Soledad Barrett, presente

Ainda que eu tenha gravado o que ela me disse, em correspondência e documento, não irei contar tudo de suas palavras, para que me poupe de risos, zombarias e outros vexames que me seriam feitos.

Em 7 e janeiro de 2023, completaram-se 50 anos da morte de Soledad Barrettt junto a mais 5 bravos, todos militantes socialistas, no Recife em janeiro de 1973. 

Para ela e Pauline, e Jarbas, e Eudaldo, e José Manoel, e Evaldo, republico do livro “Soledad no Recife” estas últimas páginas.

“O poema Muerte de Soledad Barrett, belo poema de Mario Benedetti, não poderia jamais adivinhar o suplício da morte de Soledad, quando diz:

‘los cables dicen que te resististe
y no habrá más remedio que creerlo
porque lo cierto es que te resistías
con sólo colocárteles en frente
sólo mirarlos
sólo sonreír’

Esse poema, que faz Soledad atravessar uma reta de melancolia nas ruas de Montevidéu, não poderia crer que ela fosse atraiçoada de maneira e forma tão desleal. Porque não há como resistir – bater-se de frente contra – quando se é atacado por trás de um modo que indeciso ficamos em qualificá-lo de covarde, canalha ou infame. Como se pode esperar – para assim resistir – o ataque de um filho ou de alguém a quem se ama? O poema de Benedetti, escrito no calor da hora, sob o impacto dos informes da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco que relatavam ter sido um centro de guerrilha destruído, é poesia cuja construção de beleza cresce ainda hoje, quando recorda a vida de Soledad, não exatamente as circunstâncias miseráveis de sua morte:

‘…con tu pinta muchacha
pudiste ser modelo
actriz
miss Paraguay
carátula
almanaque’

Ainda assim, comovente, quando o poeta imagina a morte de sua musa com um fim piedoso, assim como imaginamos, todos nós, mortais para quem a morte não pode ser mais cruel que a própria morte, e olvidamos, e esquecemos, e não queremos ver que as circunstâncias da morte podem torná-la ainda mais cruel.

‘…ignoro si estarías
de minifalda o quizá de vaqueros
cuando la ráfaga de Pernambuco
acabó con tus sueños completos’

É natural que, por não saber, por ignorar o que de fato houve, mal finda a leitura das notícias trazidas por telegramas, é natural que o poeta recue ante a maior crueldade. Pois que fim grandioso seria, ainda que duro e doloroso, que belo fim seria a morte sob ráfagas, rajadas de metralhadoras, lufadas de vento, raios de luz de balas de Pernambuco! Os corpos, quando metralhados, sobem. Dizem que sobem sob o impacto dos tiros. E assim atingidos com tal profundidade e rapidez, sob os clarões do fogo, sobem e caem sem vida. Quase, se nisso não vêem cinismo, é quase como um fim sem dor. Terrível, mas ainda não foi assim, sob ráfagas ou rajadas de metralhadora.

‘por lo menos no habrá sido fácil
cerrar tus grandes ojos claros…’

Não, grande e terno poeta, a Soledad que conheceste em Buenos Aires, em Montevidéu, a bela e graciosa e feliz mulher, porque vivia no que acreditava, porque lutava para um mundo fraterno, porque se entregava ao mundo como quem se doa a uma fraternidade, estava na verdade, quando pela covardia foi apanhada, com os olhos sem que se fechassem. Os dela estavam uma câmera que refletia em instantâneo o perverso das luzes. ‘Soledad estava com os olhos muito abertos, com expressão muito grande de terror’, assim registrou esse instantâneo a advogada Mércia Albuquerque. Do país onde te encontravas, Benedetti, apenas com a dor da perda e a memória da vida de Soledad, é natural que somente pudesses escrever, no calor da urgência, quando te referiste àquelas duas câmeras no rosto de Sol, com o amor que despertaram em ti:   

‘tus ojos donde la mejor violencia
se permitía razonables treguas
para volverse increíble bondad’.

Silêncio. Entram a romanza para violin y orquesta nº. 2 e o terror. O mais piedoso é o silêncio. Uma pausa, um parágrafo. Passemos ao largo, se quisermos, o parágrafo seguinte pode ser ultrapassado de um salto, assim como editamos com os olhos uma crua imagem no cinema.

‘O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror’.

As santas virgens do Paraguai carregam o filho nos braços e a seus pés têm anjos, às vezes também luas em quartos minguantes. Sangue e feto aos pés só a guerreira Soledad Barrettt Viedma.               

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Um livro se constrói sob dificuldades. Mais interiores que do mundo externo, onde parecemos ser pessoas razoáveis, normais. Um dia me foi dito, por uma pessoa que não me autorizou a dizer o seu nome, que eu era chamado, que eu estava convocado, para escrever um outro livro no mesmo caminho do anterior, Os Corações Futuristas. Eu, ateu confesso, me senti abalado pelo que ela me dizia, ela, uma pessoa, mulher que jamais conhecera antes. “Você hoje dorme pouco, mas vai dormir menos ainda”, ela me disse, “porque os mortos, os perseguidos da ditadura pedem justiça, eles te acompanham”.

Ainda que eu tenha gravado o que ela me disse, em correspondência e documento, não irei contar tudo de suas palavras, para que me poupe de risos, zombarias e outros vexames que me seriam feitos. Direi apenas que, para meus ouvidos incrédulos, ela me falou o absurdo de que almas e mais almas socialistas clamavam justiça. Almas de militantes assassinados exigiam que eu escrevesse o próximo livro, sob pena de que eu não teria sossego enquanto não.

De um ponto de vista natural, de um ponto de vista da história, da organização de um mundo submerso, bem entendo o que aquela mulher me disse. Mas ao mesmo tempo não posso deixar de me comover pela beleza poética do que ela me falou, nesta construção: alma socialista. Bem sei que autores não choram. Autor deve ser duro e frio. Por isso digo ao fim:

a Soledad Barrettt Viedma eu dedico”.     

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