal manifestação passava a ser a ostentação das armas e o extermínio dos inimigos.

Entre os povos que dominavam a escrita, o processo era bem parecido; porém mais demorado em razão do amplo e horizontal saber acumulado e da vertical história preservada pelos registros escritos. Além da demora, a principal diferença era que depois da conquista, a vida da maioria dos inimigos era preservada; mas seus papiros, seus escritos viravam cinzas. Assim o fez, segundo a versão mais divulgada, o califa muçulmano de Meca, Omar Ibne Alcatabe, ao mandar destruir a Biblioteca de Alexandria, fato que marcou o fim da cultura alexandrina.

Alexandria se caracterizava como lugar de aceitação, tanto religiosa, quanto cultural, e também como centro intelectual de sua época para onde convergiam pensadores e pesquisadores de inúmeras culturas e, por isso, era constantemente visitada por pessoas do mundo inteiro. Uma civilização ecumênica e pacífica que sofreu várias tentativas de submissão até ser dizimada por Omar, que mandou queimar sua biblioteca, dizem, com o argumento de que a humanidade não carecia de outros saberes senão o contido no Corão.

Fartos são os lamentáveis fatos de queima de livros ao longo da história. Todos eles fruto de imposição autoritária, anti-humana, etnocida e genocida, pois quem queima livros também queima literalmente pessoas, não necessariamente nessa ordem. Assim fez, no século 16, a inquisição que queimou livros e pessoas, assim também fizeram,  no século 18,  os ingleses ao queimar a Biblioteca do Congresso dos EUA, e no século 20 os nazistas ao queimarem livros na Alemanha dos anos de 1930.

Os exemplos, reitero, são fartos em todos os continentes. Sempre marcados pela estupidez do autoritarismo. É o caso mais recente do Brasil, cujo mandatário eleito em 2018, promoveu perseguição e minou a Cultura em geral e especificamente a política do livro e leitura que se aprimorava gradativamente, como consta no Plano Nacional de Cultura (PNC), constituído em 2010, ajustado em 2014, e que deveria ter sido refeito em 2020.

O PNC em seu eixo 2, intitulado Cultura, Cidade e Cidadania, definiu como uma de suas prioridades: “Garantir para toda a população urbana e rural, em sua diversidade, a criação, manutenção e a sustentabilidade de bibliotecas públicas, comunitárias, itinerantes e escolares da rede pública e outros espaços de leitura, com quadro de profissionais qualificados que permitam o acesso à leitura literária, científica e informativa, em seus diversos suportes (livros, jornais, revistas, internet, livro acessível, em Braille, audiolivros, equipamentos visuo-espaciais etc.), informatizadas, em rede, integradas e dinamizadas por mediadores de leitura.” Incluem-se entre as públicas as bibliotecas particulares de acesso público.

Nessa diretriz está delineado um sistema de bibliotecas. que deve abarcar não só a criação de bibliotecas públicas e outros espaços de leitura em zonas urbanas e rurais, mas também garantir o emprego de profissionais qualificados bem como a sustentabilidade desses espaços de leitura, num sentido amplo, para contemplar as mais diversas linguagens e públicos. Essa prioridade do PNC atende à reivindicação histórica da cadeia mediadora, embora seja apenas uma diretriz a partir da qual devem-se desenvolver projetos e ações contínuas, que devem ser garantidas na forma da lei para torná-las política pública de estado.

No Ceará, a política do livro é bem avançada se comparada à maioria dos entes federados, mas ainda deixa muito a desejar, há muito o que cumprir para fortalecer o Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas, que, reconheçamos, tem à frente excelente e abnegada gestora, assim como a gestão da Biblioteca Estadual do Ceará – BECE, cujas ações de promoção e difusão da leitura e do livro têm sido bem pensadas e realizadas e precisam ser intensificadas, manutenidas e asseguradas na forma da lei.

Em recente participação em um programa online da BECE ― “Histórias de quem gosta de ler” ― comparei a biblioteca pública central do Ceará a uma nave-mãe que se articula com as demais bibliotecas em um intenso intercâmbio cultural a promover e ampliar continuamente o acervo de nossa civilização, fortalecendo a cidadania ao semear livros, “livros à mancheia”, como cantou o poeta Castro Alves. Uma utopia! Então, como toda ela, deve ser perseguida e ao longo do trajeto deve-se construir realidades.

A referida diretriz prioritária do Eixo 2 – CULTURA, CIDADE E CIDADANIA do PNC em 2010, é uma dessas realidades construídas no caminho. Caso houvesse sido implantada junto a outras políticas públicas como o “Minha Casa, Minha Vida”, dispondo, por exemplo, em cada conjunto habitacional uma biblioteca pública, um espaço de convivência e difusão literária com o devido incentivo e ampla propaganda institucional, talvez houvesse uma geração mais criteriosa no consumo. Afinal, nem só de “picanhazinha e cervejinha” vive o ser.

Se se entendesse que o ler, e, sobretudo, ler arte literária, sensibiliza a pessoa leitora a perceber sua localização no mundo e sua relação com as pessoas, consigo mesma e com todas e todos para além das pessoas com quem interage. Se se entendesse que essa sensibilização vai fazer com que a pessoa se perceba um ser único, mas de possibilidades múltiplas e ― importante! ―  protagonista da própria história, talvez a sociedade, com destaque a juventude, evitasse mais o descartável e o fútil.

Se se tomasse consciência de que o verbo ler promove o verbo ser, com certeza a sociedade valorizaria mais a arte e bens culturais afins, por se reconhecerem neles, por se sentirem mais criativos e protagonistas da própria história, e assim poderiam resistir mais ao enganador discurso meritocrático, acrítico, autoritário, religiosamente fanático, falso moralista, e combateria com antecipação a “queima de bibliotecas” promovida pela laia fascista, que ocupou o poder de 2019 a 2022. É isso, evoé!

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