STF libera linguagem neutra em Rondônia, e derruba leis discriminatórias pelo país

Supremo entende que a proibição por meio de lei invade competência da União sobre educação e atenta contra a liberdade de expressão. Linguagem neutra busca incluir diferenças de gênero.

STF considera inconstitucional proibir o uso de linguagem neutra em espaços públicos.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional uma lei do Estado de Rondônia que proíbe a denominada linguagem neutra em instituições de ensino, material didático e editais de concursos públicos. Por unanimidade, a Corte entendeu que a norma viola a competência legislativa da União para editar normas gerais sobre diretrizes e bases da educação. 

Esse entendimento não diz respeito ao conteúdo da norma, limitando-se à análise sobre a competência para editar lei sobre a matéria. A linguagem neutra evita a utilização de artigo masculino ou feminino, especialmente no plural, para incluir outras possibilidades de gênero. Em vez de todos, se diz todes, em vez de amigos, se diz amigues, por exemplo. No singular, o uso é condicionado pela identidade de gênero do indivíduo.

O tema é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7019, impetrada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee). A ação sustenta, entre outros pontos, que a Lei estadual 5.123/2021, a pretexto da defesa do aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta e as orientações legais de ensino, apresenta preconceitos e intolerâncias incompatíveis com a ordem democrática e com valores humanos.

“Quem se der ao elementar e necessário cuidado de buscar entender a linguagem neutra, a partir de sua inserção na realidade social, patente, viva e insuscetível de ser aprisionada, claro, sem a couraça da intolerância, do ódio e da negação da diversidade, com certeza, chegará à conclusão de que ela nada contém de modismo, de caráter partidário e ideológico”, argumenta a Contee na petição.

Apesar da decisão, legislações semelhantes em outras localidades só são derrubadas, a partir de questionamento utilizando a nova jurisprudência. “Caso alguma instância contrarie a decisão do STF, poderá e deverá ser objeto de reclamação perante o STF para que seja declarada inconstitucional, e, portanto, sem efeito jurídico”, explica José Geraldo Santana, advogado que representou a Contee na ação movida no Supremo.

Leia a íntegra da ADI ajuizada pela Contee

Competência da União

A lei está suspensa desde novembro de 2021 por liminar deferida pelo relator, ministro Edson Fachin. O ministro explicou que os estados têm competência concorrente para legislar sobre educação, mas devem obedecer às normas gerais editadas pela União. 

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/1996) engloba, segundo a jurisprudência da Corte, as regras que tratam de currículos, conteúdos programáticos, metodologia de ensino ou modo de exercício da atividade docente.

Para Fachin, a lei estadual que, a pretexto de proteger os estudantes, proíbe modalidade de uso da língua portuguesa viola a competência legislativa da União.

O ministro indicado por Jair Bolsonaro, Nunes Marques, resistia ao tema, mas acompanhou o relator pela inconstitucionalidade da norma. No entanto, acrescentou que qualquer tentativa de impor mudanças ao idioma por meio de lei será ineficaz. Para ele, são inconstitucionais tanto as leis estaduais que proíbam o uso de determinada modalidade da língua portuguesa quanto as que as impõem.

Preconceito linguístico

Segundo o relator, a União editou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e, embasado nela, o Ministério da Educação edita os parâmetros curriculares nacionais, que estabelecem como objetivo o conhecimento e a valorização das diferentes variedades da língua portuguesa, a fim de combater o preconceito linguístico.

“A pretexto de valorizar a norma culta, ela acaba por proibir uma forma de expressão”, afirmou Fachin.

Em relação ao conteúdo da lei, o relator explicou que o uso da linguagem neutra ou inclusiva visa combater preconceitos linguísticos, que subordinam um gênero a outro, e sua adoção tem sido frequente em órgãos públicos de diversos países e organizações internacionais.

A seu ver, a proibição imposta pela lei de Rondônia constitui nítida censura prévia, prática banida do ordenamento jurídico nacional. Além disso, a linguagem inclusiva expressa elemento essencial da dignidade das pessoas.

O relator lembrou, ainda, que a identidade de gênero é a manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la.

Por fim, Fachin ressaltou que a norma tem aplicação no contexto escolar, ambiente em que, segundo a Constituição, devem prevalecer não apenas a igualdade plena, mas também a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber.

Além de Rondônia

A decisão plena do STF deve atingir leis semelhantes aprovadas em outros estados e municípios. Isso porque a decisão produz o chamado efeito vinculante, firmando entendimento a ser aplicado em casos similares.

No entanto, as leis existentes sobre o tema não caem automaticamente. Será preciso aguardar a publicação da decisão da Suprema Corte para saber quais serão os próximos passos.

Segundo levantamento do g1, três estados e duas capitais do país têm legislação com esse tipo de censura. Outros oito estados e seis capitais, embora não tenham legislação a respeito, caminham para isso.

Todos os estados do Sul têm algum mecanismo proibitivo. Municípios do Amazonas também vão nessa linha. Os que preparam propostas similares são Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Paraíba e São Paulo. As propostas começaram a tramitar na onda da “guerra cultural” empreendida pelo bolsonarismo contra o que chama de “ideologia de gênero”. 

A linguagem neutra substitui os artigos feminino e masculino por um “x”, “e” ou até pela “@” em alguns casos. Assim, as palavras “todos” ou “todas” são trocadas, da mesma forma, por “todes”, “todxs” ou “tod@s”. Os defensores do gênero neutro também preferem a adoção do pronome “elu” para se referir a qualquer pessoa

Com ainda se encontra no âmbito da informalidade das redes sociais, não há um modelo claro e definido sobre que caracter utilizar. 

O objetivo em substituir o artigo masculino genérico pelo “e” é neutralizar o gênero gramatical a fim de que as pessoas não binárias (que não se identificam nem com o gênero masculino nem com o feminino) ou intersexo se sintam representadas.