Enfermagem precisa ter “um pouco da caneta” para revolucionar o SUS

A deputada estadual Enfermeira Rejane (PCdoB-RJ) comenta a vitória histórica do piso nacional da enfermagem, e como o projeto político da categoria se consolida para conquistar direitos, apesar da maré contrária do governo Bolsonaro.

A deputada Rejane de Almeida (PCdoB-RJ) comemorando a aprovação de seu projeto de jornada de trabalho de 30 horas para a enfermagem no Rio de Janeiro

A deputada estadual carioca Enfermeira Rejane de Almeida (PCdoB-RJ) comentou, ao Portal Vermelho, a enorme alegria com que a sofrida categoria da enfermagem recebeu a conquista do piso salarial nacional. Ela explicou as dificuldades da categoria para conquistar direitos trabalhistas, as resistências de setores privados, as lutas que continuam em disputa e o projeto político de conquistar uma bancada parlamentar em defesa do Sistema Único de Saúde.

Rejane defendeu a necessidade da categoria tomar consciência da necessidade de votar em enfermeiras(os) para garantir que esses profissionais exerçam todo o seu potencial no Sistema Único de Saúde. “Se a gente tiver um pouco da caneta, também, a gente revoluciona os sistema de saúde”, diz a deputada sobre a presença parlamentar da categoria.

O projeto de lei 2564/20 que estabelece piso salarial nacional para enfermeiras(os), técnicas(os) e auxiliares de enfermagem e obstetrizes foi aprovado no dia 4 de maio como marco histórico para uma das maiores forças de trabalho do Brasil, com mais de 2,5 milhões de trabalhadoras(es), a maioria composta de mulheres.

Piso salarial da Enfermagem, vitória histórica e extraordinária!

Luta contínua

“A categoria de enfermagem é muito sofrida e essa luta do piso, assim como a luta por uma jornada de trabalho de 30 horas, não tem só dez anos no Congresso Nacional. O primeiro PL que se tem notícia de registro no Congresso data de 1966. A categoria espera por isso há muito tempo”, disse a deputada Rejane.

Segundo ela, há sempre setores céticos com a vitória numa categoria tão grande, mas a reação entre a maioria é de muita gratidão a todos que lutaram por essa conquista. “Há aqueles que não entendem o processo legislativo, a luta de classes, e têm dificuldade para aceitar que o piso só vai valer no ano que vem, para categorias como os servidores públicos”.

A parlamentar diz que a luta continua até que as vitórias se confirmem em todos as instâncias. Um mês depois da aprovação do PL 2564/20, o Senado procurou garantir a entrada do piso na Constituição por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), para evitar brechas legais. 

Para evitar recuo, senadores incluem piso da enfermagem na Constituição

“Falta aprovar na Câmara e combater a ação do presidente Bolsonaro. Essas duas questões ainda são de muito enfrentamento, ainda mais nesse governo que não valoriza o trabalho, muito pelo contrário. Com tantas propostas para enfraquecer o servidor público, além do alinhamento com o empresariado, o enfrentamento ainda vai ser muito pesado”, alerta ela. 

Fontes de financiamento

Outra justificativa para a resistência à implementação do piso são os impactos financeiros, “saber de onde sairá o dinheiro”. Para ela, é preciso que a luta foque em garantir que o Governo Federal assuma a responsabilidade do financiamento. 

“Vai afetar principalmente os municípios, se o governo federal não assumir suas responsabilidades. O valor é ínfimo se comparar com o que governo utiliza para ajudar o grande empresário. É necessário que o governo assuma, pois tem várias fontes como a taxação de grandes fortunas ou royalties de petróleo; a própria desoneração fiscal em alguns locais de uma forma bem branda pode fazer um fundo se houver alguma vontade política; garantindo o repasse para os municípios cumprirem com esse piso”. 

Em relação à rede privada, ela menciona as condições fartas de financiamento para o piso mínimo. “Tem muito lucro. Principalmente na pandemia, alguns setores triplicaram seus rendimentos”, diz ela. A resistência do setor privado, como ela observa, no entanto, sempre acontece, “principalmente com a enfermagem”.

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Judicialização

Mas a deputada admite que, “se não estiver bem azeitadinho”, ficam brechas que o setor privado e os próprios governos utilizam para evitar a legislação. Por isso, diz ela, o Congresso está muito criterioso para garantir o piso na Constituição com a PEC 11/2022, aprovada no Senado, quanto uma possibilidade de um novo projeto de lei que garanta o recurso. “Com esse ‘saneamento’ da lei aprovada, que é como eles chamam, pretendem impedir a judicialização do processo”.

Rejane fala da experiência de embate, no Rio de Janeiro, para aprovar o local de descanso da enfermagem nos hospitais e o piso salarial estadual. “Aprovamos local de descanso, o piso correspondente a uma jornada de trabalho e eles recorreram ao primeiro Tribunal de Justiça”, contou. 

A deputada contou que foi possível avançar no tribunal. Em seguida, o empresariado recorreu aos ministros do Supremo, quando os parlamentares e representantes da categoria conseguiram um diálogo e convenceram quatro ministros a votar a favor da tese. “Com quatro votos, concluímos que não estávamos tão errados assim. Foram seis a quatro e uma abstenção. Por isso, considerei uma vitória conseguir um piso correspondente a um jornada de 30 horas semanais”, completou.

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“Cabe-nos ter um pouco de paciência depois de tanta espera, e trabalhar para que consigamos sanar as brechas e garantir o piso para a enfermagem”, afirma. 

Projeto político da enfermagem

Rejane diz que é importante continuar consolidando o projeto político da categoria, e garantir representantes no Congresso Nacional e demais parlamentos. “Infelizmente, hoje, temos pouca chance e pouca força, com raros profissionais de enfermagem no Parlamento”. 

Desde 2004, a categoria e suas representações falam em projeto político parlamentar. Rejane percebe que, agora, a enfermagem acordou, começou a entender que é preciso ter força política e atuar para poder avançar nas suas prerrogativas.

A partir de 2010 começou a se consolidar esse projeto político. Na cidade do Rio de Janeiro são dois vereadores eleitos em suplência, mais de vinte vereadores em outras cidades e alguns prefeitos em cidades pequenas do país, além de secretários de saúde. Em Brasília tem um deputado distrital. 

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Este ano, as entidades de classe se organizaram fazendo campanha para que a enfermagem vote na enfermagem e constitua uma bancada no Congresso. Há fortes pré-candidatos a deputado(a) federal, na opinião dela, em vários estados. “Queremos ter uma bancada falando a mesma linguagem. E não é um processo corporativo, mas para lutar pela saúde pública com uma outra visão. Dificilmente se vê uma enfermeira que abre um hospital. É uma luta pelo sistema de saúde mesmo, o SUS, que é o maior mercado de trabalho da categoria”, explicou.

Agenda de lutas

Conquistado o piso salarial nacional, outras lutas abrem caminho entre as entidades de classe da enfermagem. A luta pela jornada de trabalho de 30 horas é muito séria para a enfermagem, desde 1966. 

“Mas temos também pela aposentadoria, remando contra a maré que está para tirar os direitos trabalhistas”. Rejane explica que a enfermagem luta pela aposentadoria aos 25 anos de trabalho, por serem profissionais expostos a centenas de agentes químicos, riscos físicos e insalubridade. “Está aí a pandemia que mostrou toda a dificuldade que foi para conseguir os equipamentos de proteção individual, algo que sempre aconteceu na enfermagem”.

A luta pelo local de descanso é outra grande demanda, por absurdo que pareça. “Todos os hospitais que visitei na luta sindical têm o local de descanso dos médicos, conforto, quarto, mas quando perguntamos do local de descanso da enfermagem, a rede privada sempre perguntou onde estava escrito que elas tinham esse direito. Eu respondia que no mesmo lugar onde diz que o médico tem, ou seja, nenhum”, relata Rejane. 

A proposta legislativa feita por Rejane visa a garantir um local de descanso adequado, conforme prevê a Constituição. Principalmente para quem faz o horário noturno, é preciso duas horas de descanso em local adequado.

A luta da enfermagem por um piso salarial para a categoria

Profissional liberal

Tem também a luta pelo reconhecimento enquanto profissional liberal. O imposto de renda aceita recibo de todos os profissionais de saúde de nível superior, menos do enfermeiro. Ela considera que a(o) enfermeira(o) também é um profissional liberal que pode fazer consulta, parto natural, consulta pediátrica, ginecológica. Ao não aceitar que as pessoas debitem o recibo na declaração de imposto de renda, a Receita Federal impede que os profissionais sejam vistos como profissionais liberais. 

Existe um protecionismo do sistema médico que impede a atuação desses profissionais, para preservar a reserva da atuação apenas entre médicos. Tem muita dificuldade na área da saúde, mesmo a população precisando tanto desse trabalho. Esse profissional tem ética como qualquer outro e está sujeito a cassação do registro como qualquer outro. Com isso, quem sai prejudicada é a população. Foi assim com o programa Mais Médicos, severamente atacado pelo segmento.

Qualquer profissional técnico pode atuar como profissional liberal e oferecer recibo, menos os técnicos de enfermagem. “O técnico de enfermagem não pode abrir nada, não pode aplicar uma injeção, não pode trocar uma sonda, não pode fazer um curativo, mesmo pagando um conselho de classe. Isso porque tem legislações que proíbem o profissional de enfermagem de trabalhar de forma autônoma, mesmo tendo estudado, pagado pelo curso e pelo seu conselho de classe”.

Rejane também explica que grande parte dos atendimentos do programa Mais Médicos, que trouxe profissionais estrangeiros para áreas com carência desses profissionais, poderia ser feito por profissionais de enfermagem. 

“A enfermagem faz um monte de coisas que um médico cubano faz. Tem muita coisa na rede básica que é a enfermagem que faz. Todo o programa de tuberculose, de hanseníase, de pediatria, programa da mulher, ginecológico, obstétrico são medicações que estão dentro do protocolo do Ministério da Saúde”, explica. 

Deputados se mobilizam para aprovar piso salarial da enfermagem

A(o) enfermeira(o) pode prescrever, mas os médicos exigiram que os antibióticos só podiam ser prescritos por eles. Rejane conta também que, depois, tiveram que retirar essa exigência, porque toda a medicação da tuberculose sempre foi prescrita por enfermeiras(os).

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