Os agrotóxicos silenciando a primavera. Por Dermeval Saviani

Hoje é Dia Mundial de Luta contra os agrotóxicos. Este dia 3 também marca os 60 anos da primeira edição do livro Primavera silenciosa, de Rachel Carson.

Neste dia 03 de dezembro celebramos o Dia Mundial de Luta contra os agrotóxicos. A definição dessa data decorreu da tragédia ocorrida em 3 de dezembro de 1984 quando uma explosão provocou o vazamento de 40 toneladas de veneno de uma fábrica da Union Carbide em Bhopal, na Índia. De acordo com um informe da ABRASCO, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, já na primeira noite após a explosão três mil e oitocentas pessoas morreram pela contaminação provocada pelas 40 toneladas de Isocianato de Metilo (MIC) que vazaram da fábrica, sendo que oito mil morreram ao longo da semana. E a estimativa oficial é que desde o infausto acontecimento mais de 20 mil pessoas perderam a vida.

Mas neste ano também estamos comemorando os sessenta anos da primeira edição do livro Primavera silenciosa, da bióloga e pesquisadora norte-americana Rachel Carson. Lançado em 1962 essa obra causou grande impacto revolucionando a percepção das questões ambientais chegando, inclusive, a provocar a mudança da legislação nos Estados Unidos que acabaram banindo o DDT de todo o seu território.

Traduzido no Brasil, o referido livro foi publicado em 1964 pela Editora Melhoramentos, de São Paulo, estando atualmente disponível uma nova edição lançada em 2010 pela Editora Gaia, também de São Paulo. A edição de 1964 contém ilustrações no início de cada capítulo que. infelizmente, não constam na edição de 2010. Como a publicação das Edições Melhoramentos não está mais em circulação, a paginação dos capítulos que indico, a seguir, é da publicação da Editora Gaia.

O livro é precedido por uma Introdução de Linda Lear contendo, ao final, um posfácio de Edward O. Wilson.

Por meio da metáfora “uma fábula para amanhã” (Cap. 1, p. 20-21), a autora coloca a questão do uso dos agrotóxicos concluindo o capítulo afirmando que o livro é uma tentativa de explicação para o seguinte problema: “Que foi que já silenciou as vozes da primavera em inúmeras cidades dos Estados Unidos? ”. E, diante da “obrigação de suportar” (Cap. 2, p. 22-28), os “elixires da morte” (Cap. 3, p. 29-46), a população tem o direito de saber para não precisar mais suportar os efeitos do uso de agrotóxicos na agricultura. E, diante desse direito, a autora expõe, no livro, nos capítulos seguintes, de forma bastante completa, o conjunto dos conhecimentos já disponíveis sobre o tema.

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Compulsando resultados de grande número de pesquisas realizadas por investigadores de diversos países, Carson expôs a extensão da ação dos agrotóxicos que contaminaram as “águas de superfície e mares subterrâneos” (Cap. 4, p. 47-56), “os reinos do solo” (Cap. 5, p. 57- 64), pois, uma vez contaminado o solo, as plantas terrestres não podem crescer “e sem plantas, nenhum animal conseguiria sobreviver” (p. 63). E, atingindo “o manto verde da terra” (Cap. 6, p. 65-82), diante dessa “devastação desnecessária” (Cap.7, p. 83-95) “nenhum pássaro canta” (Cap. 8, p. 96-116). Eis aí a motivação do título de toda a obra: “Primavera silenciosa”.

Em “rios de morte”, (Cap. 9, p. 117-136), a autora mostra a matança dos peixes fluviais e marítimos, pois as contaminações dos rios desaguam nos mares ampliando a mortandade. E os venenos, “indiscriminadamente, procedendo dos céus” (Cap. 10, p. 137-151) por meio das pulverizações aéreas liquidam não apenas as pragas, mas contaminam também as regiões para além das áreas das culturas agrícolas que se queria proteger. Mas “a contaminação do nosso mundo não é apenas uma questão de pulverização em grande escala” (p. 181). Com essa frase Rachel Carson inicia o mencionado capítulo 10 em que mostra como estamos sujeitos diuturnamente à exposição de venenos em pequena escala o que faz com que nos envenenemos progressivamente pela acumulação de substâncias químicas nocivas que se instalam em nossos corpos. A análise minuciosa desse processo é objeto do Capítulo 11, denominado “para lá dos sonhos dos Bórgias” (p. 152-161) em alusão à família Bórgia que gerou vários papas na época do Renascimento (séculos XV e XVI) e ficou negativamente famosa pela prática de vários tipos de crimes, com destaque para o envenenamento com o uso de arsênico. Em consequência dessa disseminação dos agrotóxicos “o preço humano” (Cap. 12, p. 162-171) a pagar tem sido excessivamente alto. Assim é que, “por uma janela estreita” (Cap. 13, p. 172-186) devemos observar as células de nosso corpo em suas minúsculas estruturas com as reações das moléculas em seu interior para compreendermos as implicações da introdução de substâncias químicas estranhas no interior de nosso corpo. Considerando a ameaça de que “um em cada quatro” (Cap. 14, p. 187-207) grupos de indivíduos desenvolverá algum tipo de câncer, a autora explicita com bastante detalhe a grande variedade de componentes químicos contidos nos agrotóxicos que podem causar câncer.

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Enfim, constatando que “a natureza contra-ataca” (Cap. 15, p. 208-221) com os insetos se fortalecendo para neutralizar o efeito dos agrotóxicos reagindo como “ribombos de uma avalanche” (Cap. 16, p. 222 232), Rachel Carson fecha seu livro com “a outra estrada” (Cap. 17, p. 233-249) mostrando que a estrada que vem sendo seguida por longo tempo é “ilusoriamente fácil”. Já a estrada “menos transitada” é a última e “a nossa agora única oportunidade de chegar a um destino que assegure a preservação da nossa Terra”. Considera, então, os caminhos que nos devem conduzir à exclusão do uso de agrotóxicos na produção dos alimentos de que necessitamos para preservar nossa vida e, com ela, preservar a vida de todos os seres que habitam nosso planeta.

Em 2011 o cineasta Sílvio Tender lançou o documentário “O veneno está na mesa” em que denunciou o uso abusivo de agrotóxicos com seus efeitos deletérios. E, em 2014, Sílvio Tender lançou “O veneno está na messa – II” apresentando as formas de produção de alimentos sem o uso de agrotóxicos, o que me leva a observar que, na verdade, o título desse documentário deveria ser não “o veneno está na mesa”, mas “o veneno sai da mesa”.

Nessa época em que a luta contra os agrotóxicos deve ser maximamente intensificada tendo em vista o enorme retrocesso provocado pela grande quantidade dos novos tipos de agrotóxicos que foram liberados pelo governo Bolsonaro resulta de grande proveito a leitura do livro pioneiro de Rachel Carson, “A primavera silenciosa” e a retomada de ambos os documentários de Silvio Tender. Que a comemoração neste dia 3 de dezembro do “Dia Mundial de Luta contra os Agrotóxicos” seja motivo de uma grande mobilização pela revogação dos decretos de liberação e pela exclusão total do uso de agrotóxicos na agricultura de nosso país.

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