Recorde de endividamento revela potencial de consumo reprimido

A economista Patrícia Costa destaca que o alto consumo deve colocar o Brasil num círculo virtuoso, passada essa fase de baixo emprego, alta inflação e juros, e redução da oferta

O endividamento da população brasileiro atingiu o maior patamar da série histórica da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), iniciada em janeiro de 2010, e o maior avanço anual desde 2016, após o golpe contra Dilma Rousseff. Apesar disso, a economista do Dieese, Patrícia Costa, é otimista sobre as possibilidades de 2023, quando assume o novo governo do presidente Lula.

“O modo como as pessoas estão rolando a dívida, dificulta sair disso, do jeito que as coisas estão. Para sair dessa incapacidade de consumir e pagar suas dívidas é preciso uma outra dinâmica na economia, com emprego e renda, que a gente acredita que deve ocorrer no médio prazo”, afirmou ao Portal Vermelho.

Transição econômica

Para ela, todos os elementos que pressionam o consumidor, hoje, são resultados de uma política econômica que promete mudar no médio prazo. Ela lembra que o novo governo aponta para investimentos, que devem gerar emprego, programas de distribuição de renda e valorização de salários, o programa Desenrola Brasil, para reduzir o endividamento, mudança na política de preços dos combustíveis, e um controle de estoques e estímulo à oferta de alimentos que pode reduzir a inflação. 

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O brasileiro de baixa renda tem se endividado das piores formas, ao comprar alimentos básicos empurrando no cartão de crédito, a juros exorbitantes. O cartão de crédito lidera disparado, com 86,2% das dívidas em outubro de 2022.

Por outro lado, o governo Bolsonaro estimula o endividamento comprometendo a renda limitada do Auxílio Brasil em empréstimos consignados. Se a pessoa perder o benefício, ainda terá que pagar o empréstimo com os juros bancários, o que pode ser considerado perverso.

“As pessoas vivendo na informalidade e no rendimento precário não conseguem ter renda para sustentar uma família, se uma cesta básica individual chega a R$ 700”, afirma, lembrando o percentual enorme de pessoas vivendo com salário mínimo.

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Em outubro, o percentual de brasileiros com dívidas atrasadas avançou 4,7 pontos percentuais no período de 12 meses e alcançou o recorde de 30,3%, contra 25,6% em outubro de 2021. Os dados são da Peic (Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor), que foi divulgada nesta segunda-feira (7) pela CNC, e representa o maior patamar de inadimplentes desde o início da série histórica, em janeiro de 2010.

Além disso, outros 10,6% dos brasileiros que participaram da pesquisa responderam que não terão condições de pagar as dívidas no próximo mês e permanecerão inadimplentes, ante 10,1% em outubro de 2021 e 10,7% em setembro deste ano. Durante a campanha eleitoral, Lula apresentou o Desenrola Brasil, em que o governo vai oferecer crédito público para credores dispostos a reduzir as dívidas aos inadimplentes. Mas Patrícia vê muitas outras ferramentas disponibilizadas para o governo mudar este cenário.

Potencial de demanda

Embora este alto endividamento seja ruim para a economia, para o comércio, para a indústria e até para os bancos, revela uma dimensão potencial de demanda que Patrícia destaca. “Isso traduz uma realidade em que as pessoas precisam consumir e não conseguem. Se por um lado é ruim, por outro, a transferência de renda tem um potencial de gerar uma nova demanda. É uma possibilidade muito importante, se o governo equacionar esta questão do endividamento e da inflação das despesas básicas, aumentando as possibilidades das pessoas comprarem mais e colocando o Brasil num círculo virtuoso”.

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Para a economista, este alto endividamento é um bom sinal do potencial de alavancar a economia por meio da demanda. Algo que é desconsiderado pelo atual governo, que só desestimula o consumo ao concentrar renda, não gerar emprego, os preços dos alimentos são baseados em custos internacionais, assim como o combustível tem como único objetivo gerar lucro para poucos acionistas. 

“O diagnóstico da inflação no Brasil, tradicionalmente, é de demanda. Então, o governo trata ela por meio de aumento de juros, que atraem capital, mas reduzem o consumo e a atividade econômica, deixando de gerar emprego e renda. O que tivemos ao longo desses dois anos foi um problema de oferta”, disse ela sobre a inflação de alimentos. Ela conta que o Brasil tem importado leite e derivados, o que torna inacessível o produto para as famílias de baixa renda. 

“Esse potencial de renda que hoje é endividamento pode ser o motor que vai fazer a economia crescer, se o governo equacionar todas essas questões”, resume. De qualquer forma, os economistas vêem o início de ano com muito endividamento, ainda, devido aos pagamentos sazonais de início de ano —caso do IPTU e do IPVA e das renovações de matrículas e mensalidades escolares das crianças.

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