Breve comentário a respeito de reconstruir um país

Cabe à sociedade civil ― e aqui os partidos políticos programáticos são essenciais ―  se organizar para as Conferências Nacionais de Políticas Públicas em todas as suas esferas federativas, as municipais, as estaduais e a nacional.

Os sucessivos atos golpistas que levaram a extrema-direita ao poder tiveram início em 2013, e se intensificaram em movimento de desconstrução da política, com a enganosa bravata “política sem partido”. Daí partidos programáticos com princípios democráticos e de longa história em favor da construção de uma sociedade mais justa e igualitária, como o PCdoB, foram tratados tal qual a uma frente política oportunista e demagógica, como se fossem tudo farinha do mesmo saco. Em 2014, essas ações auto proclamadas apolíticas se oficializaram no Movimento Brasil Livre, de acepção liberal ultraconservadora.

Na onda do discurso do movimento por um Brasil livre de partidos políticos, se conspirou um impeachment (sem crime de responsabilidade) contra a presidenta Dilma Rousseff. Um impeachment de qualquer jeito “com o Supremo e tudo”, nas palavras de um tal senador Jucá, pois, segundo ele, era preciso “estancar essa sangria”. Tal expressão se referia à necessidade de parar o fortalecimento do Estado na gestão dos avanços de programas sociais em benefício da Nação Brasileira para os quais o orçamento público estava sendo alocado.

Como opção para “estancar a sangria”, Michel Temer ― o Usurpador lançou “Uma Ponte para o Futuro”, texto assinado por ele contendo proposta de agenda econômica antagônica ao Governo do qual era o vice-presidente. Então com o apoio do grande capital financeiro, bancos, indústria, comércio, ruralistas, e a grande mídia se forjou o impeachment golpista contra Dilma Rousseff.

Consumado o impeachment, Temer ― o Usurpador assumiu e, com uma canetada só, golpeou conquistas sociais e culturais importantes ao inviabilizar políticas públicas com a famigerada lei do teto de gastos. Com esse ato, o Usurpador congelou por 20 anos investimentos que assegurariam direitos fundamentais e sociais à nação brasileira..

A facilidade com que Temer golpeou as conquistas de cidadania da Nação Brasileira expôs a fragilidade imensa da institucionalização das políticas públicas de estado no país. Ele golpeou, por exemplo, direitos fundamentais e sociais assegurados pela Constituição Cidadã, em seu Art. 6°, tais como o acesso à saúde, à educação, ao trabalho, à moradia, à segurança, à alimentação, bem como ao lazer e à cultura, ao acesso aos bens culturais, e quase não houve reação popular.

Com passividade bovina, a quase totalidade da população brasileira assistiu ao desmonte de políticas públicas que lhe asseguravam direitos fundamentais. O mais assustador é que tais políticas públicas foram construídas com ampla e intensa participação popular, por meio de Conferências Nacionais.

Ainda que tenha sido assim bem participativa nas Conferências Nacionais, a população parecia não saber o que estava perdendo. A imensa maioria apenas se beneficiou das garantias de conquistas, por exemplo, como o SUS e as vacinas, na área da Saúde, mas nunca se apropriou delas como quem a conquistou de fato e de direito. Isso indicia grave ignorância política.

Tal ignorância talvez explique a fragilidade institucional das políticas públicas de estado, cuja estabilidade não tem solidez, pois se dissolve facilmente com uma só canetada de quem está no poder. Talvez isso tenha decorrido da ausência de uma comunicação oficial que valorizasse as conquistas da sociedade civil e que a fizesse entender a dimensão dessa vitória a ponto de se apropriar como dona da coisa pública, da res publica, saber defendê-la e lutar por ela com empoderada convicção.

Sim faltou comunicação, antes, durante e depois das Conferências Nacionais, com informações educativas e propagandas eficazes para valorizar as conquistas da população, a fim de que toda a Nação tomasse consciência dessa vitória e se apropriasse das políticas públicas. Uma falha que o atual governo precisa corrigir com urgência, pois informação e conhecimento são fundamentais. Hoje temos uma terra arrasada, porque a extrema direita foi mais eficaz e usou a comunicação para expandir o golpe inicial, com, é claro, o auxílio luxuoso da chamada grande mídia.

Esse golpe inicial que usurpou os direitos da Nação Brasileira se expandiu de vez com a volta da extrema-direita ao poder em 2018 ― dessa vez pelo voto! A consequência foi um desmonte geral do país. A ruína das políticas públicas aumentou com a revogação do Decreto N°. 8.243/2014 que instituía a Política Nacional de Participação Social – PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social – SNPS.

Com uma canetada só, o Serpente fascista que rebentou do ninho de “Uma Ponte para o Futuro” extinguiu de vez, por meio do decreto 9759/2019, importantes instituições participativas ― ou seja, os Conselhos de Políticas Públicas; as Comissões de Políticas Públicas; as Conferências Nacionais; as Ouvidorias Públicas Federais; as Mesas de Diálogo; o Fórum Interconselhos; as Audiências Públicas; as Consultas Públicas; e instituto dos ambientes virtuais de participação social. Essa participação popular ajudava a definir onde, como e para que deveria ser destinado o orçamento público.

A revogação do Decreto N°. 8.243/2014 atendeu à queixa, desde 2014, de deputados (entre os quais o Serpente fascista eleito presidente em 2017) e senadores sob argumento de que as instituições participativas davam para a sociedade civil as prerrogativas do Congresso de decidir sobre políticas públicas. Para os parlamentares golpistas, o instituto da democracia direta era uma “sangria” que deveria ser estancada. Com o Decreto 9759/2019, começava a se consolidar uma das metas do golpe, mais tarde, em 2020, materializada pelo chamado “orçamento secreto” ― a “emenda do relator”.

Daí ao invés da efetivação das reivindicações das instituições participativas, os parlamentares golpistas e o governo de extrema-direita garantiram a prática da barganha, do famoso “toma lá dá cá”, “do por debaixo dos panos”, num total desrespeito ao Art. 1º da Constituição Federal de 1988, em seu parágrafo único: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.  E a maioria da população, em face a tamanho desrespeito e desmonte de suas conquistas, mais uma vez se quedou passiva.

O desmonte nos quatro anos da gestão fascista em todas as áreas da administração pública foi tão arrasador que especialistas já afirmam um retrocesso ao cenário social e econômico de 1990 — que era um drástico contexto ainda remanescente da lastimável situação nacional deixada pelos 25 anos da ditadura civil-militar estabelecida pelo golpe de 1964.

Cabe, portanto, ao atual governo liderado por Lula reconstruir o país; mas para tanto não pode esquecer dos erros cometidos, avaliá-los minuciosamente para não repeti-los. O presidente Lula já anunciou que vai convocar a sociedade para participar da formulação das políticas públicas por meio de Conferências Nacionais nos mais diversos setores.

A participação da sociedade não pode ser apenas massiva. Tem de ser também qualificada e protagonista de fato, para não virar mero coadjuvante de um cenário para uma foto que registre a volumosa presença da população a fim de legitimar decisões tomadas em gabinetes e propagandeadas em nome do povo. Não pode ser uma participação de faz de conta, mesmo que as decisões de gabinete garantam benefícios à população como um todo, com destaque aos mais necessitados.

Repito, mesmo que sim que o povo se beneficie das conquistas de políticas públicas formuladas a partir das propostas apresentadas nas diversas conferências temáticas; reitero que sua presença nessas conquistas não pode ser a de uma participação de faz de conta, pois, em sendo mero coadjuvante, não vai-se apropriar das conquistas a ponto de defendê-las com vigorosa consciência cidadã. Para tanto precisa de fato sentir-se e ser protagonista na formulação propostas, nos debates e na aprovação delas, seja diretamente ou por legítimos representantes de suas reivindicações. Precisa se apoderar das políticas públicas, e delas se empoderar.

Cabe então à sociedade civil ― e aqui os partidos políticos programáticos são essenciais ―  se organizar para as Conferências Nacionais de Políticas Públicas em todas as suas esferas federativas, as municipais, as estaduais e a nacional. Os movimentos sociais devem se mobilizar. A participação para escolha de delegados, seus legítimos embaixadores, deve ser a mais orgânica, o representante deve ser oriundo do movimento, um agente atuante, que represente as causas a serem reivindicadas, defendidas, que seja uma voz coletiva e tenha madura consciência política.

A maturidade política importa muito, pois vamos viver dois momentos em um só. O primeiro será a retomada do que foi interrompido. Nesse caso, tem-se de ter consciência do que foi feito, do que pode ser retomado, e de que ponto deve ser retomado. Partidos políticos como o PCdoB têm muito a contribuir nessa práxis de luta. O segundo exigirá a integração das novas demandas e proposições que poderão substituir as anteriores, suplementá-las, ampliá-las.

A exemplo dos ministérios da Saúde e da Educação, temos novos ministérios de intrínseca mobilização social. É o caso de ministérios como Direitos Humanos, Povos Indígenas, Igualdade Racial, Mulheres, Meio Ambiente, Ciência, Tecnologia e Inovação, Desenvolvimento Social, Trabalho e Emprego, Cidade, Desenvolvimento Regional, Previdência, Desenvolvimento Agrário e o sempre mais visado pela sanha autoritária, o sempre redivivo cada vez mais forte Ministério da Cultura.

Na seara da Cultura, temos muito a recuperar, a retomar, a definir.  Na linguagem Literatura, urge a regulamentação da Lei 13.696/2018, que institui a Política Nacional de Leitura e Escrita, como estratégia de promoção do livro, da leitura, da escrita, da literatura e das bibliotecas públicas no Brasil. Devemos desde já, nos mobilizar para construir um novo Plano Nacional do Livro e da Leitura – PNLL, de vigência decenal, e ajudar o Governo Federal a honrar um dos mais eloquentes lemas da campanha vitoriosa nas eleições presidenciais: “Mais Livros, menos armas”. Precisamos fazer valer esse lema e, unidos, reconstruir o país! Evoé!

*Kelsen Bravos – escritor, professor, consultor para área do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas

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