Farsa desmascarada: Bolsonaro mente ao dizer que fechou 645 lixões

Cruzamento de dados oficiais e consulta direta a prefeituras mostram ser falso principal anúncio da “agenda ambiental urbana” do governo​. Ministério do Meio Ambiente usa informações de associação privada, que, confrontada, prometeu auditar números

Em janeiro de 2018, o Lixão da Estrutural, como era chamado o maior lixão da América Latina em atividade, foi desativado. Foram 60 anos com o lixão a céu aberto. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

O fechamento de 645 lixões no país, apontado desde o ano passado como principal resultado da “agenda ambiental urbana” lançada em 2019 pelo governo Bolsonaro, é mais uma propaganda do governo que se confirma uma fraude. O Ministério do Meio Ambiente não tem a lista dos tais lixões e, confrontado, passa a ligação para uma associação privada. Esta, por sua vez, não sabe explicar discrepâncias nos números, prometendo auditá-los.

Levantamento realizado pelo Fakebook.eco mostra que pelo menos 195 desses lixões (30%) já estavam desativados ao menos desde 2018, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Regional. Prefeituras foram procuradas, e 55 já confirmaram que não fecharam lixões nos últimos três anos.

Segundo o ex-secretário de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco, José Bertotti, esta é mais uma mentira do governo “antiambiental” de Bolsonaro. “A farsa foi desmascarada pelo site fakebook.eco.br, uma ótima iniciativa do pessoal do Observatório do Clima”, disse ele.

O gestor público contou, também, que, em Pernambuco, este tema foi atacado como prioridade. Quando esteve no governo, foram liberados R$ 20 milhões para ajudar os municípios a encerrarem seus lixões, uma ação que foi reconhecida pelos órgãos de controle e que melhora a qualidade de vida da população.

Na opinião de Bertotti, Bolsonaro só está interessado em faturar alto com as negociatas de caminhões de lixo superfaturados para prefeituras. “a máscara caiu. Ninguém aguenta mais esse descaramento”, indigna-se ele, referindo-se a denúncias recentes na imprensa.

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Em mais de uma ocasião, como em seu discurso na COP 26, a conferência do clima de Glasgow, em 2021, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, gabou-se de que o atual governo havia “encerrado 20% dos lixões a céu aberto” do país. Mas o MMA (Ministério do Meio Ambiente) nunca mostrou a lista dos 645 municípios. Procurada, a pasta se recusou a enviar a relação das cidades e atribuiu todos os dados à Abetre (Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos e Efluentes).

afirmação do MMA de que “645 lixões foram fechados no Brasil desde 2019” também aparece na mensagem que o presidente Jair Bolsonaro enviou ao Congresso em fevereiro. No documento, o governo alega que o Lixão Zero “alcançou a marca de 645 lixões encerrados, o que representa uma queda de 20% das áreas irregulares de disposição de resíduos em relação a janeiro de 2019”.

Auditoria na Abetre

Questionado sobre a discrepância, o presidente da Abetre, Luiz Gonzaga, afirmou que o levantamento usado pelo MMA será revisto. “Vamos fazer uma auditoria para verificar os dados”, disse Gonzaga, que em fevereiro de 2019 assinou ​um “acordo de cooperação técnica” com o então ministro Ricardo Salles.

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A lista apresentada pela Abetre foi cruzada com dados do Snis (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), mantido pelo MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional). Das 645 cidades, pelo menos 195 destinam o lixo para aterros sanitários desde 2018 ou antes, aponta o levantamento. O programa Lixão Zero foi lançado em abril de 2019. Até a última sexta-feira (20/5), o Fakebook.eco havia procurado metade das 195 prefeituras, e 55 já responderam confirmando a informação do MDR.

A Abetre diz usar o Snis como base de seu Atlas da Destinação Final de Resíduos, mas alega ter feito levantamentos próprios para “validar” os dados e atingir os 5.570 municípios do país. Em 2018, o Snis teve a participação de 3.468 municípios. Como o cruzamento de dados considerou apenas estes (62% do total), o número daqueles que não fecharam lixões nos últimos 3 anos, entre os listados pela Abetre, pode ser maior que 195.

Em vez disso, aumentou

A informação repetida pelo governo não consta de nenhuma base pública. A principal fonte oficial sobre resíduos sólidos urbanos no país é o Snis. No documento de lançamento do Lixão Zero, que não tem metas nem previsão orçamentária, o MMA afirma que os dados do Snis serão usados como “indicadores para o tema disposição final ambientalmente adequada”.

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No entanto, de acordo com o Snis, o número de lixões e dos chamados “aterros controlados” aumentou sob Bolsonaro. A lei que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (n.º 12.305/2010) considera “disposição final ambientalmente adequada” apenas aquela que é realizada em aterros sanitários. Na prática, os aterros “controlados” também são considerados lixões.

Publicado por meio de decreto no mês passado, o Plano Nacional de Resíduos Sólidos também adota o Snis como “base principal de dados”. No documento, o MMA afirma se tratar da “fonte oficial do governo federal atualmente mais completa sobre o manejo dos resíduos sólidos urbanos”.

Em 2018 havia 1.577 lixões e aterros controlados no país, número que subiu para 1.694 em 2019 e chegou a 2.162 em 2020. Como a participação no Snis é voluntária e autodeclarada, o número total de municípios varia a cada ano. Foram 3.468 em 2018, 3.712 em 2019 e 4.589 em 2020. O aumento de lixões nesse período, portanto, também é reflexo da maior adesão ao levantamento.

Apagão de dados

Embora o governo queira utilizar este tipo de dado ambiental para defender uma suposta agenda positiva, os dados são desencontrados. Não há uma centralização confiável, como ocorre em outras áreas. Há uma intencionalidade na dificuldade de captura desses dados, como ocorreu no caso da pandemia. Não há interesse do governo na precisão dessas estatísticas, pois sabe que depõem negativamente contra o governo.

Assim como a Abetre, a Confederação Nacional de Municípios (CNM) também realiza levantamento próprio. No Observatório dos Lixões, a entidade aponta que o percentual de cidades com lixões ou aterros controlados se manteve estável nos últimos anos: 48,1% dos 4.224 municípios ouvidos em 2017, e 47,7% dos 4.175 em 2019, últimos dados disponíveis.

Os dados da Abetre também não batem com os da Abrelpe, associação de empresas do setor de coleta de lixo. De acordo com levantamento da entidade, em 2018 havia 3.001 municípios destinando resíduos a lixões e aterros controlados. Em 2020, eram 2.868 municípios. Ou seja, houve melhora em 133 cidades.

Acesso à lista de cidades

Foram solicitados ao MMA: lista dos 645 lixões apontados como fechados desde 2019, com localização (município e Estado), data do fechamento, nome e tamanho do estabelecimento; ação direta do ministério para o fechamento em cada um dos casos; novo destino do lixo nas cidades em que houve encerramento de lixões; situação atual das áreas em que o lixo era depositado; número de aterros sanitários construídos; e fonte dos dados/metodologia usada para chegar ao cálculo de que o fechamento de lixões no país representaria uma queda de 20% em relação a 2019.

Segundo a reportagem do Fakebook.eco, a Abetre demorou um mês para enviar a lista completa dos 645 municípios, após enviar material inadequado para auditoria, ainda assim sem coberta adequada das regiões Nordeste e Sudeste.

O programa Lixão Zero foi criado em 2019 pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Integrava a chamada “agenda ambiental urbana”, que o ministro dizia ser a prioridade de sua gestão. Segundo ele, o principal problema ambiental do Brasil estava nas cidades, e não no campo.

Desde o início, porém, conforme acusa a reportagem, a “agenda ambiental urbana” se mostrou um factoide: a meta para reciclagem de latas de alumínio, por exemplo, anunciada no fim de 2020, já tinha sido atingida pelo país em 2004, 16 anos antes. Em 2018, ano da eleição de Bolsonaro, o índice havia chegado a 96,9% das embalagens, maior que a meta de 95% estabelecida pela atual gestão.

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