Como Lula virou o jogo contra Bolsonaro nas redes sociais

A esquerda teve outra evidência de que a política brasileira e as campanhas eleitorais estão cada vez mais vinculadas não apenas às ruas – mas também às redes

Pouca gente entendeu por que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) questionou Jair Bolsonaro (PL) sobre o aborto, nesta sexta-feira (28), durante o debate entre os presidenciáveis na TV Globo. Se o ex-presidente estava com o controle do tempo e da discussão, por que trazer para o embate uma das pautas-bomba que o adversário mais usa contra o petista?

Já fazia mais de dois minutos que os -dois candidatos falavam de políticas para a agricultura familiar. Do nada, interrompendo o assunto, Lula lembrou um discurso feito em 1992 pelo então deputado Bolsonaro, na Câmara Federal. Na ocasião, criticando a “multidão de brasileiros subnutridos sem condições de servir a seu país”, Bolsonaro defendeu a distribuição de “pílula de aborto” como método de controlo de natalidade.

Não, não foi deslize de Lula. Ao constranger Bolsonaro – que ficou visivelmente surpreso com a pergunta –, o ex-presidente estava ativando uma ação para as redes sociais. Além de desmoralizar o atual presidente, Lula buscava neutralizar uma possível ofensiva bolsonarista de fake news na véspera de eleição. Antes de qualquer reação organizada pelos oponentes, a coligação Brasil da Esperança já disparava um vídeo com o discurso pró-aborto de Bolsonaro.

Ainda no debate, o presidente tentava justificar seu velho ponto de visto. Primeiro, Bolsonaro se enrolou ao dizer que falava de “pílula do dia seguinte”, e não de um “abortivo”, como o remédio Cytotec. Falso: Bolsonaro não se referia à pílula do dia seguinte – e a distribuição do vídeo logo após a explicação dele no debate ajudou a desmascará-lo. Depois, já irritado, o presidente reconheceu que já defendeu, sim o aborto, mas “30 anos atrás”. E emendou: “Eu posso mudar”.

Assim, por conta própria, Bolsonaro municiou a operação lulista nas redes. A missão “Bolsonaro + aborto” – que rendeu uma onda de buscas no Google associando esses dois termos – foi 100% idealizada pela coordenação de redes da coligação. Lula hesitou em abraçar a ideia, mas se convenceu de que precisava de mais blindagem na reta final.

Não foi a primeira vez que o feitiço das redes se virou contra o feiticeiro Jair Bolsonaro. Com a indispensável ajuda de nomes como o influenciador Felipe Neto e o deputado federal André Janones (Avante-MG), a campanha de Lula acordou, neste segundo turno, para as redes sociais.

Em 18 de outubro, quando o ex-presidente foi ao canal Flow Podcast e bateu o recorde de audiência no YouTube, com mais de 1 milhão de usuários acompanhando simultaneamente sua entrevista, Janones ironizou: “Eu planejei fazer um vídeo todo emocionado comemorando, mas foi tão fácil que nem teve graça! Chupa @CarlosBolsonaro”. O recorde anterior de audiência pertencia ao presidente, que foi entrevistado no Flow em agosto.

A parceria entre Felipe Neto e Janones teve uma função tripla: mobilizar a militância nas redes, rebater rapidamenteas fake news contra Lulae deixar Bolsonaro permanentemente nas cordas. Janones privilegiou a pauta econômica e foi beneficiado com o sucessivo vazamento à imprensa de documentos internos do Ministério da Economia. Num deles, veio a público que a pasta estudava os impactos do congelamento do salário mínimo.

Já Felipe Neto alimentava a narrativa em torno das “pautas de costumes”. Quando Bolsonaro disse que “pintou um clima” entre ele e adolescentes venezuelanas refugiadas no Brasil, o influenciador foi um dos primeiros a denunciarem o possível crime de pedofilia cometido pelo presidente. Era véspera de dia de debate na Band, e Bolsonaro se sentiu obrigado a fazer uma live, de madrugada, para rebater as acusações.

No episódio Roberto Jefferson, Bolsonaro também se sentiu obrigado, mais de uma vez, a mudar a narrativa. As redes do presidente, com dezenas de milhões de seguidores, eram pautadas novamente por opositores. Se por um lado não teve perdas significativa de votos, Bolsonaro tampouco conseguiu enfrentar à altura um presidenciável como Lula, que tinha aberto mais de 6 milhões de votos de vantagem no primeiro turno.

Com o ex-presidente na liderança das pesquisas, o debate na TV Globo emergiu como a oportunidade derradeira para Bolsonaro tentar a virada. Entre seus aliados, apostava-se que, durante o encontro, haveria uma dobradinha entre Lula e Janones – um nos Estúdios Globo, outro nas redes – para reavivar o caso Gustavo Bebianno.

Auxiliar dos mais próximos de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018, o advogado virou ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, mas logo se rebelou contra as estratégias criminosas do bolsonarismo. Já fora do governo, morreu em 2020, vítima de um infarto fulminante.

Ao longo da semana passada, Janones declarou estar com o celular de Bebianno e prometeu revelar trechos “bombásticos” de conversas gravadas. “Mortos não falam, mas os celulares deles sim! Lembra desse dia Carlinha?”, tuitou Janones na terça-feira (25), dirigindo-se à deputada bolsonarista Carla Zambelli (PL-SP). “Isso aqui é só o frame de um vídeo, e de onde saiu esse tem muito mais! Apenas aguarde! Haverá choro e ranger de dentes!”

Até o momento, nada foi divulgado – mas as redes bolsonaristas ficaram na defensiva, à espera do bombardeiro. Como num tabuleiro de xadrez, Janones pareceu encurralar o outro lado apenas com sinais. “A ameaça é mais forte que sua execução”, dizia o enxadrista Aaron Nimzowitsch.

Ao fim do segundo turno, mesmo com menos seguidores e recursos do que Bolsonaro, Lula virou o jogo nas redes sociais. Vencendo ou perdendo as eleições neste domingo (30), a esquerda já teve outra evidência de que a política brasileira em geral e as campanhas eleitorais em particular estão cada vez mais vinculadas não apenas às ruas – mas também às redes. Bolsonaro que o diga!

Autor