Colômbia: líderes jovens são presos e Pacto Histórico alerta para risco de fraude

Às vésperas da eleição presidencial, o governo de Iván Duque faz nova onda de perseguições e órgão eleitoral nega até mesmo o direito da frente oposicionista fiscalizar o software de contabilização dos votos

Foto: Comunicasul

Jovens colombianos apoiadores de Gustavo Petro, candidato a presidente pela coalizão Pacto Histórico, estão sendo presos às vésperas do segundo turno das eleições na Colômbia. Ao mesmo tempo, a “justiça eleitoral” daquele país dificulta auditória no software de contabilização dos votos, denuncia a frente progressista.

“Estamos correndo o alto risco de uma fraude eleitoral, porque não confiamos na Registraduria – órgão que teria como missão garantir a legitimidade, transparência e eficácia do processo eleitoral -, pois não houve a permissão para que se fizesse a auditoria no software da contabilização dos votos”, afirmou a campanha de Gustavo Petro e Francia Márquez, candidata a vice.

Na mesma mensagem, o coordenador, advogado Alirio Muñoz, denuncia a detenção ilegal de “jovens das Primeiras Linhas – que se colocam à frente na resistência da repressão policial – divulgando a mentira de que vamos fazer sabotagens, protestos e que vamos colocar fogo no país. Isso não é verdade!”

Leia também: Colômbia: candidato governista quer ampliar jornada de trabalho para 10 horas

Presente em Bogotá, a ComunicaSul se dirigiu até Usme, uma das 20 sublocalidades em que está dividida a capital colombiana, e um dos principais berços da resistência contra a política de terrorismo de Estado do presidente Iván Duque, para entrevistar duas das principais lideranças do movimento, que denunciaram a “tentativa desesperada do governo de Iván Duque de eleger o seu candidato, Rodolfo Hernández, e evitar a vitória de Petro”.

Em suas ruas, e principalmente nos locais próximos à Ponte da Dignidade, deram  sustentação ao estallido social – levante popular que a partir de 2019 destampou a panela de pressão com que o governo e sua mídia vinham tentando impor goela abaixo da população as medidas de arrocho ditadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial. Ao mesmo tempo em que carregam consigo a dor das confrontações, trazem a esperança da mudança.

“Prova disso é a Praça da Resistência de Uzme, onde há um mural feito em braile com os fragmentos das bombas de gás lacrimogêneo e granadas de atordoamento lançadas sobre os manifestantes”, declarou David, um dos líderes do movimento. Desta forma, o jovem que deixa ser fotografado mas esconde o sobrenome, explicou: “os que não podem ler, podem sentir e reconhecer pelas letras que há o trabalho do coletivo de Bastão Branco, que trabalha especificamente em braile”.

Praça da Resistência de Uzme: fragmentos de bombas de gás lacrimogêneo e granadas atordoantes deixam viva a memória da luta | Foto: Comunicasul

“Vale lembrar que muitas dessas bombas lançadas contra os manifestantes eram vencidas, causando graves danos na pele. Eu não podia me aproximar muito porque tenho problemas respiratórios, mas de onde estava podia ver gases de diferentes cores: azul, verde, laranja, vermelho, e cada um causava um dano específico. A partir de então muitos jovens começaram a demonstrar problemas diferentes de saúde: respiratórios, na pele, nos olhos… A visão ficou reduzida permanentemente devido ao efeito destes gases, sem falar nos jovens que perderam um de seus olhos. Só em Bogotá foram 45 perdas oculares, das quais em Uzme foram quatro”, lamentou David.

Javier e os dias numa cela superlotada

Javier Silva, liderança jovem presa na Colômbia | Foto: Comunicasul

Outra das lideranças, Javier Silva falou do real significado do terrorismo de Estado aplicado pelo governo. “Tudo na tentativa desesperada de eleger o seu candidato, Rodolfo Hernández, e derrotar Gustavo Petro, para que tudo permaneça como está”, afirma, alertando que “além das dezenas de prisões, há processos contra mais de 200 jovens em todo o país, com a polícia anunciando mais capturas”.

Leia também: Oposição na Colômbia prevê investir na indústria, infraestrutura e educação

Javier sentiu a dor da injustiça no último dia 14 de fevereiro, uma segunda-feira, às 10 horas e 21 minutos, como recorda com pesar. Mesmo sem apresentar qualquer prova, a polícia o capturou de forma arbitrária e o manteve preso durante cinco dias em condições subumanas.

Cercado por agentes do Estado e elementos à paisana quando ia visitar o avô, “que se encontrava muito doente” no departamento de Caldas, foi conduzido à Unidade de Reação Imediata e depois à sede do Esquadrão Móvel Antidistúrbios (o temível e terrível Esmad, célebre por torturas, assassinatos e desaparecimentos), sendo jogado numa cela em que cabiam sete, com outras 22 pessoas. As acusações? Armação para delinquir, obstrução do tráfego, agressão a funcionário e dano a bem público. Nenhuma prova jamais foi apresentada.

Tudo girava em torno da resistência na Ponte da Dignidade, que durou cerca de sete meses, com os jovens permanecendo inquebrantáveis até 18 horas por dia. A polícia descarregou ali todo o seu ódio contra quem não se dobrava. “Chegaram a dizer que eu até havia incendiado um ônibus. Respondi que não fiz nada daquilo, que estava apenas exercendo o meu direito constitucional à manifestação e que nunca havia cometido nenhum daqueles atos delitivos, mas me mantiveram preso”, disse.

Leia também: Colômbia: Candidato Petro é alvo de espionagem e acusa governo

“Por defender meu país e meu povo fui jogado numa cela ainda mais abaixo, no último piso, como um porão, quando começaram a me cobrar dinheiro para que não ocorresse nada comigo. Eu dormia do lado de um balde em que todos faziam xixi, em meio aos respingos de urina”, recordou Javier.

Uma vez solto, o jovem funcionário do Jardim Botânico de Bogotá, emprego com o qual sustentava o filho e a família, e que exibe com orgulho o certificado de ter seu trabalho social na comunidade reconhecido pelas Nações Unidas – e sem antecedentes criminais -, começou a ser assediado e perseguido. “Na Colômbia, o Estado trata assim as pessoas que pensam. Eu tive que largar o trabalho, precisei, pois era em frente à Polícia Nacional que me tinha como inimigo. Por contrato eu deveria fazer a manutenção de árvores com várias pessoas e eles passaram a me enviar só. E os agentes passaram a me tirar fotos. Tive de deixar o emprego por questão de segurança”, relatou.

Próximo às eleições, na tentativa de amordaçar o coletivo, a Polícia o mantém sob estrita vigilância, estando sujeito a qualquer momento a ser visitado. Sua ausência em casa pode trazer graves implicações, ameaçaram os agentes.

David com a vida em risco

David, com a Ponte da Dignidade de Usme ao fundo: exemplo de resistência | Foto: Comunicasul

“No meu caso, vi que minha vida estava correndo risco, apesar de não ter nada que ver com confrontações e por sempre manter um trabalho voltado para pôr fim à violência. Também sofri perseguições e ameaças de morte. Fui ameaçado quando estava com uma companheira e um motoqueiro sacou a arma, apontou e, felizmente, conseguimos ser rápidos, correr e nos esconder”, relatou David. “Mas há muitos agentes que se aproximam em todo lugar onde estou, tiram fotos, me seguem, tudo para intimidar nosso trabalho de conscientização. O que podemos dizer é que Rodolfo Hernández é o candidato do governo, todo mundo sabe, e Gustavo Petro é o candidato do povo”, acrescentou.

Sobre a dimensão dos protestos, David recorda que “num único dia podia haver até 200 feridos numa mesma localidade, em um processo que durou, com confrontação direta e choque, entre seis e sete meses”. “Começou em 2019, como algo momentâneo, abafado pela pandemia, mas que o assassinato do advogado Javier Ordoñez em Bogotá por um policial com uma teaser [arma de eletrochoque] fez retornar a agenda das ruas”.

Leia também: Colômbia: Vitória de Gustavo Petro fortalece a esperança

Mais adiante, com a proposta de reforma tributária, em 28 de abril de 2021, começa uma greve nacional indefinida, que reúne setores sociais, culturais e artísticos, com a onda ganhando corpo. “Porque a comida estava muito cara e o salário não era suficiente, o que fez com que as ruas transbordassem em todo o território nacional. O que conto são testemunhos coletados de jovens a quem doía ver a sua Pátria, de ver como em Cali massacravam e eles não podiam fazer nada. Então eles fizeram também aqui a Primeira Linha de defesa das manifestações diante da violenta repressão da Polícia”, relatou David.

Direita quer se perpetuar no poder

Na avaliação de Javier Silva, “estamos diante de uma jogada da direita porque temem a mudança com um mandato de Petro, afinal são décadas de governos em que os mesmos se revezam no poder”. Servindo a este esquema viciado, esclareceu, “a Registraduria sempre serviu para a manipulação, havendo eleições em que a Colômbia dormiu com um presidente e acordou com outro”.

Javier faz questão de esclarecer detalhadamente: “na Colômbia existe e a Registraduria e o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), que controlaria para que fossem legais as votações, para que se soubesse quem está votando, quantos estão inscritos, para que falecidos não votassem… Mas, de fato, o CNE trabalha conjuntamente com a Registraduria, com a direita da Colômbia, que agora alega que não pode fiscalizar o software eleitoral porque é de uma firma privada. Este esquema é o que fez com que a direita sempre tenha sido vencedora, embora as pesquisas apontem para a vitória da esquerda”.

Obviamente, citou, “é por isso que não deixam entrar observadores internacionais para acompanhar as eleições. No primeiro turno, em 29 de maio, foram barrados observadores da Inglaterra, Bélgica, Argentina, França, Suíça e Espanha. Não os deixaram passar sequer da imigração do aeroporto”. Não querem vigilância de seus atos, destacou, para se que se mantenham impunes. “É muito triste ver que a mesma Força Pública que deveria nos proteger, nos mate, nos sequestre, nos torture e nos prenda”.

“É espantoso saber que alguém quer trabalhar para a comunidade, para o seu país e seu povo, e que o governo não os deixe, pelo contrário, o persiga e o estigmatize. Tentam manchar nosso nome, impedir nosso trabalho. Por isso agradecemos a presença da solidariedade internacional, como vocês, que nos deem voz e demonstrem que não somos delinquentes, que não somos o que diz o Estado, que não somos terroristas, que queremos o melhor para o nosso país. Queremos que o nosso povo viva bem. Agora, aportando o nosso grão de areia, acredito que podemos modificar algo. Com Petro e Francia vamos pelo caminho da mudança”, concluiu Javier.

*A Agência ComunicaSul está na Colômbia cobrindo o segundo turno das eleições presidenciais graças ao apoio das seguintes entidades: Associação dos/das Docentes da Universidade Federal de Lavras-MG, Federação Nacional dos Servidores do Poder Judiciário Federal e do MPU (Fenajufe), Confederação Sindical dos Trabalhadores/as das Américas (CSA), jornal Hora do Povo, Diálogos do Sul, Barão de Itararé, Portal Vermelho, Intersindical, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Sindicato dos Bancários do Piauí; Associação dos Professores do Ensino Oficial do Ceará (APEOC), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-Sul), Sindicato dos Bancários do Amapá, Sindicato dos Metroviários de São Paulo, Sindicato dos Metalúrgicos de Betim-MG, Sindicato dos Correios de São Paulo, Sindicato dos Trabalhadores em Água, Resíduos e Meio Ambiente do Estado de São Paulo, Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp Sudeste Centro), Associação dos Professores Universitários da Bahia, Sindicato dos Trabalhadores no Poder Judiciário Federal do RS (Sintrajufe-RS), Sindicato dos Bancários de Santos e Região, Sindicato dos Químicos de Campinas, Osasco e Região, Sindicato dos Servidores de São Carlos, Sindicato dos Trabalhadores no Poder Judiciário Federal de Santa Catarina (Sintrajusc); mandato popular do vereador Werner Rempel (Santa Maria-RS), Agência Sindical, Correio da Cidadania, Agência Saiba Mais, Revista Fórum e centenas de contribuições individuais.