Transição vai denunciar abuso de poder econômico de Bolsonaro no Auxílio Brasil 

Grupo Técnico da Transição acusa inflação de beneficiários às vésperas da eleição o que indicia fraude e crime eleitoral.

A equipe de transição do presidente eleito, Lula (PT), relatou nesta quinta-feira (1º), diversas irregularidades documentadas no Ministério da Cidadania, que deverão ser encaminhadas como denúncia a órgãos como a Controladoria Geral da União (CGU), Tribunal de Contas da União (TCU), Ministério Público (MP) e Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Segundo apontou o Grupo Técnico de Desenvolvimento Social e Combate à Fome do Gabinete de Transição, os dados verificados indiciam a possibilidade de fraude e crime eleitoral.

O grupo trabalha há 16 dias na produção de um relatório que registra e formata dados a respeito da situação atual do Ministério da Cidadania para que o diagnóstico sirva de ponto de partida para o planejamento do novo governo. O tema da Assistência Social e combate a fome tem sido mencionado por Lula como sua prioridade de início de mandato.

Segundo afirmou o coordenador do Gabinete, Aloízio Mercadante, e a senadora Simone Tebet (MDB-MS), do GT, o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) vai ser acionado legalmente, por abuso de poder econômico durante as eleições na gestão do Auxílio Brasil.

Entre os indícios, Mercadante citou a inclusão de 2,5 milhões de pessoas no programa de distribuição de renda, pouco antes da eleição. Esses beneficiários deverão passar por revisão de cadastro com possibilidade de serem retirados do programa, caso estejam irregulares. A situação pode configurar fraude, caso duas pessoas da mesma família tenham se cadastrado independentemente com o objetivo de acumular benefícios.   

“O processo pode gerar inclusive inelegibilidade de algumas autoridades públicas se comprovar que elas tinham relação direta ou tinham fim eleitoreiro”, afirmou Simone.

Fraude, má gestão ou má-fé?

Embora o governo tente acusar os beneficiários de estarem fraudando o programa, a ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, explicou durante a entrevista que tudo indica que a explosão de beneficiários unipessoais (aqueles que moram sozinhos) foi provocada pelo próprio governo. Pior, gerou também a exclusão gigantesca de beneficiários que pode ser equivocada, também.

Segundo Tereza, em dezembro de 2018, um mês antes de Bolsonaro assumir a Presidência, havia 1,8 milhão de beneficiários cadastrados como “unipessoais”, ou seja, registrados de forma individual e por CPF. Esse dado se manteve constante durante os 18 anos do Bolsa Família até o final de 2021, quando começou a sofrer elevações, saltando bruscamente para 5,5 milhões em outubro deste ano, véspera da eleição. O aumento registrado foi de 197%.

“Um milhão de pessoas se cadastraram em um mês, mudando completamente o perfil que nós tínhamos. Isso aconteceu por quê?”, realçou a ex-ministra, ao observar que o salto repentino se deu nas vésperas da eleição.

Para ela, a magnitude dos números revela que não se trata de uma prática dos usuários, mas de mecanismo formal do programa do governo. Portanto, ao contrário do que o governo diz, a culpa seria menos dos beneficiários do que do próprio Ministério.

Desorganização do CadÚnico

Tereza indicou que a mudança tem relação com a obrigatoriedade imposta pelo atual governo de registro por meio do CPF. O problema, segundo ela, começa no pré-cadastro feito via aplicativo, que puxa os dados dos usuários pelo CPF e encaminha a população para um registro individual da demanda.  

“Nossa avaliação, depois de olhar os dados, é de que a população foi induzida a se cadastrar dessa forma. Portanto, não é um malfeito da pessoa pobre, mas um malfeito do Estado, do governo do presidente Bolsonaro. A má gestão e a incompetência levaram a distorções e ao desperdício, e não um pretenso comportamento da população, que quis se aproveitar pra isso. 

A ex-ministra disse que a política de transferência de renda passou por oito mudanças profundas nos últimos três anos, o que contribuiu para os problemas mencionados. “Isso gera um nível de desorganização das políticas públicas e de confusão para os beneficiários. Foram oito mudanças profundas, e não de detalhes”, frisou.  

A desarticulação federativa, segundo a equipe, gerou também uma desinformação dos próprios técnicos que atuam na cadeia de atendimento à população. “Por que o Bolsa Família funcionou durante 18 anos tão bem e virou uma referência? Exatamente porque ele organizava esse conjunto de atores via pacto federativo e via Suas [Sistema Único de Assistência Social]”, disse Tereza, ao acrescentar que atualmente a capacidade da central de atendimento do ministério não chega a 10% da demanda recebida via ligações.

Ela lembrou que os próprios órgãos de controle apontam a necessidade de redesenhar o Auxilio Brasil e corrigir o Cadastro Único, a partir dos parâmetros do Bolsa Família.

“Isso é resultado de uma ação mal organizada, mal desenhada, mal divulgada, que orientou mal os beneficiários, levando a distorções e desperdício. Por que o governo não viu isso? Esse dado é público. Qualquer sistema de controle – que deve funcionar no Ministério, esperamos – poderia ter identificado isso imediatamente e exigiria que, já em dezembro, o governo tivesse tomado alguma atitude. Não tomou. Pior, o processo continua”, emendou.

Tereza sugere que, embora tivesse percebido em outubro a explosão de beneficiários individuais, o governo deixou para emitir só agora um pedido de explicação dos próprios beneficiários, o que sobrecarrega o próximo governo com uma medida irracional. “Os municípios vão receber uma bomba de ter que visitar casa por casa de beneficiário para ver se ele mora sozinho. A trapalhada continua”, criticou.

Tereza também explicou que a exigência de cadastro por CPF também atrapalha o Cadastro Único, gerando problemas para os programas implementados por estados e municípios que se baseiam na plataforma de dados, utilizado como referência nacional para políticas de assistência social. “Nós achamos que, para além da incompetência, do completo descaso com as políticas públicas, este governo também agiu com má-fé”, afirmou.  

Orçamento simbólico

Outro problema identificado pelo GT remete à questão orçamentária. A senadora disse que Bolsonaro deixou a pasta com uma previsão de verbas 96% menor para 2023. Já a ex-ministra Tereza acrescentou que as verbas deixadas pelo governo Bolsonaro para a área de assistência social em 2023 dariam apenas para dez dias de operação. 

“Hoje praticamente todo o orçamento do ministério está voltado para o Auxílio Brasil e o auxílio-gás. Todas as políticas públicas relacionadas a emprego, renda, qualificação, inclusão produtiva, etc. ficaram em segundo plano”, disse a parlamentar.

Tereza apontou também a gravidade do desmonte do programa de cestas básicas. O governo começa o ano sem os contratos de cestas básicas de Defesa Civil, para o início de ano, em que ocorrem chuvas frequentes. “Assumiremos sem contratos para cestas de emergência, que encerra em 5 de janeiro, sem possibilidade de aditivo. Além disso, a Conab não tem estoque de cestas”, lamentou, falando em “legado maldito”. 

Ela disse que a pasta precisaria, por exemplo, de R$ 70 bilhões de recursos extras para manter os R$ 600 do Bolsa Família e para conceder mais R$ 150 por criança de até 6 anos, assim como precisaria de R$ 2 bilhões para o auxílio-gás e de mais 2,6 bilhões para o Sistema Único de Assistência Social (Suas). Há também carência de recursos para outras políticas de relevância, como é o caso da construção de cisternas e de distribuição de alimentos.

Terra arrasada

A ex-ministra do Desenvolvimento Social, Márcia Lopes, integrante do GT, relatou que os quase 40 milhões de famílias, ou cerca de 100 milhões de pessoas que demandam proteção social, assistem a um desmonte do SUAS, em vez de incremento para atender a demanda.

“A partir do atual governo, nenhum serviço mais foi ampliado. Ao contrário, o que temos visto é um fechamento de serviços. Temos uma situação de terra arrasada, um cenário de muita fome. Há 125 milhões em situação de insegurança alimentar”, disse.

“Para além da questão do dinheiro, tem um conjunto de desmontes que aconteceram e tem um conjunto de alertas importantes. A lista é extensa”, disse a ex-ministra Tereza.

Mercadante citou o modo como o governo implementou um programa de crédito consignado para o Auxílio Brasil, em que o beneficiário foi buscar R$ 2.500 na Caixa Econômica, na véspera do segundo turno eleitoral, pensando que está recebendo um bônus. O TCU acendeu o alerta de total falta de gestão de risco nos empréstimos. A falta de informação acaba não dimensionando a dívida que estas pessoas muito pobres estão adquirindo, com comprometimento de 40% de seu Auxílio, a partir de 2023, além dos juros mais altos da categoria.

“Diante do alerta do TCU, a Caixa interrompeu o programa e acha que ninguém viu. Nós vimos e vamos representar aos órgãos de controle rigorosa apuração. Eleição é coisa séria, tem que ter paridade de armas, e não pode usar recursos públicos para comprar votos”, disse o ex-ministro.

O premiado programa de cisternas foi distorcido, deixando de seguir seu marco legal. Tereza relata que, em agosto, o governo organiza uma ata de registro de preços bilionária pela Funasa para cisternas de polietileno, denunciadas por órgãos de controle como caras e disfuncionais, comparada com as cisternas de placas do marco legal. “Em pleno fim do governo, o programa abandonado passa a destinar mais R$ 800 mi para cisternas de plástico no fim do governo”, disse.

Embora tenha evitado pontuar toda a lista, ela citou pagamento de benefícios em duplicidade, erros de exclusão de beneficiários dos programas, as distorções do Cadastro Único, ampliação das filas dos Centros de Referência e Assistência Social (CRAS), defasagem na central de atendimento dos programas e ausência de apoio e orientação às famílias por conta de uma “desarticulação federativa”.