Com baderna em Aparecida, Bolsonaro dá o maior tiro no pé no 2º turno

“Esse cidadão (Bolsonaro) usa o nome de Deus em vão”, discursou Lula em Salvador

Jair Bolsonaro (PL) escolheu o feriado de 12 de outubro, Dia de Nossa Senhora Aparecida, para fazer uma espécie de aceno definitivo ao eleitorado católico do País. Nos últimos anos, o presidente e candidato à reeleição consolidou as igrejas evangélicas – sobretudo as chamadas “neopentecostais” – como importantes redutos de apoio e voto. Mas seu apelo entre os “não evangélicos” mingua desde o início de seu governo – e minguou ainda mais durante a pandemia de Covid-19.

Não é por acaso que as pesquisas de intenção de voto revelam uma larga vantagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nesses segmentos “não evangélicos”. No último levantamento Ipec, divulgado na segunda-feira (10), Lula superava Bolsonaro entre os católicos por 60% a 34%. Na realidade, se a eleição presidencial fosse restrita aos seguidores da Igreja Católica, o petista teria vencido a disputa já no primeiro turno.

Embora tenha conquistado 6,1 milhões de votos a mais do que Bolsonaro na votação de outubro e seja o favorito nesta corrida presidencial, Lula tem aproveitado o segundo turno para diminuir a rejeição dos evangélicos a seu nome. Uma rejeição baseada, invariavelmente, em preconceitos infundados ou mesmo em fake news – como o boato de que a esquerda, uma vez no poder, vai fechar igrejas.

Na comparação com o primeiro turno, as agendas, os materiais e os discursos de Lula voltados a esse segmento religioso se multiplicaram. O ex-presidente não vai reverter toda a vantagem de Bolsonaro entre os evangélicos – que, conforme o Ipec, é hoje de 63% a 31%. Mas Lula, para além de desmentir as inverdades lançadas por pastores e bolsonaristas, quer sobretudo se apresentar como um candidato de todos, que defende o Estado laico e a liberdade religiosa.

Esse viés ecumênico e amplo da candidatura Lula, reforçado pela presença do ex-tucano Geraldo Alckmin (PSB) na chapa presidencial, não se resumiu à religião. Nos meios políticos, econômicos, acadêmicos, jurídicos, artísticos e esportivos, Lula tem recebido apoio até de nomes historicamente críticos aos governos encabeçados pelo PT. São adesões mais abertas e explícitas, quase todas centradas na tarefa histórica e inadiável de acabar com o governo de destruição de Bolsonaro.

Em contrapartida, há pelo menos dois setores – o evangélico e o agronegócio – em que a pressão bolsonarista tem inibido declarações de voto em Lula. A Confradesp (Convenção Fraternal das Assembleias de Deus do Estado de São Paulo) chegou a propor que fiéis simpáticos a Lula fossem julgados e punidos. Propagandas enganosas passaram a associar o ex-presidente ao satanismo. Tudo em conluio com o “gabinete do ódio” de Bolsonaro.

Assim, os gestos da campanha Lula em direção aos evangélicos fazem sentido, seja para restabelecer a verdade, seja para reduzir danos e evitar prejuízos maiores, seja para criar vínculos mais efetivos entre o futuro presidente e uma grande faixa do eleitorado. Segundo o Datafolha, 27% dos eleitores brasileiros se declaram evangélicos. Repito: ainda que os não evangélicos correspondam a uma maioria de 73% do eleitorado, Lula tem de ser – e será – o presidente de todos os brasileiros.

Não dá para comparar o compromisso democrático do ex-presidente com o atual. O constante flerte de Bolsonaro com medidas autoritárias supera até o de presidentes de períodos ditatórias do Brasil.

Mas, supondo haver algum bom senso e certo pragmatismo na campanha bolsonarista à reeleição, a ida do presidente ao santuário de Nossa Senhora Aparecida, nesta quarta-feira (12), deveria ter um sentido mais objetivo. Esperava-se que, no mínimo, Bolsonaro fosse respeitoso com os católicos, que desde 2019 aguardavam a oportunidade de celebrar o Dia da Padroeira do Brasil em Aparecida, no interior paulista.

Não faltaram avisos. Na semana passada, Bolsonaro já havia causado desconforto na Igreja Católica ao participar do Círio de Nazaré, no Pará, sem ser convidado e à revelia da organização. Várias autoridades – inclusive Lula e o governador reeleito do Pará, Helder Barbalho (MDB) – denunciaram o “uso político” da religião.

Na terça (11), sem mencionar Bolsonaro diretamente, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) declarou, em nota, que condenava a prática: “Lamentamos, neste momento de campanha eleitoral, a intensificação da exploração da fé e da religião como caminho para angariar votos. Momentos especificamente religiosos não podem ser usados por candidatos para apresentarem suas propostas de campanha e demais assuntos relacionados às eleições”.

A despeito do recado, o presidente também foi “de bicão” à Aparecida, onde provocou aglomerações e tumultos neste 12 de outubro. Sua presença na missa solene atrapalhou a leitura da homilia. Do lado de fora da basílica, bolsonaristas de verde-amarelo consumiam bebida alcoolica, proferiam discursos de ódio e palavras-de-ordem eleitoreiras, ameaçavam fiéis com camisas vermelhas e provocavam até representantes da Igreja. Uma equipe da TV Vanguarda, afiliada da Rede Globo, foi hostilizada. A baderna prevaleceu.

O arcebispo de Aparecida, dom Orlando Brandes, ao ler a homilia, afirmou que “é preciso vencer os dragões do ódio e da mentira”. Trata-se do mesmo líder religioso que, em 2021, disse que “para ser ‘pátria amada’ não pode ser ‘pátria armada”. Na missa, Brandes também citou os dragões do desemprego, da fome e da incredulidade.

Em coletiva à imprensa, após a missa, ele acrescentou: “Os reis magos, quando visitaram Jesus, não usaram da religião e se converteram a Jesus. Pode ser que as autoridades recebam graças para se converter a bem do povo, porque vamos ter que acolher aqueles que foram eleitos”.

A campanha de Bolsonaro vai explorar – e manipular – cenas desse deplorável teatro protagonizado pelo presidente. Mas, neste segundo turno das eleições, o desnecessário confronto com a Igreja Católica é o maior tiro no pé dos bolsonaristas. “Esse cidadão (Bolsonaro) usa o nome de Deus em vão”, discursou Lula, à noite, em Salvador.

Como está atrás nas pesquisas, Bolsonaro precisa muito mais do voto católico do que Lula do voto evangélico. Porém, enquanto o ex-presidente “pisa em ovos” para não causar ruídos, o atual mandatário parece indiferente ao risco de passar por cima de liturgias e ritos. Mais do que nunca, a “guerra santa” pregada pela direita se revelou uma farsa.

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