Marrocos salva Copa da melancolia e faz justiça ao futebol africano

Invicta na Copa, com apenas um gol sofrido em cinco jogos, a seleção de Marrocos agora representa mais do que os árabes, a África ou o hemisfério Sul no Qatar.

Foram 92 anos de espera, mas a África chegou lá. Pela primeira vez em 23 edições de Copa do Mundo, uma equipe do continente se classificou para as semifinais, garantindo-se entre as quatro melhores seleções. O feito é de Marrocos, que venceu Portugal por 1 a 0, neste sábado (10), no estádio Al Thumama, em Doha, no Qatar.

A campanha dos marroquinos faz justiça a uma região que demorou a se impor e ser devidamente reconhecido com a bola nos pés. Por muitas décadas, o futebol africano não era respeitado nem dentro nem fora de campo. As seleções do continente nem sequer foram convidadas para a primeira Copa do Mundo, no Uruguai, em 1930.

A estreia africana só ocorreu no Mundial-1934, na Itália. O Egito disputou uma única partida e perdeu para a Hungria por 4 a 2. Com a eliminação precoce, o continente teve de esperar 34 anos para voltar a uma Copa, em 1970, com o Marrocos. Com um elenco fraco, o time foi desclassificado na primeira fase, mas comemorou seu primeiro ponto no torneio – um empate por 1 a 1 com a Bulgária.

Só que no Mundial seguinte, o de 1974, na Alemanha, o péssimo desempenho do Zaire criou o estigma de que o futebol africano era previsível e frágil – uma espécie de segundo nível da bola. Num único jogo, o Zaire chegou a tomar nove gols da Iugoslávia.

A partir da Copa-1978, a Fifa passou a reservar cada vez mais vagas para seleções da África, num esforço mais político que esportivo. Em campo, a Tunísia surpreendeu com um empate com a então campeã Alemanha e uma vitória sobre o México – a primeira de uma seleção africana em Mundiais.

Em 1982, na Espanha, a África duas seleções classificadas pela primeira vez. Camarões empatou seus três jogos e deixou a competição invicto. A Argélia, do craque Madjer, venceu a Alemanha e o Chile, mas perdeu a vaga à segunda fase no saldo de gols. Mesmo sem chegar às quartas-de-final, o futebol africano já não era um saco de pancadas.

Nas Copas seguintes, os tabus começam a cair. A seleção de Marrocos avança até as quartas em 1986, no México, após terminar a primeira fase em primeiro lugar num grupo com Inglaterra, Portugal e Polônia. Mas, no mata-mata contra a Alemanha, Marrocos sofreu um gol de falta aos 42 do segundo tempo e se despediu do torneio.

Já em 1990, na Itália, Camarões vai até as quartas-de-final embalado pelos gols de Roger Milla. A até então inédita classificação às semifinais bateu na trave: os camaroneses venciam a Inglaterra por 2 a 1 até os 38 do segundo tempo, mas tomaram o empate no tempo normal e a virada na prorrogação. Mesmo assim, saíram de campo muito aplaudidos.

Os “cochilos” de Marrocos e Camarões mudaram o estereótipo do futebol africano. Se agora havia qualidade nos jogadores – sobretudo do meio de campo para frente –, também havia ingenuidade, imaturidade, displicência. Esta seria a suposta razão pela qual os africanos fracassavam em jogos decisivos na categoria principal, mas tinham títulos e tradição nas categorias sub-17 e sub-20, bem como no futebol olímpico.

A má fama, eivada de preconceito, foi renovada em 1994, na Copa dos Estados Unidos, quando a Nigéria deixou escapar a vitória sobre a Itália, nas oitavas, aos 43 minutos do segundo tempo. No Mundial-2002, Senegal repetiu o feito de Camarões e disputou as quartas, mas também caiu na prorrogação para Turquia.

Gana também parou numa prorrogação de quartas-de-final, em 2010 – e seu caso foi ainda mais dramático: Asamoah Gyan teve a chance de converter um pênalti já nos acréscimos do tempo extra contra o Uruguai. A bola explodiu no travessão, o jogo foi para a decisão por pênaltis e os uruguaios venceram.

A África foi mal nos últimos Mundiais. A melhor seleção do continente na Copa-2014, a Nigéria, terminou a competição no Brasil apenas em 14º lugar. Em 2018, na Rússia, nenhum dos times africanos passou da primeira fase.

Para 2022, os apostadores previam a eliminação de Marrocos na primeira fase, ainda mais num grupo com Croácia e Bélgica, que foram, respectivamente, vice-campeão e terceiro lugar no Mundial passado. Mas a seleção marroquina segurou um empate duro diante dos croatas, venceu os belgas com dois gois na fase final do jogo e terminou em primeiro no grupo. Nas quartas, a vítima foi a Espanha, nos pênaltis. Agora Marrocos despachou Portugal.

Invicta na Copa, com apenas um gol sofrido em cinco jogos, a seleção de Marrocos agora representa mais do que os árabes, a África ou o hemisfério Sul no Qatar. Ainda que não sejam favoritos contra a França, os marroquinos já salvaram este Mundial da melancolia. Agora, é mais difícil não torcer por Marrocos, pelo fim dos tabus e, claro, pelo fim dos preconceitos contra o futebol africano.

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