Nísia Trindade assina ‘revogaço’ de medidas que ferem ciência e direitos humanos

Ao assumir o Ministério da Saúde, ministra anuncia apoio ao piso salarial da Enfermagem e retomada do diálogo tripartite abandonado por Bolsonaro.

Posse da ministra da Saúde, Nísia Trindade Lima. Foto: Conselho Nacional de Saúde.

A socióloga e pesquisadora Nísia Trindade Lima tomou posse, nesta segunda (2), no Ministério da Saúde, com duras críticas à gestão anterior, que classificou como um “período de obscurantismo”. Segundo ela, durante o governo Bolsonaro a pasta negou a ciência e tentou implementar valores não que ela não considera “civilizatórios”. 

Até então, ela era presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), onde é servidora desde 1987, quando se destacou nacionalmente liderando as ações no enfrentamento da pandemia de covid-19 no Brasil, como a fabricação da vacina da AstraZeneca, usada na campanha de vacinação desde 2021.

A cerimônia aconteceu no auditório do Ministério da Saúde, em Brasília (DF) e contou com a presença de outros ministros do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, como Alexandre Padilha, das Relações Institucionais, Luciana Santos, da Ciência, Tecnologia e Inovação, e Wellington Dias, do Desenvolvimento Social, e Cida Gonçalves, ministra da Mulher.

Piso da Enfermagem

Um dos momentos em que foi ovacionada pela plateia presente foi quando falou sobre a importância dos trabalhadores da Saúde e referenciou a categoria da Enfermagem ao falar sobre o piso nacional, suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por força de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. Ela lembrou do sacrifício desses profissionais num momento de risco a sua saúde e à vida, que lutam agora para garantir a validação da Lei 14.434, que institui o piso nacional da categoria, aprovada pelo Congresso em setembro de 2022.

“Gostaria de fazer uma referência nesse campo. Não vou falar de todas as categorias profissionais, mas o Brasil acompanha com muita atenção a questão do pagamento do piso salarial da enfermagem. […] Valorizar as trabalhadoras e trabalhadores da saúde que se dedicam ao cuidado que se comprometem e viveram, por exemplo, a pandemia de Covid-19, mas não só, de uma forma tão tocante, colocando muitas vezes suas vidas em risco, exige um esforço de governo no sentido de viabilizarmos essas condições. É possível garantir a sustentabilidade do SUS e o trabalho digno em saúde. Essa será uma premissa do nosso trabalho”, disse Nísia.

A ministra ratificou, também, o compromisso de campanha eleitoral do presidente Luis Inácio Lula da Silva e da importância dos servidores públicos ao apontar a impossibilidade de se promover saúde à população sem reconhecer e valorizar os trabalhadores do segmento que atuam em todo país.

A Lei 14.434/22 foi questionada por meio de uma Ação de Inconstitucionalidade (ADI), junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), pela Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde) e, desde 16 de setembro, está sob suspensão por força de decisão do STF, para avaliação de fontes de recursos e viabilidade de implementação por parte das redes pública e privadas de saúde.

No final de dezembro, o Senado Federal aprovou a PEC 42, que altera o art. 198 da Constituição Federal, de modo a garantir, por parte da União, a assistência financeira complementar aos Estados, o Distrito Federal, os Municípios e também as entidades filantrópicas, para que cumpram o piso salarial dos profissionais de enfermagem.

Em resposta ao Portal Vermelho, a presidenta da Federação Nacional de Enfermeiros (FNE), Solange Caetano, destacou como foi fundamental ouvir da ministra sua posição reafirmando a questão do piso. Segundo ela, as entidades representativas dos trabalhadores estão, neste momento, solicitando a revogação da liminar concedida pelo ministro Luis Roberto Barroso, pois, apesar de ter sido aprovada a EC 127, que garante custeio do piso, ele solicitou mais informações ao Senado e Câmara nas vésperas do ano novo.

“Falamos com as deputadas Carmen Zanotto (Cidadania-SC), Alice Portugal (PCdoB/BA) e Mauro Benevides Filho (PDT-CE), que inclusive publicaram uma nota nas redes, reafirmando que já fizeram ofício à ministra para debater uma Medida Provisória que diga como será a divisão do FUNDENF para os diversos setores, e, desta forma, garantir o pagamento do piso.

Os deputados pediram para formar um Grupo de Trabalho e as entidades solicitaram participar. “E estamos oficiando a ministra para uma reunião a fim de discutir as nossas pautas, que vão além do piso”, acrescentou Solange.

Obscurantismo e negacionismo científico

Para ela, o ministério tinha perdido a capacidade de diálogo, de cooperação por conta de uma gestão que “nos trouxe um período de obscurantismo, de negação da ciência, da cultura, dos valores que não gosto nem de denominar civilizatórios, como muitos denominam”. Por causa disso, ela anunciou que, ainda esta semana, fará um “revogaço” de portarias e notas técnicas consideradas anti-científicas.

Ela é a primeira mulher a comandar a pasta da Saúde na Esplanada dos Ministérios e já deixou explícito no seu primeiro discurso, que vai atuar em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, numa crítica ao tratamento dado durante o governo Bolsonaro à questão do aborto legal, especialmente em casos de estupro.

“Serão revogados, nos próximos dias, as portarias e notas técnicas que ofendem a ciência, os direitos humanos, os direitos sexuais reprodutivos, e que transformaram várias posições do Ministério da Saúde em uma agenda conservadora e negacionista”, afirmou.

Ela destacou, ainda, a contribuição que lideranças religiosas podem oferecer ao ministério, apontando um diálogo e aproximação necessários entre ciência e religião. “Terão um grande papel na transformação da nossa sociedade, em uma perspectiva emancipatória e democrática. Muitas dessas lideranças vêm sendo fundamentais na defesa da ciência, da vacinação e do cuidado com a nossa população”, disse.

Segundo Nísia, medidas relacionadas à saúde mental e aos direitos das mulheres sofreram retrocessos. Da mesma forma, ela apontou normativas sobre a covid-19 que serão revistas, principalmente as notas técnicas que recomendam o uso de cloroquina e hidroxicloroquina contra o novo coronavírus — algo que fere o que preconiza a Organização Mundial da Saúde (OMS).

“O que nós temos na pauta para revogar é toda a parte de saúde mental que contraria os preceitos que nós defendemos, como humanização da luta manicomial. A questão da saúde da mulher, na qual são previstos retrocessos em relação ao que a própria lei define, questões ligadas ao financiamento, também”, disse.

Ela deixou claro que combaterá o racismo estrutural, seja aquele percebido na execução de programas voltados para a população preta, seja nas relações dentro do ministério. “Em muitos casos, políticas nacionais bem definidas e bem fundamentadas, a exemplo da política de saúde para população negra, esbarram em dificuldades institucionais que precisam ser encaradas. No nosso ministério, trabalharemos de forma assertiva no combate ao racismo estrutural. Conforme mencionou o presidente Lula, a doença no Brasil tem cor”, ressaltou.

Nísia pretende realizar uma gestão tripartite, por meio da criação de um grupo em que atuará com tomada de decisões das quais participarão as esferas federal, estadual e municipal. Ainda esta semana, prometeu realizar a primeira reunião para analisar as políticas instituídas por portarias sem participação dos três níveis de gestão pública.

“O Ministério da Saúde resgatará a liderança junto aos demais entes e nenhuma decisão das políticas nacionais atropelará a necessidade de debate, acúmulo e maturidade das decisões tomadas no âmbito tripartite. Assumimos o compromisso de restabelecer o federalismo de cooperação e não de confronto”, garantiu.

Diversidade e representatividade

O secretariado de Nísia atende o princípio da diversidade, conforme a orientação dada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Por causa disso, nomeou o indígena Weibe Tapeba para coordenar a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai). Além dele, três mulheres fazem parte do primeiro escalão do Ministério na Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (Ethel Maciel); na Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (Isabela Pinto) e na Secretaria da Informação e Saúde Digital (Ana Estela Haddad).

Por causa da ação ideológica do governo anterior, razão da crítica feita no discurso de posse, Nísia destacou que a vacinação voltará ao centro das preocupações do ministério. Ao atacar o que classificou como o desmonte do Plano Nacional de Imunização (PNI), a ministra entendeu que a pasta precisa de um departamento específico para a imunização. O setor será comandado pela médica Ana Goretti, cujo objetivo será fortalecer as ações do PNI.

A ministra enfatizou os baixos índices de vacinação e que uma das urgências da pasta é aumentar as coberturas vacinais e fortalecer o plano — que, hoje, está com todas as taxas das vacinas abaixo dos 70%, enquanto a meta é de 95%. Na proposta de fortalecimento do PNI, há a previsão de lançar um movimento dos embaixadores da vacinação do Brasil, que está sendo tratado, também, com outros ministérios. “Vacina não é um tema só da saúde, é uma grande urgência nacional e não pensamos só na covid”, enfatizou.

“A pandemia mostrou a nossa vulnerabilidade. O rei está nu. Precisamos afirmar, sem nenhuma tergiversação, e superar essa condição”, disse, referindo-se à necessidade de fortalecer a produção local e o complexo econômico da saúde, dando ao Brasil autonomia na produção de vacinas e fármacos.